Nas duas décadas que se seguiram à formação do Estado de Israel, em 1948, centenas de crianças, em particular de famílias judaicas originárias do Iémen, terão desaparecido de forma pouco esclarecida para serem entregues a judeus abastados, por vezes famílias fora de Israel, da Europa ou dos Estados Unidos. Numa tentativa fazer alguma luz no processo, Telavive abriu ao público 200 mil documentos.
De acordo com activistas de organizações que se dedicaram ao caso, na origem da questão estaria a convicção dos representantes e membros do Estado de Israel de que as raízes culturais destas crianças não seriam as mais correctas para fazer crescer o Estado de Israel. Eventualmente haveria aqui uma desconfiança face à herança árabe que transportavam consigo e que representava desde logo um elemento antagónico do novo Estado que estava a nascer no meio da cultura muçulmana.
A separação das crianças das suas famílias foi assim a forma encontrada para eliminar esse elemento árabe da nação judaica. As crianças que eram colocadas em campos ou creches eram depois retiradas para hospitais sob a justificação de que se encontravam doentes e necessitavam de cuidados médicos. Era depois dito aos pais que haviam morrido.
Havia no entanto um pormenor que deixava a narrativa oficial em aberto e debaixo de todas as suspeitas: os processos eram concluídos sem corpo, autópsia ou sepultura.
Mais tarde, a tentativa de fechar o processo teve precisamente o efeito contrário. Três inquéritos haviam já apontado que os bebés teriam morrido em tempos de penúria para o recém-constituído Estado de Israel. As suspeitas de que estávamos perante um encobrimento gigantesco de um modus operandi consistente ao longo de mais de 20 anos ganharia corpo quando o inquérito Kedmi – as conclusões foram publicadas em 2001 – colocou sob sigilo durante os 70 anos seguintes os documentos a que tiveram acesso os investigadores.
Numa manobra para inverter a percepção dos israelitas sobre esta questão, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu inaugurou há uma semana uma base de dados aberta ao público com 200 mil documentos que poderão trazer alguma luz aos implicados nesta situação.
“Hoje estamos a corrigir uma injustiça histórica”, declarou Netanyahu, falando de uma nova era de transparência: “Com um toque no teclado”, é possível saber o que aconteceu a cada uma das crianças desaparecidas.
Não será no entanto como diz o chefe do Governo israelita. Para já, no que respeita aos números. Oficialmente são admitidos os desaparecimentos de centenas de crianças, quanto muito “1.000”, nas palavras de Tzachi Hanegbi, o ministro encarregado da publicação do arquivo: “O facto é que 1.000 crianças desapareceram sem sepulturas, uma causa de morte, um funeral ou um corpo”, admitiu Hanegbi, membro do Governo que trabalha junto do gabinete do primeiro-ministro.
Por outro lado, o primeiro-ministro nada disse sobre o facto de haver muita documentação que foi ocultada aos investigadores – há quem fale em outros 200 mil documentos para libertar – ou relativamente ao período de investigação: o arquivo tem em conta o período que vai desde a constituição de Israel (1948) até 1954, quando há provas de que as crianças e bebés continuaram a desaparecer durante pelo menos mais uma década.
Uma organização que está em campo neste caso é a Amram. Os seus activistas acusam as entidades oficiais de recusarem a entrega de documentação essencial para traçar o quadro complexo das situações destas famílias que perderam os filhos e destes filhos que foram separados dos pais.
Por outro lado, a Amram aponta o dedo ao Governo israelita por não admitir a culpa do Estado, o envolvimento das suas estruturas num esquema que sem essa chancela oficial não teria podido operar durante mais de duas décadas naquilo que é um sequestro a uma escala quase industrial.
“Eles não têm coragem para assumir a responsabilidade pelo que aconteceu. Têm medo que a culpa se cole a eles e que o Estado seja inundado por uma chuva de pedidos de indemnização das famílias”, afirma um homem vítima em 1956 de uma “adopção secreta” por pais que haviam sobrevivido aos campos de concentração nazis.
Tendo descoberto a sua situação por acidente, Gil Grunbaum conseguiu quase quatro décadas depois desse evento localizar os pais biológicos na Tunísia. Um processo que lhe levou três anos e sempre com a oposição das autoridades israelitas.