Os eleitores norte-americanos protagonizam uma verdadeira "guerra dos sexos" nestas eleições, de acordo com as sondagens que apontam para um aumento do gender gap - o fosso entre o voto feminino e masculino - com a maioria das mulheres a apoiarem a candidata democrata, Kamala Harris, e a maioria dos homens a apoiarem o candidato republicano, Donald Trump.
Segundo uma sondagem da NBC News de outubro, as mulheres favoreciam Kamala Harris por 14 pontos (55% vs. 41%), enquanto Donald Trump liderava Harris, entre os homens, por 16 pontos (56% vs. 40%). Somando os dois resultados, a diferença entre os sexos é de 30 pontos. Ainda assim, uma diferença que se acentua entre o eleitorado mais jovem, com Harris a liderar a intenção de voto das mulheres (56% vs. 36%), com uma vantagem de 20 pontos, de acordo com a sondagem Stay Tuned Gen Z da NBC News, realizada recentemente pela SurveyMonkey.
Ludivine Gilli, diretora do Observatório da América do Norte na Fundação Jean-Jaurès, afirma que, historicamente, as mulheres tendem a votar mais nos democratas do que os homens. Por exemplo, em 2020, o presidente Joe Biden conseguiu 55% dos votos das eleitoras, contra 44% conseguidos por Trump. Também em 2016, Trump obteve menos votos das eleitoras que a candidata democrata Hillary Clinton, 39% contra 54%, de acordo com o Pew Research Center.
No entanto, a especialista em Estados Unidos explica que o voto feminino não é homogéneo e que pode variar de acordo com indicadores como a raça, idade ou nível de escolaridade: "as mulheres brancas não votam da mesma forma que as mulheres negras", uma vez que as mulheres brancas tendem a votar maioritariamente nos candidatos republicanos, enquanto as mulheres negras e as mulheres hispânicas tendem a favorecer os candidatos democratas.
Questionada sobre as intenções de voto das mulheres nestas eleições, Ludivine adianta que "sabemos que as mulheres negras e as mulheres hispânicas vão votar maioritariamente nos
democratas", mas que desconhece-se ainda, se o voto das mulheres em geral, e das mulheres brancas, "terá um peso maior a favor do candidato republicano, ou se haverá
uma oscilação que está longe de ser neutra a favor da candidata
democrata".
De acordo com uma sondagem recente da KFF sobre as Mulheres Eleitoras, que se centra em questões de saúde, as norte-americanas têm mais confiança em Harris para reduzir os custos dos cuidados de saúde (50%), do que em Trump (34%). "Kamala Harris é preferida por todas as eleitoras, em média, obviamente não das eleitoras republicanas, mas nestas questões Kamala recebeu intenções e opiniões favoráveis, incluindo entre os republicanos", observa Gilli.
Ludivine Gilli, diretora do Observatório América do Norte da Fundação Jean-Jaurès, com sede em Paris, e autora do livro "La Revolution conservatrice aux États-Unis: de l'avortement au droit de vote, la démocratie pervertie "
Questões decisivas para as eleitoras norte-americanas
Após a revogação de Roe v. Wade pelo Supremo Tribunal em 2022, a questão do direito ao aborto é um dos tópicos que mais preocupa e mobiliza o eleitorado feminino, especialmente em Estados onde o tema está em debate. É o caso do Arizona, apontado pela especialista, onde os úlitmos desenvolvimentos "reacendaram os receios das mulheres" e podem motivar o eleitorado a ir às urnas e incentivar o voto progressista.
No Arizona, onde o Supremo Tribunal reativou na primavera uma lei de 1864 que proíbe o aborto e onde a Câmara e depois o Senado aprovaram uma lei para abandonar esta lei e voltar à lei mais recente, a questão do aborto tornou-se central, como observa a especialista.
"Ao mesmo tempo que decorrem as eleições presidenciais no Arizona, o eleitorado estará a votar sobre a consagração do direito ao aborto na Constituição" afirma Gilli. "O que pode encorajar algumas pessoas a votar, em particular as mulheres, e pode influenciar o voto".
A decisão do Supremo Tribunal de retirar a proteção Federal ao aborto, deixando aos cinquenta Estados a possibilidade de conceder ou não esse direito às mulheres (dos quais vinte e dois já decidiram restringi-lo ou proibi-lo totalmente), foi impulsionada pela maioria conservadora nomeada pelo ex-presidente dos EUA, Donald Trump.
Ludivine Gilli alerta que uma possível reeleição de Trump poderia trazer mudanças significativas para os direitos das mulheres, dependendo da composição do Congresso. "Se Donald Trump for reeleito, haverá potenciais mudanças para a população como um todo, particularmente em termos de democracia. O facto de, como presidente, poder continuar a nomear e a confirmar juízes nos tribunais federais pode ter consequências para o direito das mulheres", adverte, acrescentando que existem atualmente "duas eleições para o Senado na Flórida e no Texas".
O aborto é atualmente a questão mais importante para as mulheres jovens, em idade reprodutiva, com cerca de 39% a indicarem ser a sua principal preocupação, superando outras como a inflação (28%), de acordo com a sondagem da KFF. Ainda que a questão seja predominante entre as eleitoras jovens, a inflação e o custo de vida permanecem no topo da lista das preocupações de todas as mulheres, no geral, tanto democratas como republicanas.
Que ameaças enfrentam as mulheres?
Questionada sobre as ameaças que as mulheres enfrentam nestas eleições, Ludivine Gilli explica que a vitória de uma administração Trump-Vance poderá trazer vários riscos para as mulheres, nomeadamente em termos de direitos reprodutivos, acesso a cuidados de saúde ou redefinição do papel da mulher na sociedade. No seu entender, não só estão em risco os direitos reprodutivos das mulheres, que poderão vir a ser mais restringidos, caso Donald Trump reforce ainda mais a ala conservadora dos tribunais, incluindo o Supremo Tribunal.
A autora do livro "A revolução conservadora nos Estados Unidos: do aborto ao direito de voto, a democracia pervertida", na tradução livre em português, que não está publicado em Portugal, denuncia o modus operandi utilizado pelos republicanos nos últimos anos:"apresentam queixas sobre determinados aspetos da sociedade e essas queixas vão até aos tribunais distritais, depois aos tribunais de recurso e, por vezes, até ao Supremo Tribunal”.
Nesta entrevista à RTP, Ludivine Gilli vai mais longe e afirma que a escolha de J.D Vance para a vice-presidência dos EUA mostra-nos “o tipo de visão e o tipo de lugar que está a ser proposto para as mulheres na sociedade”. Para a especialista, a retórica de Donald Trump e do seu vice-presidente, J.D. Vance, sugere uma visão conservadora que enfatiza o papel da mulher na sociedade como mãe, esposa e cuidadora, e que poderá vir a colocar em causa mais direitos reprodutivos, nomeadamente o uso de contraceção ou ainda o acesso à fertilização in vitro.
"Alguns Estados nos EUA estão a tentar colocar obstáculos à utilização da pílula de várias formas (…) Não só não lhes será permitido fazer um aborto, como também deixarão de ter a opção de estarem grávidas ou não. Trata-se de direitos reprodutivos", alerta Ludivine Gilli.
Uma visão contrária à defendida pela candidata democrata, Kamala Harris, cujo programa não é claro, mas prioriza a "proteção da saúde e dos direitos reprodutivos das mulheres" e promove a questão económica e o apoio à classe média, independentemente do género, valorizando assim uma visão mais inclusiva com oportunidades iguais para as mulheres, segundo a especialista.
Os eleitores estão motivados?
A especialista nos EUA, Ludivine Gilli, considera que os eleitores norte-americanos "estão mais motivados hoje do que quando Kamala Harris enfrentou Joe Biden", em 2019, mas que "um certo número de eleitores continua desmotivado pelo facto de ser Kamala Harris contra Donald Trump”.
A desmotivação de uma parte do eleitorado poderá justificar-se pela ausência de identificação com o perfil e o programa dos candidatos que disputam a corrida à Casa Branca. "Os eleitores que são bastante moderados, vão achar que Kamala Harris, que é democrata, é demasiado progressista e vão achar que Donald Trump é Donald Trump, demasiado sulfuroso, incontrolável e incoerente”, afirma.
Ao passo que “os eleitores que são democratas progressistas e que gostariam de ver uma política genuinamente progressista” não sabem que tipo de política Kamala Harris vai seguir, porque a candidata democrata adotou uma postura moderada e “fez uma campanha principalmente ao centro” para “conquistar os eleitores do centro ou da esquerda do partido republicano”. “Kamala Harris não deu provas de um programa progressista, o que pode desmotivar alguns dos eleitores mais progressistas” analisa.
Ao passo que “os eleitores que são democratas progressistas e que gostariam de ver uma política genuinamente progressista” não sabem que tipo de política Kamala Harris vai seguir, porque a candidata democrata adotou uma postura moderada e “fez uma campanha principalmente ao centro” para “conquistar os eleitores do centro ou da esquerda do partido republicano”. “Kamala Harris não deu provas de um programa progressista, o que pode desmotivar alguns dos eleitores mais progressistas” analisa.
Quem vai vencer as eleições?
A poucos dias de um dos escrutínios mais incertos e polarizados da história recente dos EUA, que refletem mais do que uma disputa política entre democratas e republicanos e expõe uma brecha ideológica do eleitorado, os resultados de várias sondagens colam lado-a-lado os dois candidatos, com grandes oscilações no apoio dos eleitores, que vão além da diferença de género.
Se por um lado, Kamala Harris tem uma maior vantagem sobre Trump entre
os eleitores negros, eleitores jovens com menos de 34 anos e os eleitores
brancos com formação superior. Por outro, Donald Trump supera Kamala
entre os eleitores rurais, eleitores brancos e os eleitores brancos sem
curso superior.
Sendo a candidata democrata a vice-presidente, Kamala Harris, e o candidato republicano, Donald Trump, a incerteza sobre quem vai ser o sucessor de Joe Biden e ocupar o cargo de presidente dos Estados Unidos deverá perdurar até 5 de novembro. Até lá o futuro da nação, da democracia e dos direitos civis continua nas mãos dos eleitores e eleitoras norte-americanas.