O fracasso dos pressupostos que levaram à guerra na Ucrânia tem estado a limpar o círculo mais próximo de Vladimir Putin, com generais e diretores de serviços de espionagem a serem afastados e presos por traição. Também vários oligarcas se distanciaram do líder e da guerra. Mas mesmo com o número dos seus mais íntimos a diminuir, a probabilidade do líder ser alvo de um golpe de estado, como tantos advogam, permanece diminuta.
Os serviços militares de informação ucranianos referiram dia 20 de março que algo se prepara na Rússia para depor Putin mas estas informações podem servir apenas para descobrir eventuais conspiradores.
A possibilidade da queda do presidente e os efeitos que teria na sociedade russa tem contudo de ser admitida.“Putin tornou-se um símbolo” afirmou ao jornal ucraniano Kyiv Independent ao analista política russo Dmitry Oreshkin. “Mal as pessoas se desiludam com o símbolo, todo o sistema irá colapsar. Todo o sistema está focado nele”.
“Entre a elite económica e política, está a emergir um grupo de pessoas influentes opositoras de Vladimir Putin”, referiram os informadores ucranianos citados pelo Kyiv Independent.
“O seu objetivo é derrubar Putin o mais depressa possível e restaurar os laços económicos com o Ocidente que foram destruídos pela guerra”.
O líder dos serviços de informação russo, Alexander Bortnikov, é apontado por este grupo como um potencial sucessor, acrescentam as mesmas fontes. Putin estará desagradado com Bortnikov devido à má qualidade das informações recolhidas sobre a a Ucrânia e o diretor dos FSB quererá evitar o destino do todo-poderoso diretor do 5º Serviço dos FSB, o coronel-general Sergei Beseda, acusado de traição por esse mesmo motivo.
Gennady Gudkov, um coronel dos FSB aposentado e ex-deputado que se tornou um crítico severo do presidente está cético quanto a estes cenários.
“É uma ilusão”, reagiu em 24 de março aos microfones do canal de TV Current Time. “Qualquer golpe é preparado num ambiente altamente secreto. Se for real saber-se-á dele após suceder”.
Os FSB estão além disso longe de ser um serviço homogéneo e até de serem as únicas forças capazes de discernir e coletar informações, pelo que sozinhas a sua influência é limitada.
O fator apoio popular
Neste jogo de espelhos é possível perceber se algo se passa nos bastidores através da análise da situação política e económica no país. E a conclusão é que, a acreditar na propaganda do regime e em sondagens recentes, o apoio ao presidente e à guerra na Ucrânia parece manter-se elevado na Rússia.
As sanções impostas pelo ocidente estão certamente a desbastar lentamente a qualidade de vida dos russos. As dificuldades ainda não são contudo suficientes para gerar descontentamento popular, sobretudo entre pessoas que têm na memória tempos de penúria bem mais graves de há pelo menos 30 anos. Muitos russos acreditam além disso na justiça da guerra e na narrativa glorificadora de Vladimir Putin, veiculada pela presidência. Só a destruição destas convicções poderia virar a opinião pública.
Entre fevereiro e março, sondagens da agência russa de análise independente Levada, o nível de aprovação do presidente saltou dos 52 por cento para 69 por cento. E a quatro de abril, uma outra sondagem revelou que 65 por cento dos russos sentem orgulho, felicidade ou euforia pela guerra na Ucrânia com 31 por cento a exprimirem sentimentos negativos sobre o conflito.
Mesmo que a verdade seja mais equilibrada, aqueles para quem a guerra é impopular ficam paralisados pelo pânico do que poderá suceder a si e aos seus em caso de protesto. As manifestações de rua das primeiras semanas calaram-se após as forças de segurança terem detido milhares e ter sido aprovada legislação a criminalizar discursos contra os militares e denunciar o conflito.
Um elevado número de baixas ou de deserções na Ucrânia poderá desequilibrar o apoio popular. “Quanto mais durar a guerra pior será para Putin”, afirma Sergei Sazonov, um filósofo político de origem russa e atualmente na Universidade Tartu da Estónia.
O analista russo Oreshkin frisa que uma derrota na Ucrânia irá beliscar a imagem de Putin como homem forte.
Para Sazonov, uma eventual ação do Tribunal Penal Internacional contra Putin por crimes de guerra poderá encorajar as elites russas a virar-se contra o presidente. “Poderão mostrá-lo como único culpado e a si mesmos como salvadores da pátria”, opinou.
Um cenário que muitos consideraram ilusório.
O fator elite
Os castigos ocidentais estão efetivamente a atingir sobretudo as fortunas dos maiores e mais ricos apoiantes do presidente russo. Tal pressão já estará a agravar ressentimento das elites contra o líder mas o medo de perder o bem mais precioso, a vida, fala provavelmente mais alto. A possibilidade de tal ira se exprimir num golpe de estado é remota até porque os mais próximos do presidente não se mantêm no lugar por insensatez.
O presidente é além disso filho de um sistema coercivo com múltiplos mecanismos para prevenir golpes militares ou tentativas palacianas de afastar o líder. Putin sabe como ninguém controlar o aparelho e está ciente dos riscos desde que ele próprio assumiu o poder em 1999.
Outra razão de peso é a escolha de um eventual substituto. Vladimir Putin secou as possibilidades à sua volta, perseguindo opositores até à prisão e à morte. Reina, senhor absoluto, sem herdeiros que se perfilem.
A sua queda, a acontecer, deverá mais provavelmente ficar a dever-se à deserção da elite russa do que a um golpe premeditado, acredita a maioria dos analistas.
E já há casos. Anatoly Chubais, que serviu o Kremlin desde Boris Yeltsin, demitiu-se, fez as malas e exilou-se. Arkady Dvorkovich, ex-vice primeiro-ministro e diretor da Federação Internacional de Xadrez, criticou a guerra e demitiu-se da Fundação Skolkovo, um centro estatal de desenvolvimento de tecnologia.
O desaparecimento súbito do ministro da Defesa, Sergei Shoigu fez erguer muitas sobracenlhas num sinal da tensão que se vive no Kremlin.
The Defence Minister of the RF Serhiy Shoigu has disappeared from the public space since March 11. According to this, Russian media announced his disappearance. pic.twitter.com/GSXgSC9ht0
— KyivPost (@KyivPost) March 24, 2022
Oreshkin afirma que se nota uma clara divisão na elite política. “Os oligarcas há muito que meditam sobre um golpe”, afirmou por seu lado Gudkov. Putin “é tão tóxico e perigoso que eles iriam preferir um substituto. Mas têm medo de falar disso porque seriam assassinados”.
O verdadeiro poder, contudo não estará nas suas mãos já que eles não desempenham qualquer papel no poder efetivo, contestou Sergei Sazonov.
A deserção de alguns poderá antes ser um alerta para Putin.
Ucrânia. A némesis de Putin?
“Os regimes autoritários parecem ser muito estáveis até que, de repente, não o são. E o regime de Putin não será provavelmente exceção”, frisou recentemente Adam E.Casey, pós-doutorado no Centro Weiser para as Democracias Emergentes da Universidade do Michigan.
O analista lembrou por exemplo um caso bem próximo de Putin e da atual guerra na Ucrânia, que poderá repetir-se na Rússia.
Entre 19 e 20 de fevereiro de 2014, o presidente ucraniano Viktor Yanukovych ordenou às suas forças de segurança que disparassem fogo real contra os manifestantes, matando cerca de 70 pessoas. “Em vez de dominar os protestos, a repressão levou à sua intensificação e à deserção de serviços de segurança fulcrais e de figuras de topo do regime” lembrou Casey.
Pouco depois, os Serviços de Segurança, SBU, anunciaram que iriam cessar operações contra os manifestantes e as forças que guardavam o Governo abandonaram os seus postos. Sem quaisquer forças armadas com vontade de reprimir os protestos, Yanukovych fugiu e exilou-se na Rússia.
“Se um golpe suceder, acontecerá só se Putin se tornar impopular e houver protestos massivos”, considerou Sazonov.
Certamente que Putin observou e aprendeu com o erro do oligarca seu vizinho e aliado. As comparações entre ambos e os sistemas de sustentação respetivos são, apesar disso, meramente superficiais. A possibilidade existe de um destino semelhante ao do de Yanukovych mas a sua ocorrência é improvável.
O fator militar
O regime soviético controlava o país através de uma extensa rede de membros do Partido Comunista, incluindo oficiais das Forças Armadas e dos serviços de contraespionagem e comissários políticos.
De acordo com Adam E.Casey estas restrições quase desapareceram na nova Federação Russa.
Os comissários políticos foram substituídos muitas vezes por oligarcas que devem a sua influência e sobrevivência ao presidente.
Apenas se mantêm ligados umbilicalmente ao Kremlin os Serviços de Informação, os FSB, herdeiros do antigo KGB, e os FSO, Serviços de Proteção Federais, cuja principal responsabilidade é protegerem Putin e a liderança russa. Membros destas forças secretas, fiéis de Putin, estão infiltrados em todas as Forças Armadas como mecanismo de controlo dos militares, afirma Casey. O prestígio das Forças Armadas subsiste ainda de certo modo à custa de outros tempos mas o corpo militar é mais profissionalizado e tem tendência a ser apolítico. O caso da candidatura à presidência apresentada o ano passado pelo general e vice-ministro da Defesa Andrei Kartapolov, diretor do principal departamento político-militar das Forças Armadas da Rússia, foi considerado pouco vulgar e ele próprio garantiu que se demitiria se fosse eleito para a Duma.
Vladimir Putin ganhou ainda a gratidão de muitos oficiais negligenciados sob Boris Yeltsin, ao promover a modernização tecnológica das forças militares. Correm também rumores de que os oficiais mais inteligentes e influentes entre as tropas são afastados, despromovidos, ou pior, se não mostrarem apoio e apreço pela governação.
As Forças Armadas russas estão igualmente infiltradas por máfias e a rede de corrupção presente desde as bases é responsável pelo desvio de armamento e de financiamento e mina o moral. Haverá mesmo casos de bases militares assaltadas por gangs com total impunidade.
A própria perceção interna entre os militares é, além disso, de que a sua missão é a defesa da Rússia, não o controlo de multidões e da oposição em defesa de um déspota. Uma convicção que serve os interesses do Kremlin ao distanciar do poder o corpo militar.
O poder das secretas
O segredo de Putin tem sido diversificar as suas fontes de repressão e de informação. Adam E.Casey lembra que o presidente formou em 2016 a Guarda Nacional, a Rosgvardia, sob a direção de um dos seus homens de confiança e ex-guarda pessoal Viktor Zolotov. A Rosgvardia é um corpo de tropas de segurança nacional orientado para o controlo de multidões e repressão de dissidentes. A sua missão é a defesa do Kremlin e do seu líder o que também afasta a possibilidade de um golpe armado.
Como terceiro anel de proteção, Putin mantém ainda uma série de serviços de segurança bem equipados com grande capacidade de recolha de informações, capazes de abortar qualquer embrião de golpe entre os militares ou na Rosgvardia.
O presidente conta ainda com os FSO, “serviços vastos e bem armados com unidades de infantaria cuidadosamente selecionadas para defender o Kremlin”, recorda Adam E.Casey. O resultado é que “todas as agências secretas se vigiam e controlam umas às outras”, relativizando a possibilidade de tentaram derrubar o senhor do Kremlin.
Gudkov confirmou que a guerra tem grande apoio entre as FSB o que torna um golpe muito arriscado. “Qualquer suspeita de deslealdade ou de intriga pode levar à morte”, afirmou ao Kyiv Independent.
A melhor cobertura de Vladimir Putin é, contudo, ele próprio e o controlo pessoal que exerce sobre as elites.
“O presidente governa efetivamente sem se preocupar em agradar à Duma, o Parlamento, ou a um qualquer politburo do partido”. Cada qual deve a sua posição às boas graças do líder, lembra Casey.
Equilíbrio consolidado ao longo de 20 anos e que gera duas consequências vitais. Os riscos de fracasso de um eventual golpe são extremamente elevados e os conspiradores arriscam no mínimo a prisão ou o exílio, assim com a pena máxima, a execução.
“Mesmo que no círculo íntimo de Putin todos se quisessem livrar dele, as consequências de um fracasso e as dificuldades de coordenar um movimento contra ele sob o olhar atento de múltiplos serviços secretos torna qualquer golpe improvável”, afirma Casey.
Intocável
Embalado no seu poder, Putin é intocável e ninguém se atreve a contraria-lo. “Não há nenhum membro do seu círculo íntimo capaz de o conter”, refere o analista norte-americano.
O distanciamento que Putin coloca entre si e os seus mais próximos mesmo em reuniões de Estado tem sido justificado com o receio de contrair Covid-19. Mas poderá ir mais fundo do seu isso.
É por isso muito provável que o presidente russo ultrapasse a crise atual sem perder um pingo do seu poder, à semelhança do que sucedeu diversas vezes com ditadores como Muammar al-Qadafi da Líbia e Saddam Hussein, do Iraque “que aguentaram enormes crises internas repetidamente sem serem derrubados pelas suas elites ou públicos”, conclui.“Tal como o seu antigo aliado Yanukovych, Putin pode descobrir que afinal não consegue ordenar uma repressão suficiente por parte dos seus serviços secretos para evitar os protestos” antecipa Casey.
A queda de Putin terá de ficar a dever-se provavelmente a um emaranhado de fatores, que o deixem sozinho perante a fúria popular à semelhança do ex-presidente da Ucrânia.
“As demissões podem aumentar num dominó de deserções por parte de elites fulcrais do seu regime, ansiosas de não se afundarem com o barco. Apesar dos custos de uma demissão poderem ser graves, são provavelmente muito menores em comparação com um golpe falhado. Mesmo sem a iniciativa de o depor, os seus serviços de segurança poderão não conseguir salva-lo” afirma.