Israel. Mais de 300 judeus ortodoxos detidos em celebrações ilegais que juntaram milhares

por Graça Andrade Ramos - RTP
Judeus ultra-ortodoxos celebram o Lag Ba'omer em Ashdod, Israel, a 12 de maio de 2020 Reuters

As tradicionais fogueiras do Lag Ba'omer estavam proibidas em Israel desde dia 7 de maio, devido à pandemia de Covid-19, mas isso não impediu as comunidades de judeus ortodoxos haredi de as acenderem, dias 11 e 12 de maio, e de celebrarem a data aos milhares, sem quaisquer restrições.

O caso mais grave ocorreu terça-feira, no Monte Meron, na Alta Galileia, o local onde o Lag Ba'omer assume maior significado religioso e o único do país onde algumas fogueiras estavam permitidas - sob restrições severas que foram completamente ignoradas pela multidão que ali se juntou, sem máscaras nem luvas.

"Centenas de pessoas, incluindo mulheres e crianças, chegaram à área do Monte Meron. Infelizmente preferiram violar intencionalmente as regras de emergência", referiu um comunicado da polícia.

Pelo menos três centenas de participantes foram detidos, entre confrontos e arremesso de pedras e de outros objetos contra os agentes, que tiveram de pedir reforços.

O ministro do Interior, Arye Dery, anunciou uma investigação ao ocorrido, para se perceber como foi possível a ida de tantas pessoas até ao Monte Meron, apesar de estar em vigor um decreto para o período do Lag Ba'omer, a interditar quaisquer visitantes ou peregrinações ao local entre dias sete e 17 de maio.

O mesmo texto previa a realização de apenas três fogueiras junto ao local central das celebrações religiosas do Lag Ba'omer, o túmulo do rabino Simão bar Yochai, em alturas diferentes e limitadas cada qual a 50 pessoas munidas de autorização.

A polícia teve de intervir igualmente segunda-feira em comunidades ultraortodoxas de todo o país, para apagar as fogueiras e dispersar os participantes.

Encontraram mais de mil em Mea Shearim, um dos bairros mais antigos de Jerusalém. Em Modi'in Illit, uma pequena cidade na Cisjordânia a meio caminho entre Jerusalém e Telavive, a escala da celebração foi menor, mas a polícia foi recebida à pedrada.

Em Bnei Brak, um subúrbio de Televive, a intervenção quase provocou um tumulto e quatro pessoas foram presas por incitamento à violência.
Nova vaga de contágio
O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, condenou os participantes e as celebrações, que poderão levar a uma segunda vaga de contágios, numa altura em que se regista em Israel uma diminuição constante do número de casos e de mortes devido à pandemia.

O Ministério da Saúde já ameaçou voltar a impor medidas restritas de confinamento nas áreas habitadas pelas comunidades ultraortodoxas, se o número de infeções aumentar após o Lag Ba'omer. Até esta quarta-feira, o país contava 16.539 pessoas infetadas com o coronavírus e 260 mortos.

As comunidades ultraortodoxas concentram três quartos do número total de infetados com SARS-CoV-2 em Israel, apesar de representarem cerca de 10 por cento da população.

O Governo teve mesmo de encerrar várias das suas cidades e subúrbios, como o de Bnei Brak, de 200 mil habitantes, o de Mea Shearim, de 900.000 habitantes, ou o de Beit Shemesh (60.000 pessoas), 40 quilómetros a oeste da Cidade Santa.

Os judeus ultraortodoxos vivem geralmente em grupos familiares numerosos, de mais de 10 pessoas de diversas idades numa mesma habitação, e as suas tradições religiosas implicam orações diárias em grupo. Os festivais e celebrações religiosas são igualmente gregários.

Estas comunidades têm sido as mais contestatárias às medidas de confinamento e de distanciamento social.

O ministro da Saúde, Jacob Litzman, que liderava a equipa de combate à pandemia e ele próprio um judeu ultraortodoxo membro do partido Judaísmo Unido da Torá, renunciou ao cargo esta quarta-feira, por testar positivo para o coronavírus após participar numa oração comunitária que juntou dezenas de pessoas numa sinagoga.

No rito seguido por Litzman, muitos líderes acreditam que o estudo da Tora é suficiente para proteger toda a comunidade de qualquer perigo.
Tradição e revisionismo
O Lag Ba'omer é um feriado religioso menor, celebrado no 33º dia após a Páscoa judaica. Este ano, as celebrações estavam previstas desde o por-do-sol de dia 11 de maio até ao por-do-sol do dia seguinte, 12.

De acordo com a tradição judaica, o festival integrava-se no período de 49 dias de colheitas que os judeus tinham de contar desde tempos bíblicos, entre a Páscoa e o Shavuot. O período era designado como Sefirat Ha'omer (ou a contagem de Omer) e Lag refere-se somente ao número 33, escrito com a letra gimel, ou lag.

As celebrações modernas incluem fazer fogueiras para assar batatas e guloseimas e são pretexto para um feriado escolar. Originalmente, era um período de luto, em memória da morte de 24 mil estudantes yeshiva do rabino Akiva, que, de acordo com o Talmude, teriam sucumbido a uma praga há mais de mil anos, no século IX. As fogueiras, afirmavam algumas tradições no séc XV, festejavam o fim da epidemia.

No século XVI, um rabino deu uma nova leitura às chamas e decretou que estas simbolizavam as tradições místicas reveladas no seu leito de morte por Simeão bar Yochai, rabino e alegado autor de um livro cabalístico, que morreu no Lag Ba'omer.

Bar Yochai foi enterrado no Monte Meron e o seu túmulo tornou-se desde então local de culto e de peregrinação.

No século XIX, o sionismo interveio e reviu mais uma vez a história, ao atribuir a morte dos estudantes não a uma praga desconhecida mas a uma batalha durante as revoltas lideradas por Bar Kochba contra os romanos, entre 132-136 da nossa era.

Uma explicação aceitável, uma vez que o rabino Akiva e Bar Kochba eram contemporâneos e o primeiro apoiava o segundo.

Os velhos rituais religiosos receberam assim no séc XX uma roupagem mais secular: o Lag Ba'omer celebra-se com fogueiras porque foi dessa forma que a notícia da vitória de Bar Kochba sobre os romanos foi transmitida a todo o país e o arco e flechas, tradicionalmente oferecidos aos rapazes durante as festas, lembram as armas usadas pelas forças israelitas.

O feriado tem assim três razões para ser celebrado. As crianças judias seculares festejam a vitória sobre os romanos, os judeus religiosos lembram a vida de Simeão bar Yochai com grandes celebrações no Monte Meron e nas suas comunidades, e as universidades assinalam a data como "dias dos estudantes", que dão lugar a festas nos campus.
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