Julgamento por violação. Gisèle Pelicot denuncia "cobardia" dos acusados e machismo da sociedade
Após longas 11 semanas de julgamento do processo de violação de Mazan que chocou o país e o mundo, durante as quais foram desfilando pelo Tribunal Penal de Vaucluse, em Avignon, os 51 homens acusados de terem violado Gisèle Pelicot num esquema orquestrado pelo seu ex-marido Dominique, a principal vítima denunciou no último dia do julgamento a cobardia dos acusados e uma "sociedade que banaliza a violação". O principal arguido alegou a "fantasia egoísta" de "subjugar uma mulher insubmissa".
Foi na terça-feira, último dia do julgamento do processo de violação de Mazan, que Gisèle Pelicot denunciou um "julgamento de cobardia", depois de muitos arguidos terem
negado qualquer responsabilidade pelas cerca de 200 violações de que foi vítima entre 2011 e 2020 - metade das quais cometidas pelo ex-marido Dominique Pelicot.
"Tenho de admitir que, desde o início deste julgamento, ouvi muitas coisas inaudíveis e inaceitáveis",
começou por dizer a vítima, elencando exemplos do que ouviu dizer durante
o julgamento:"fui controlado à distância, "bebi um copo de água, fui
drogado". Mas em que altura é que
eles não perceberam?”, insistiu. "Eles violaram-me! Estou a ouvir este
senhor dizer: "um dedo não é uma violação". Ele devia fazer umas
perguntas a si próprio”, desabafou."Vieram
satisfazer os seus desejos sexuais e, só depois, disseram a si próprios
que havia algo de errado naquele quarto", denunciou.
Gisèle Pelicot adiantou que "alguns deles pediram-me desculpa e já posso
olhá-los nos olhos. Mas todos eles cometeram um crime", acusou. "Toda a minha vida vou ter de viver com isso. Vou ter de viver toda a vida com o facto de os homens me terem violado. Toda a minha vida", afirmou, admitindo que "é uma ferida que não vai curar".
A francesa de 71 anos tornou-se um ícone feminista desde o início do
processo, quando decidiu que este seria à porta aberta para colocar a vergonha do lado certo defendeu na
última audiência que "já é tempo de mudar a sociedade machista e
patriarcal que banaliza a violação. Está na altura de mudarmos a forma
como olhamos para a violação”.
"A fantasia egoísta de dominar uma mulher"
Ouvido no último dia de julgamento, na terça-feira, por uma sala cheia de audiências cheia, Dominique Pelicot admitiu que a sua “fantasia” era “dominar uma mulher insubmissa" por "puro egoísmo”. "Se acabei por fazer o que fiz através de pessoas que aceitaram
voluntariamente o que eu estava a propor, foi para subjugar uma mulher
insubmissa. Era a minha fantasia egoísta, sem lhe causar dor", afirmou.
O septagenário tentou justificar a década de violações recordando a violação que diz ter sofrido na infância e a violação em que foi obrigado a participar na adolescência. "Isso criou uma fissura", disse. "Eu acho que essa fissura que eu guardei é próxima disso, do que eu vivi aos 14 anos. A fantasia que eu revivi indelicadamente é próxima disso”.
"Nunca toquei nos meus filhos"
No último dia de julgamento houve também espaço para uma violenta troca de palavras entre Dominique Pelicot e a filha do casal Caroline Darian, que voltou a acusar o pai de ter abusado dela tendo este negado categoricamente qualquer ato incestuoso com os seus filhos e netos, apesar de ter publicado fotografias da filha nua e visivelmente adormecida, por vezes com as cuecas da mãe vestidas.
"Não estou a tentar convencê-la. Não me lembro de lhe ter tirado
fotografias. Se o tivesse feito, di-lo-ia. Vou dizê-lo na cara,
nunca lhe toquei. Fico triste por ver certas coisas. Fico triste por a
ver diminuída. Francamente, Caroline, eu nunca te fiz nada", afirmou Dominique Pelicot, antes de ser interrompido pela filha. "Mantenho que nunca toquei nos meus filhos ou netos, que amo muito”, disse Dominique Pelicot.
“Mentes, mentes, não tens coragem de dizer a verdade, nem mesmo sobre a
tua ex-mulher", acusou a filha. "Vais morrer na mentira! Estás sozinho na mentira. Sozinho, sozinho na mentira de Dominique
Pelicot! É uma pena para ti, não tens face!", gritou.
"Vais acabar sozinho como um cão"
Esta quarta-feira na audiência das alegações finais, Caroline Darian reagiu ao comentário do pai que disse que "gostava de ver a minha filha cara a cara. Para lhe dizer a verdade, dói-me vê-la assim", quando questionado pelo seu advogado sobre quem gostaria de voltar a ver após o julgamento: "vais dizê-lo aqui, neste tribunal! Nunca mais te vou ver, nunca mais!
Vais acabar sozinho como um cão, nunca mais te vou ver, Dominique!",
gritou a filha na sala de
audiências.
As alegações finais começaram esta quarta-feira com as partes civis e deverão ser ouvidas na próxima segunda-feira, 25 de novembro, após dois dias de suspensão para permitir ao Ministério Público preparar as suas alegações finais de Dominique Pelicot. As alegações finais dos outros 50 arguidos deverão ser ouvidas até 13 de dezembro. O veredito do vasto processo de violação de Mazan está previsto para 20 de dezembro.
O principal arguido continua a ser investigado em dois outros casos pela Unidade de casos arquivados de Nanterre: um homícidio e violação em Paris em 1991, que este nega, e uma tentativa de violação em Seine-et-Marne em 1999, que admitiu depois de ter sido identificado através do ADN. Questionado pelos advogados de defesa que tentaram obter mais pormenores, recusou-se a comentar.
c/ agências