Corrupção, financiamento ilícito, ligação à máfia, falso testemunho, prostituição de menores, ligação ao tráfico de droga. Aos 81 anos, Sílvio Berlusconi carrega com ele as suspeitas que o sentaram tantas vezes no banco dos réus. Menos foram as sentenças, seja porque os crimes não se provaram, porque a lei mudou ou porque o crime prescreveu. Dos mais de 60 processos que enfrentou, apenas num foi efetivamente condenado. Fraude fiscal, tal como aconteceu com Al Capone.
A condenação chegou em 2012 e foi depois confirmada pelo Supremo em 2013. Sílvio Berlusconi cumpre um ano de trabalho comunitário e fica impedido de exercer cargos públicos. É esta última parte que realmente conta em 2018: Sílvio Berlusconi lidera a Força Itália mas não poderá ser o próximo presidente do Conselho de Ministros; um impedimento legal que não o coíbe de usar a frase “Berlusconi presidente” no material de campanha.
Mesmo afastado do Palazzo Chigi, Berlusconi está bem colocado para ser ele a decidir o rumo a seguir pelo país. Apesar de a sua Força Itália surgir em terceiro lugar, com 17 por cento das intenções de voto, a quase certa necessidade de se estabelecerem alianças traz Il Cavaliere para a primeira linha política. Se contarmos com os seus aliados da Liga do Norte e dos Irmãos de Itália, a direita agrupa 37 por cento das intenções de voto e torna-se no principal bloco das câmaras italianas.
O resultado das eleições italianas é imprevisível. O eleitorado está fragmentado e as sondagens são pouco confiáveis. Reinam os cenários. Em vários, Berlusconi tem na mão a chave do futuro de Itália: pode conduzir o país para uma aliança entre a direita e a extrema-direita, uma solução que ele mesmo já protagonizou em 1994.
Outra possibilidade é deixar para trás os seus aliados à direita e tentar um bloco central com o Partido Democrático de Matteo Renzi. De facto, nenhuma das soluções é inédita e, apesar da coligação pré-eleitoral com a direita, Berlusconi tem sido suficientemente ambíguo para que tudo seja possível.
“Sou invencível”
Sílvio Berlusconi nunca desapareceu completamente do panorama político italiano, mas a sua morte política chegou a ser anunciada. Afinal, muito correu mal depois de ter abandonado a chefia do Governo em 2011. Foi condenado, prestou serviço comunitário, prosseguiram os escândalos sexuais e as notícias sobre as festas “bunga bunga”.
Mas Sílvio já tinha avisado. “Sou invencível”, afirmava outrora. O regresso à primeira linha confirma-o e dá-lhe o peso político que sempre ambicionou. “Berlusconi tem vantagem junto dos eleitores. É uma pessoa conhecida. Os italianos já demonstraram que o passado e a experiência pessoal não contam como credenciais para se ser uma pessoa com um cargo importante”, analisa Marco Lisi, investigador italiano da Universidade Nova de Lisboa.
O peso político que Berlusconi mantém é ainda elucidativo da incapacidade do centro-direita em virar a página. “É o único elemento agregador e tem grandes capacidades em ganhar eleições. É também um sintoma do colapso do sistema político italiano”, aponta o politólogo Goffredo Adinolfi. Adinolfi e Lisi convergem: “O Forza Itália é o próprio Berlusconi. Sem Berlusconi, não tem qualquer viabilidade”.
Apesar do papel principal que Berlusconi poderá ter após as eleições, Goffredo Adinolfi recorda que o Força Itália aparece com 17 por cento nas sondagens. “Não tem grandes votos. A coligação onde está é que consegue mas porque há forças xenófobas dentro que estão a conseguir catalisar este rancor que existe na sociedade italiana”, assinala o investigador do ISCTE. Em causa, a aliança com partidos extremistas que se aproxima dos 40 por cento nas intenções de voto.
O discurso de Berlusconi não deixa de fora os temas que têm marcado a campanha. Na atitude e nas políticas, o populismo está bem presente. “É contra a imigração e os refugiados, defende quotas absolutas, afirma que a maioria dos refugiados não o é e gera violência. Sobretudo, bate-se por algo que é muito caro aos italianos que tem a ver com a carga fiscal”, resume a especialista em Assuntos Europeus Isabel Meirelles.
As propostas económicas de Berlusconi são também destacadas por Marco Lisi. O investigador de Ciência Política nota que o eleitorado italiano tende a identificar-se “nos valores do próprio Berlusconi, sobretudo do ponto de vista económico”.
“Uma boa parte do eleitorado acredita nos princípios liberais, na ideia de que o Estado deve premiar o sucesso”, explicita. Entre as propostas de Berlusconi encontra-se uma forte redução da carga fiscal com uma taxa única de 23 por cento sobre o rendimento.
Imobiliário, televisão, futebol
A redução de impostos prometida por Sílvio Berlusconi é a sua grande proposta para acelerar o crescimento da economia italiana. É também uma reivindicação antiga do ex-primeiro-ministro, patriarca da quinta maior fortuna italiana, segundo a revista Forbes.
A construção do império Berlusconi está na origem de muitos dos processos que envolvem o ex-primeiro-ministro italiano. Sílvio nasce em 1936 no seio de uma família de classe média-baixa de Milão. Estuda num colégio católico, é acólito. Trabalha em cruzeiros, canta em cabarets.
Desde cedo que apresenta as características que conquistam Itália: a capacidade para seduzir, entreter e o talento para vender. A fortuna Berlusconi começa a construir-se nos seus 20 anos, quando se estreia no ramo imobiliário.
É também aqui que começam as ligações suspeitas. Os fundos para Berlusconi investir chegam da Banca Rasini, instituição financeira em que o seu pai trabalhava e que tem ligações à máfia. Berlusconi nega sempre estas relações perigosas. Apesar do emaranhado empresarial, de holdings e de fundos provenientes da Suíça que se esconde por detrás do império do magnata italiano, a justiça nada consegue provar.
As condenações não chegam. Mas as suspeitas nunca mais o largam. Apesar disso, mesmo os críticos admitem que Berlusconi é uma figura ímpar. É-o na forma como planeia empreendimentos imobiliários que são verdadeiras pequenas cidades para a classe média-alta. É-o na forma como luta contra o monopólio público na televisão italiana e revoluciona os media transalpinos. A convicção é que Berlusconi moldou mais do que a cultura do país.
“Berlusconi trouxe a cultura televisiva americana para Itália. Berlusconi é o homem que moldou a Itália moderna”, referia o seu biógrafo Alan Friedman à RTP em 2015.
O imobiliário faz dele um milionário, a televisão leva-o ao estatuto de bilionário. O caminho não se faz sem lutas ou polémicas. Impedido pela lei italiana de criar uma rede de televisão nacional, compra, nos anos 70, diferentes canais locais e regionais, mas gere-os como se fossem um só canal de dimensão nacional.
A justiça italiana obriga ao fecho dos seus canais. Todavia, diferentes diplomas do primeiro-ministro Bettino Craxi permitem o regresso do magnata ao pequeno ecrã. Berlusconi acaba condenado em primeira instância por corromper o então chefe de Governo italiano mas os crimes prescrevem.
Constrói o império televisivo italiano e expande-o além-fronteiras. Em 1986, junta o futebol à televisão e ao imobiliário com a compra do AC Milan, clube que eleva ao estatuto de colosso mundial. Faltava-lhe a política e o caso Mãos Limpas deu-lhe a oportunidade que precisava. Em 1994, anuncia a fundação da Força Itália numa mensagem transmitida pela televisão.
A entrada na política coroa-se de êxitos, com o forte apoio dos meios que o magnata dos media tem à sua disposição. A Força Itália é a força política mais votada com 21 por cento dos votos e forma governo em coligação com os neofascistas da Aliança Nacional e a Liga do Norte. Estamos em maio de 1994 e Berlusconi assume pela primeira vez a chefia do Governo italiano. À boleia de Il Cavaliere, cinco neofascistas entram no executivo.
Berlusconi sai poucos meses depois, em janeiro de 1995. As suspeitas de que estaria ligado à máfia obrigam o recém-chegado à política a renunciar ao cargo. Passa a liderar a oposição, antes de regressar ao Palazzo Chigi em 2001, novamente em coligação com forças políticas à sua direita.
Fica por cinco anos no poder. Sai em 2006 e regressa em 2008 para uma terceira incursão. Quando abandona o Governo em 2011, parece caminhar-se para o fim político de Il Cavaliere.
Implorar por Berlusconi?
A queda de Berlusconi não é alheia à vontade europeia de ver Itália seguir outro rumo. Em outubro de 2011, Nicolas Sarkozy e Angela Merkel não precisam de palavras para expressar o sentimento que paira em Paris e Berlim, os dois motores de Bruxelas.
Questionado sobre as garantias deixadas por Berlusconi, o casal franco-alemão troca um olhar e sorri. Segue-se o discurso de cortesia mas as palavras já pouco interessam.
Um mês depois, o eixo franco-alemão insiste em levar Roma a aceitar um resgate do Fundo Monetário Internacional, mas Berlusconi resiste. Roma não irá colapsar. O magnata sim. Afasta-se em novembro de 2011, sendo substituído por uma solução fortemente europeia: Mário Monti, economista, tecnocrata e ex-comissário.
O facto é que a relação de Sílvio Berlusconi com a Europa é conturbada. O seu europeísmo sempre foi questionável. O discurso populista e as alianças com a extrema-direita esbatem as dúvidas. O magnata italiano dá-se melhor com os líderes das potências que protagonizaram a Guerra Fria como George W. Bush e o ainda Presidente russo Vladimir Putin.
Se Berlusconi era indesejado, algo mudou agora. Esta é, pelo menos, a perspetiva de Isabel Meirelles. A especialista em assuntos europeus vê-o agora com um “mal menor” para o projeto europeu. “Hoje se calhar suspiramos por Berlusconi. Entre Berlusconi e o Movimento Cinco Estrelas se calhar o mal menor é o Força Itália”, explica, numa referência ao partido do controverso político. Mas ser um “mal menor” não significa que não traga desafios ao projeto europeu.
“Berlusconi é um homem superiormente inteligente que foi apreendendo com o seu percurso e os seus erros. Neste momento está muito mais moderado, maduro e, diria mesmo, mais perigoso. Porque continua com posições extremadas mas de uma forma mais diplomática”, recorda Meirelles.
Aos 81 anos, Sílvio Berlusconi permanece uma incógnita para o próprio eleitorado. Que rumo seguirá agora? Uma aliança de cariz europeu com o Partido Democrático ou um governo de pé-atrás com Bruxelas amparado nas forças à sua direita?
“Tem mantido aberto as duas hipóteses. Tem tido flexibilidade, mesmo a nível programático. Há uma certa ambiguidade para se estar disponível para qualquer eventualidade”, avalia o investigador Marco Lisi. O voto dos italianos ditará se Berlusconi tem poder de escolha e quais os caminhos que poderá seguir.