Ainda não eram 8h00 quando os homens subiram ao quarto piso do número 7 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, para perceber que afinal a informação recebida não era correta. A porta que procuravam ficava de facto no lado direito daquele prédio, mas um piso mais abaixo.
Quando desceram o lanço de escadas e voltaram a bater, apareceu-lhes uma criada, mas a dona da casa foi rapidamente acordada, pois não era todos os dias que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado – a PIDE - se apresentava à porta. Na soleira estavam os agentes Carlos e José Gomes, Manuel Barbosa e António Pires dos Santos, “encarregados superiormente de averiguar” quem eram os dois estrangeiros que ali residiam.
Apesar de a proprietária, Maria Lourenço Pontes, assegurar que estava sozinha, os agentes não se deixaram enganar. “A atitude desta senhora desmentia por completo a afirmação anterior e, assim, fomos levados a desconfiar e pedir-lhe para nos ser consentida a entrada em sua casa afim de convenientemente ser feita a fiscalização”, relatariam depois. Mal avançaram viram a mulher bater à porta de um dos quartos de onde saiu um homem que se identificou como sendo o alemão Cecil Adolf Nassenstein Camp.
Nassenstein diria mais tarde que Wissmann gritou de facto “Deutschland über alles, Heil Hitler” (Alemanha acima de tudo, Heil Hitler).
Vendo que a arma não disparava os agentes entraram no quarto, mas o alemão era corpulento e resistiu, só se imobilizando quando sentiu que jorrava sangue de um ferimento da cabeça. Aparentemente mais calmo foi levado à casa de banho para se lavar: “Sem que fosse possível evitá-lo, apesar da luta havida entre ele e nós conseguiu ingerir uma droga que trazia num pequeno frasco, dentro de um dos bolsos para o que, se atirou, ao chão esmagando-o e metendo na boca uma porção da referida droga misturada até com vidros, o que lhe veio a provocar a morte passados 20 minutos aproximadamente”.Estávamos na manhã de 14 de janeiro de 1947. Dois anos depois de terminar, a II Guerra Mundial continuava a reclamar vidas.
O outro alemão foi levado primeiro para a directoria da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, e depois para a cadeia do Aljube, com ordem para ficar sob vigilância apertada. O Sturmbannführer (Major) Cecil Adolf Nassenstein era um ex-oficial do serviço de segurança das SS (as SD) em Lisboa, um hardcore nazi, segundo os serviços secretos Aliados, que nele tinham um interesse muito especial.
Em 1945 tanto Wissmann como Nassenstein - que os Aliados conheciam também como Nogenstein, Rode, ou Rhodes - constavam de uma curta lista de nazis que os ingleses entregaram às autoridades portuguesas. Ambos deveriam ter seguido viagem para Londres em novembro desse ano, mas, para vergonha da polícia portuguesa, tinham escapado.
A caminho da rendição total
Em fevereiro de 1944, António de Oliveira Salazar confidenciou ao ministro plenipotenciário da Alemanha em Lisboa, o barão Oswald Von Huyningen-Huene, que acreditava que a segunda frente Aliada não iria alcançar nada de decisivo; que as forças em confronto se equivaliam e que por isso esperava ainda uma guerra prolongada. O relatório do encontro, enviado para Berlim, foi intercetado pelos serviços secretos britânicos, que, numa nota interna, consideraram sombrios os pontos de vista revelados pelo então presidente do Conselho.Apesar das convicções do ditador português reveladas naquele encontro, era já evidente que o regime português projetava um futuro onde adivinhava a vitória Aliada.
Ainda em agosto de 1943 fora conhecida a cedência aos britânicos da base das Lages, nos Açores, permitindo à aviação Aliada fechar o que era conhecido como o buraco do Atlântico, uma vasta área sem cobertura aérea aproveitada pelos u-boats para atacar os comboios de navios Aliados.
Também durante 1943 a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado - a PVDE, antecessora da PIDE - deixou de fazer vista grossa às movimentações dos serviços alemães, expulsando agentes e prendendo portugueses que com eles colaboravam.
Em junho de 1944, o Governo anunciou o fim da venda, a ambos os lados, de volfrâmio (ou tungsténio), essencial para reforçar o aço das blindagens. Os mais prejudicados foram os alemães que tinham então em Portugal o principal fornecedor deste minério. A 6 deste mês a futilidade das previsões de Oliveira Salazar ficaram demonstradas com o desembarque anglo-americano na Normandia (6 de junho), que acelerou o descalabro das tropas nazis já a recuar nas frentes italiana e a leste.
O diplomata estava na capital portuguesa desde 1934 e era tido como um amigo de Salazar, que não escondeu o desagrado com a decisão alemã. Quando em outubro foi pedida a anuência portuguesa para nomear para o seu lugar Sigismund Freiherr von Bibra, então conselheiro em Madrid, o assunto foi mantido em banho-maria. O facto de ser considerado um nazi inveterado, mais um agente político do que um diplomata, também não terá ajudado. O silêncio e alguns recados “não oficiais” deixaram perceber a Berlim a deceção de Lisboa.
Em janeiro de 1945, pediram a acreditação de outro diplomata, mas mais uma vez o Ministério dos Negócios Estrangeiros não mostrou pressa. Gustav von Halem, a última face da diplomacia nazi, chegou a Portugal a 13 de março, mas só viu as credenciais confirmadas a 12 dias do fim da guerra.
No curto período que passou em Lisboa, viu as notícias a piorar todos os dias. Na madrugada de 25 de abril foi testemunha do incêndio que consumiu a cobertura da sua Legação, na rua do Pau da Bandeira. Na imprensa os comunicados Aliados estavam cheios de nomes de cidades alemãs que caiam tanto a leste como a oeste. Combatia-se às portas de Berlim. No fim do mês a imprensa portuguesa noticiava dezenas de suicídios entre os líderes nazis da cidade de Leipzig. Foi conhecida a captura e fuzilamento de Mussolini.
Hitler suicidou-se a 30 de abril, mas a rádio do Reich tornou pública a sua morte “em combate” apenas na noite de 1 de maio. Na manhã desse dia, pelas 11h00, von Halem tinha acompanhado, junto ao Tejo, a chegada do paquete sueco Drottningholm, vindo de Istambul com cerca de 300 alemães - agentes diplomáticos e consulares - trocados por cidadãos turcos. Embarcados foram mais 200 cidadãos alemães que esperavam o repatriamento há meses em vários locais do país. A maioria eram também diplomatas e seus familiares, chegados no ano anterior da Argentina, e que ainda não tinham conseguido regressar a casa. Dois dias depois zarparam para Gotemburgo, na Suécia, de onde seguiriam para a Alemanha por terra.
Quando o Governo ordenou a colocação das bandeiras a meia haste por causa da morte de Hitler desencadeou-se um uma tempestade diplomática. A notícia foi publicada no jornal Times e causou estupefação no Foreign Office britânico - o equivalente ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) - que pediu esclarecimentos a Ronald Campbell, o embaixador em Lisboa. O diplomata tentou defender a opção, recordando que Portugal e Alemanha mantinham relações diplomáticas e que Salazar - do qual era um admirador - era um rígido defensor de formalidades, estando “tão afastado do mundo que esperava, certamente, que todos vissem o seu acto da mesma forma desprendida como ele o via”.
Reconhecia também que ele se mostrara surpreendido pela “violência” das reações e tentava justificar-se perante as diversas representações diplomáticas. “Não me recordo de ver o Governo português reagir com tanta rapidez”, concluía.
Em Londres o embaixador português, o duque de Palmela, teve de se explicar depois da “afronta”, que tornava difícil ao Governo britânico justificar, junto da opinião pública, a colaboração entre os dois países. O representante português argumentou que se mantivera no mínimo o protocolo, colocando apenas a bandeira a meia haste, enquanto semanas antes, após a morte do presidente americano Franklin Roosevelt, se tinham disparado também salvas de artilharia e realizado visitas de cortesia à embaixada.
Enquanto os britânicos lamentavam “o triste espetáculo de ver de luto a bandeira de um aliado (por alguém) reconhecido pelo mundo como o criminoso de guerra número um”, outros faziam ataques mais radicais. A Rádio Brazzaville considerou que o gesto “não foi uma simples convenção de neutralidade”, mas uma manifesta “prova de condolências por um bandido” e um “insulto aos heróis abatidos nesta luta; um insulto às vítimas dos campos de concentração; (...) um insulto aos homens que conduzem e procuram o bom termo desta luta”.
No dia 6 de maio, às 18h30, Van Halem foi chamado ao MNE. O secretário-geral, Teixeira de Sampaio, recebeu-o em nome do ministro, que era Oliveira Salazar, e informou-o que face à não existência de um governo em Berlim dava por encerradas as relações diplomáticas entre os dois países. A Legação seria encerrada e ficaria à guarda das forças policiais portuguesas.
Na tarde do dia 7 de maio de 1945, mal a notícia da rendição incondicional da Alemanha se tornou pública, as ruas das principais cidades, vilas e aldeias em todo o país encheram-se de gente que festejava o fim da guerra. Bandas e fanfarras engalanaram-se e sairam à rua. Houve foguetes em vários locais. As celebrações estenderam-se noite dentro e continuaram no dia seguinte.
A reação inicial terá sido expontânea, mas quando surgiram indícios de organização a PVDE ficou atenta pois temia que a oposição - o reviralho - aproveitasse o momento. Afinal tinham ganho as democracias.No dia 9 de maio ainda se assistiu a maciças manifestações de agradecimento frente às embaixadas americana e inglesa em Lisboa, mas quando o reviralho quis continuar a mobilização, Salazar antecipou-se e proibiu novas concentrações. As entradas na capital foram vigiadas e os ajuntamentos dispersos.
O entusiasmo seria aproveitado pela União Nacional que para 19 de maio, um sábado, marcou uma grande manifestação de agradecimento a Salazar por este ter mantido Portugal fora da guerra. Milhares de pessoas de todo o país afluíram à capital.
A PVDE não tinha apenas o reviralho debaixo de olho. Na mesma situação estavam os alemães que se encontravam no país. Como já vimos algumas centenas tinham chegado a Lisboa em 1944, em resultado de trocas de diplomatas ou expulsões. Outros entraram ilegalmente. Com a França transformada em campo de batalha e os Aliados a controlar com mãos de ferro todas as movimentações navais tornou-se difícil efectivar o seu repatriamento.
Para a maioria o regresso só aconteceria - sob vigilância Aliada - muito após a rendição. Os primeiros transportes com grupos de grande dimensão tiveram lugar a 11 de março e 27 de agosto de 1946 quando cerca de duas centenas de homens, mulheres e crianças embarcaram no Tejo no britânico “Highland Monarch” e no americano “Marine Marlin”. Em 1948 a PIDE ainda previa gastar cerca de um milhão e quinhentos mil escudos com “encargos resultantes da manutenção de súbditos alemães, retidos em Portugal, por motivo da guerra”.
Pelo menos desde novembro de 1944 que o Serviço de Informações da Legião Portuguesa os controlava. Nos seus relatórios à PVDE encontram-se pequenas biografias dos principais protagonistas e detalham-se reuniões a altas horas da noite; misteriosas movimentações de viaturas; rumores sobre malas de dinheiro; contactos com portugueses germanófilos; adiantamentos de ordenados e chorudas gratificações a funcionários portugueses, como forma de manter lealdades.
As informações costumam ser muito objectivas, mas por vezes também surgem notas como as deixadas pelo legionário “H.O.” sobre um tal João Verdelhão: “Fizeram-no chefe do pessoal menor dos Serviços de Imprensa Alemã na Rua do Castilho. Supõe-se pessoa importante. Manda portanto. Diz maravilhas do (HERBERT) WISSMAN, que é um dos melhores chefes que tem vindo cá etc… Por contacto destes serviços é Nazi, por imbecilidade crente na vitória alemã. E daqui não sai. Prefere não fazer nada a trabalhar para os aliados”.
Mal se percebeu que a guerra ia terminar, o Governo enviou os nazis importantes para longe de Lisboa e do Porto, na tentativa de os afastar da sua rede de contactos. Nassenstein foi expulso, mas não conseguiu visto para atravessar Espanha e em fins de abril de 1945 foi enviado para Almeida. Em maio já estava nas Caldas das Taipas, perto de Guimarães, e em novembro foi informado que os Aliados o queriam interrogar em Inglaterra.
Outros 12 nazis membros do núcleo duro do Reich em Portugal foram também informados que no dia 19 de novembro de 1945 teriam à espera no Aeroporto da Portela um voo especial para os levar a Londres. A PVDE, encarregada de os acompanhar e meter no avião, falhou na sua missão e apenas três dos 13 convocados fizeram a viagem. Dois internaram-se no Hospital Alemão, dizendo-se doentes, e sete simplesmente desaparecem. Nassenstein e Wissmann estavam no último grupo.Portugal tem pouco interesse em manter um grande número de alemães no seu território, mas Salazar vai negociar um conjunto de diretivas que facilitarão a permanência aos que se encontravam por cá há mais tempo.
Não se nota grande esforço para impedir que os tripulantes de dois u-boats afundados pelas tripulações ao largo da Nazaré e do Porto, nas semanas que se seguiram ao armistício, sejam levados diretamente para campos de prisioneiros aliados ou que diplomatas vindos de outros países sejam embarcados em 1946 nos já referidos “Highland Monarch” e “Marine Marlin”.
Por outro lado, é dada escolha aos que tinham nascido ou tido filhos em Portugal, ou tinham casado com uma portuguesa. Acordou-se também que os aliados ocidentais não podiam entregar aos russos um repatriado vindo de Portugal, a não ser que este último concordasse. Em 1952, ainda se troca correspondência entre Aliados e o MNE sobre uma lista de hardcore germans que os portugueses tinham colocado sob proteção.
De nazi a desnazificado
Cecil Adolf Nassenstein Camp não integrava nenhum grupo que os portugueses quisessem proteger. Era viúvo de uma alemã, tinha filhos alemães, chegara a Portugal apenas em 1942, pertencia às SS e fora um dos envolvidos na vergonha que a PIDE passara em novembro de 1945. Do interrogatório feito em Lisboa foi possível perceber que estava no apartamento da Avenida António Augusto de Aguiar desde março de 1946, tendo sido apresentado como funcionário da Legação polaca. Disse ainda saber que Wissmann pretendia suicidar-se caso fosse capturado, pois temia ser entregue aos russos, e que ele também tinha um frasco de veneno semelhante numa caixa de tabaco, na mesa-de-cabeceira. Só não o conseguira alcançar.
Durante o tempo que estiveram nos quartos, saíram pouco e apenas o faziam de noite. Os dias foram passados maioritariamente a escrever à máquina.Wissmann, que tinha ligações com portugueses germanófilos, escreveu durante esse período - e sob pseudónimo - artigos sobre os julgamentos de Nuremberga, a Índia e a França no jornal A Nação, uma publicação com uma forte linha anticomunista e anti-aliada.
O caso Nassenstein passou pelas mãos do diretor da PIDE, o capitão Agostinho Lourenço, que informou pessoalmente os britânicos da sua captura. Por apresentar tendências violentas e suicidas, foi metido num colete de forças e pretendia-se entregá-lo o mais depressa possível aos Aliados. Meses antes tinham capturado outro nazi, um tal de Sumbeck que, como Wissmann, também se tinha suicidado. Lourenço não queria que a sua Polícia Internacional ficasse rotulada de assassina ou incompetente.
O Amt VI (Departamento VI) das SS em Lisboa, chefiado por Cecil Nassenstein, tinha por missão recolher informações e coordenar o envio de agentes para as Américas, mas essa não era a única razão por que os Aliados o queriam interrogar. Em finais de 1944 tinha sido apreendida no aeroporto de Lisboa uma grande quantidade de diamantes nas mãos de um dos seus correios e uma considerável quantia de dinheiro - talvez meio milhão de marcos - teria ficado sob sua tutela nas últimas semanas do conflito. Tratava-se de um terror fund, que segundo os ingleses deveria financiar a resistência nazi às democracias e ao comunismo.
Na manhã de 16 de janeiro, saiu de Lisboa para Gibraltar um avião especial com Nassenstein a bordo. A Londres chegou no dia 6 fevereiro no porta-aviões "HMS Triumph", mas o destino final foi o complexo prisional de Neuengamme, perto de Hamburgo, um antigo campo de concentração nazi que os ingleses transformaram numa prisão para ex-membros das SS e dos serviços de segurança do Reich. Nos interrogatórios negou alguma vez ter enviado agentes para as Américas e ainda menos ser gestor dos milhões destinados ao terror fund.
Enquanto esteve em Gibraltar, escreveu uma carta destinada a uma tia inglesa e outra aos dois filhos. Nelas assegurava que nunca tinha feito mal a ninguém e acreditava que seria condenado à morte. Segundo uma biografia, elaborada por Alex Peters, depois de libertado assumiu funções numa fábrica de plásticos onde conseguiu ascender a diretor. Nos anos 70 esteve envolvido numa troca de espiões entre soviéticos e alemães. Faleceu em 1981, deixando uma valiosa coleção de gravuras que se tornou a parte mais importante da “Coleção Alta Villa” que se encontra desde 1983 no castelo de Eltville, a sua cidade-natal.