Incríveis, indestrutíveis, irredutíveis. Dez anos depois do atentado à redação do jornal Charlie Hebdo

por Carla Quirino - RTP
Edição especial do jornal satírico francês Charlie Hebdo que assinala 10 anos do atentado Martin Lelievre - AFP

A publicação francesa Charlie Hebdo assinala os dez anos do ataque que matou 11 dos seus funcionários com uma edição especial do jornal satírico. A 7 de janeiro de 2015 dois irmãos franceses de ascendência argelina realizaram o massacre por causa de uma representação caricaturada do profeta Maomé.

O jornal francês Charlie Hebdo, conhecido pela ironia e sátira, não poupou tinta para assinalar os dez anos do atentado à sua redação.

A edição especial apresenta uma capa de base amarela com uma arma a apontar a uma personagem que por sua vez lê essa mesma edição do Charlie Hebdo.

A legenda “Incrível” em tom de “indestrutível” destaca-se na primeira página sublinhando o espírito de uma equipa, que sem medos, continua o trabalho dos anteriores irredutíveis gauleses que perderam a vida.

"A sátira tem uma virtude que nos permitiu superar esses anos trágicos: otimismo", afirma um editorial do diretor Riss, que sobreviveu ao massacre.

"Se uma pessoa quer rir, significa que quer viver. Riso, ironia e caricaturas são manifestações de otimismo. Não importa o que aconteça, dramático ou feliz, a vontade de rir nunca cessará", acentua Riss, que assina o desenho da capa.

Ano de 2011. Capa da edição nº 1011 do Charlie Hebdo, renomeado Charia Hebdo (" Sharia Hebdo "). O balão de fala mostra Maomé a dizer: "100 chicotadas se tu não morreres a rir!". Referência às eleições na Tunísia desse ano | Charlie Hebdo via X

Há dez anos dois homens armados com espingardas AK-47 entraram pela redação do Charlie Hebdo e dispararam durante alguns minutos. Mataram 11 pessoas do jornal. Era 7 de janeiro de 2015. Onze e meia da manhã em Paris.

O massacre foi perpetrado por dois irmão, naturais de Paris, com ascendência argelina. Mataram mais uma pessoa, um polícia, durante a fuga. Este ataque foi considerado uma vingança pela decisão do Charlie Hebdo em publicar caricaturas que satirizavam o profeta Maomé, central para o islamismo. 

O atentado no jornal onde trabalhavam alguns dos cartunistas mais famosos de França desencadeou um conjunto de outros ataques da Al-Qaeda e do Estado Islâmico que mataram centenas de pessoas em França e na Europa Ocidental nos anos seguintes.
O irredutível Charlie e a liberdade de expressão

Desde a fundação, em 1970, o Charlie Hebdo tem esticado o humor até aos limites das leis francesas - leis que definem a conduta do discurso de ódio, que oferecem proteção às minorias -, mas ao mesmo tempo permitem espaço para a liberdade da ironia e sátira na área da religião.


Publicação, um ano após o atentado.""Um ano depois, o assassino ainda em fuga" diz o titulo | Eric Gaillard - Reuters

Na edição especial de 7 de janeiro, tem o número 1694, será uma edição dupla - com 32 páginas. 

Os leitores poderão ler se os franceses são a favor da caricatura. De acordo com uma sondagem do Charlie Hebdo, "76% dos entrevistados acreditam que a liberdade de expressão e a liberdade de fazer caricaturas são direitos fundamentais".

Sobre a liberdade de ironizar sobre as crenças religiosas, a percentagem baixa para os 62% entre as pessoas abordadas.

Num outro tópico, vão ser conhecidos os resultados do concurso #RireDeDieu (Rir de Deus, na tradução livre): o semanário pediu que desenhadores de cartoons enviassem para a redação representações que achassem "engraçadas e cruéis" de Deus, dando assim o mote a um concurso tipicamente provocativo e desafiador para a edição especial.

"Sim, podemos rir de Deus, especialmente se ele existir", destaca uma manchete sobre o que o jornal disse serem os 40 melhores entre mais de 350 desenhos recebidos.

Uma delas faz referência ao profeta Maomé com a legenda: "se eu desenhar alguém que está a desenhar alguém que está a desenhar alguém que está a desenhar Maomé, está tudo bem?".

Um outro cartoon ilustra os líderes das três religiões - cristianismo, judaísmo e islamismo - como um cão de três cabeças.

Numa breve resenha histórica sobre caricaturas de Maomé, é relembrada uma das capas mais famosas e controversas do jornal de 2005: uma representação de Maomé sob a legenda - "Maomé dominado pelos fundamentalistas".

O profeta está desenhado a tapar os olhos e a dizer "é difícil ser amado por idiotas". Este cartoon foi assinado por Cabu, um dos cartoonistas mais conhecidos em França. Cabu foi baleado à queima-roupa no atentado há 10 anos.

Uma das capas mais controversas. Desenho assinado por Cabu. Um de muitos que desencadeou o ataque ao jornal em 2015 | via X

"A ideia não é publicar nada, é publicar tudo o que faz as pessoas duvidarem, as leva a refletir, a questionar, a não acabarem presas à ideologia", declarou Riss ao jornal Le Monde em novembro.

A edição estará nas bancas nesta terça-feira, ao mesmo tempo que ocorrerão as comemorações públicas com a presença do presidente Emmanuel Macron e da presidente da câmara de Paris, Anne Hidalgo.

Na terça-feira à noite, haverá uma transmissão especial sobre liberdade de expressão, onde a televisão France2 fará a pergunta: “Ainda somos todos Charlie?”. O programa visa “decifrar o estado atual da ameaça”.
Ainda entre 7 e 9 de janeiro de 2015

Durante a fuga dos dois atiradores, um policia foi executado em plena rua ficado caído na calçada. A população de Paris foi às ruas em protesto contra o terrorismo. Uma onda de indignação e solidariedade espalhou-se para fora das fronteiras francesas e o slogan “Je Suis Charlie” (Eu sou Charlie) encheu as ruas. O então Presidente de França, François Hollande, também se juntou às manifestações.

A primeira edição  nº 1178 do Charlie Hebdo, após massacre.  Na capa, Maomé traz um cartaz "Je suis Charlie" com a legenda "Tout est pardonné" ("Está tudo perdoado")| Charlie Hebdovia X

As autoridades francesas identificaram os autores do atentado: Said e Cherif Kouachi, de 34 e 32 anos, respectivamente. A 9 de janeiro, a polícia cercou os suspeitos numa gráfica a 35 quilómetros de Paris onde mantinham reféns. Quando os militares invadiram o local matou os dois franco-argelinos.

No mesmo dia na zona leste da cidade, o francês Amedy Coulibaly, de 32 anos, invadiu um supermercado judaico, Hyper Cacher kosher. Aqui, Coulibaly matou quatro pessoas. As autorideds acabaram por conseguir libertar os restantes reféns após atingirem o suspeito.

Mais tarde, as investigações vieram confirmaram a ligação entre os irmãos Kouachi e o invasor do supermercado. Os três homens teriam recebido treino da rede terrorista Al Qaeda e tinham uma missão: defender a honra do profeta Maomé.
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