História e ficção do fim de Sanjurjo, o ditador espanhol que não chegou a sê-lo

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
O general Sanjurjo (ao centro) ao embarcar na Quinta da Marinha para o voo fatídico DR

A narrativa de “O nosso homem no Estoril” faz a radiografia de uma Espanha dominada pelo espírito conspirativo da classe política e das elites militares nas primeiras décadas do século XX. O livro anda à volta do desastre aéreo que enfia Sanjurjo, o general que se acredita poderia ter ocupado o lugar de Francisco Franco, contra uma parede na Quinta da Marinha. Factos que aconteceram há 80 anos.

O thriller político de A. Travers puxa para a ação uma vila do Estoril que é poiso de protagonistas da esquadria geopolítica espanhola, onde pontuam planos de submissão de um Portugal deletério para as pretensões espanholas de edificação de uma unidade ibérica com Madrid à cabeça.

Como se resume na contracapa, "a 20 de Julho de 1936 (...) dois dias depois de começar o levantamento nacional contra o governo republicano de Madrid, uma avioneta despenha-se na Quinta da Marinha" - levava de regresso a Espanha "José Sanjurjo, o general que ia dirigir o levantamento".

Quem era Sanjurjo - um conspirador nato destinado a assumir as rédeas do império espanhol ou um "ignorante nas artes da política", como refere ao seu secretário? Um militar garboso e destemido ou um oportunista que aguarda por resultados garantidos?

As biografias apontam o destacado militar que, graças aos feitos durante as primeiras três décadas do século XX, em particular na guerra em Cuba e nas batalhas em Marrocos, ganhou as graças do rei Afonso XIII. Ocuparia cargos de destaque durante a monarquia alfonsina e na ditadura de Primo de Rivera; e também durante os primeiros tempos da Segunda República. Mas encerra a sua intervenção afastando-se do novo regime republicano e protagonizando uma tentativa falhada de golpe de Estado.

A Sanjurjada de agosto de 1932 sela-lhe o destino: detido, encarcerado e condenado à morte, vê a pena comutada e deixa o cárcere quando estávamos no segundo biénio da Segunda República. Exila-se então em Portugal, de onde nunca chegará a sair.
Um secretário muito particular

O livro arranca com a história pessoal de Agustin Sánchez, um rapazinho de aldeia que passa pelo seminário na fuga da miséria. Por miséria tem ainda de fugir às mãos de padres demasiado amigos das crianças e vai dar a Madrid na companhia de um colega seminarista que tem na capital, à sua espera, um irmão operário sindicalista entregue à luta social.

Agustin inicia uma ascensão que o leva a sítios de poder onde se cruza com os protagonistas políticos da década de 1930 e da época da Guerra Civil espanhola. Vive-se um período de instabilidade em que vencem os dotes conspirativos apurados na convivência com chefes de grupos mais ou menos violentos, falangistas, dirigentes partidários da direita e da esquerda, nacionalistas e republicanos.

Desiludido com uma marca de nascença que o remete para os bastidores da História, Agustin apura-se no manejo do motor que põe em marcha as conspirações e aplica-se na arte do recado que vai e vem e que à vez empurra nacionalistas e republicanos, direita e socialistas, dentro e fora do poder.

No trajeto que planeia para si, para compensar “a falta de berço”, Agustin chega a ser o que mais poderia almejar: torna-se secretário e conselheiro de Sanjurjo, o general cuja imagem voga entre a galhardia da batalha (Cuba e Marrocos) e a decadência dos prostíbulos de Espanha. Ou a diletância dos salões das classes privilegiadas.

O protagonista é uma personagem fictícia. Mas é ele, Agustin Sánchez, quem tece neste livro o fio condutor pela trama real de uma Espanha mergulhada no caos do primeiro quartel do século XX. E das décadas seguintes.
Jaime Cortesão
O conspirador - ex-seminarista, ex-ajudante de alfaiate, ex-contabilista dos melhores livros de Madrid, ex-instrutor de latim das meninas-família sempre inacessíveis às suas origens humildes, e novel homem do Direito - vê nas reuniões recônditas uma escada social e, fruto de argúcia e perícia parlamentar, ganha créditos que o farão cruzar-se com José António Primo de Rivera, o fundador da Falange Espanhola, que era também o primogénito de Miguel Primo de Rivera, militar e ditador espanhol, fundador da organização fascista União Patriótica, inspiradora da União Nacional portuguesa.

Pelo caminho também trava conhecimento com Juan Antonio Ansaldo, aristocrata e aventureiro político espanhol, piloto e ativista monárquico, falangista, e mais tarde conspirador contra o ditador Francisco Franco. Serrano Suñer, cunhado de Francisco Franco, apelidado justamente de “cunhadíssimo” por ser o arquétipo do lambe-botas que vai esculpindo o seu pecúlio nos interstícios do poder, pedir-lhe-á autoritariamente que esconda o papel de Franco - nesta história o autor moral - no atentado contra o seu antigo comandante nas campanhas de Marrocos, o general José Sanjurjo.

Também o médico e historiador Jaime Cortesão acabará por ter uma linha na história. Uma linha em que é cosido a um desembarque de armas que chegara às costas das Astúrias a bordo do navio "Turquesa" e aos movimentos basco e catalão para ser de imediato colocado no departamento das conspirações destinadas a desagregar a Espanha.

Jaime Cortesão surge naquela parcela do livro que trata a batalha rua a rua, cidade a cidade, entre energias sociopolíticas que se excluíam, que não podiam conviver já então: os "vermelhos" e os outros. Os "vermelhos" contra todos, a esquerda que gerava já então desconfiança em todos, mas que, depois de uma greve geral a falir em todo o território, pegara em armas nas Astúrias e obrigara Francisco Franco, recém-instalado no Ministério de Guerra, a fazer desembarcar em Gijón a brigada moura do tenente-coronel Yagüe. Para submeter os mineiros que subiam à batalha de cigarro numa mão e a dinamite na outra. À frente dos revoltosos estava o lendário anarquista José María Martinez e com ele toda a baía era controlada pelo movimento operário.

Mas a Legião que só obedecia a Franco chacinou os insurrectos e saqueou o que encontrava pela frente, casas de bem e as outras, indistintamente. Yagüe revela-se para os asturianos, até para as famílias nacionalistas, um remédio pior do que a doença. O fiel de Franco termina a campanha de bolsos cheios, deixando os cemitérios lotados e as prisões a rebentar pelas costuras.

Neste ponto, já a Alemanha de Hitler estava atenta às movimentações ibéricas para perceber de que general ou generalíssimo se podia servir para proceder à subjugação da Velha Europa e erguer uma nova ordem no continente.
Estoril

Quando Sanjurjo rumou ao exílio no Estoril, o livro mudou a sua base narrativa para a vila que era pouso de reis, espiões, embaixadores e arranjos de bastidores.

E, depois do percurso do antigo menino de seminário nos recônditos das lutas de grupos e grupúsculos - concilia credos políticos inconciliáveis para o cidadão comum, mas não para o homem que se predestina e se conjura ao sucesso -, círculos onde procurava preservar a aura do general, um ditador adiado que alimenta a largura pélvica com boa vida - e a alarga ainda pelos encantos de Dona Branca Silva, aristocrata pseudo poeta, e outras moças à mão -, é a vez de Agustin se juntar ao patrono na vila encantadora que lhe revela a existência do mar para além dos compêndios. Estão criados os ingredientes para que em breve se torne o "nosso homem no Estoril".

Com a iminência do levantamento contra a república, é chegado o momento de Sanjurjo ocupar o seu lugar na história. Agustin andara meses a puxar cordelinhos e a atar nós no seio de anarquistas, falangistas, republicanos, nacionalistas e outros istas que houvesse. Todos procuravam um lugar ao Sol nessa Espanha estilhaçada a entrar na guerra civil.

O atentado contra José Sanjurjo Sacanell em vésperas da entrada triunfal em Madrid, à frente do "levantamento nacional", leva agarrado um laivo de lenda: o general terá insistido em embarcar na avioneta o seu conjunto de fatos de gala e a avioneta despenhou-se precisamente por não ter ganhado altura suficiente na descolagem.

Acidente ou sabotagem? Um mecânico fiel a Ramón Franco, por acaso irmão do futuro ditador, fora encarregado de fazer a inspecção à aeronave por imposição de Agustin Sánchez, que recusou entregar tarefa tão vital a outras mãos. Entra em acção um polícia português, o inspector Miguel Neves, que nos dias seguintes, nos meses seguintes e nos anos seguintes se confrontará com esse emaranhado de interesses políticos que atiram suspeitas dos nacionais para os republicanos, dos anarquistas para os falangistas. E não menos vivo para o inspector: o interesse do regime de Salazar - a prioridade é entalar os comunistas.

O elo de todos os fios da teia - um espelho da (des)organização política espanhola - é contudo e ainda Agustin Sánchez. Obrigado a voltar aos factos pela mão de Rosa Casaco e do cadáver de Humberto Delgado, mal escondido de um pastor espanhol, em terras espanholas, vê como três décadas depois ainda é atingido por estilhaços daquele episódio que já estava nos livros de História. Mas, pior, que dificilmente se livraria da suspeita de ter sido de facto "o nosso homem no Estoril", o despachante de uma encomenda que veio de cima. O mais alto possível. Sim, Francisco Franco - "Paquito" ou "Franquito", nas palavras do Sanjurjo desta história.

"Franquito, como un cuquito, va siempre a lo suyito" - gozava Sanjurjo. Em português: Franquito, como um cuquito, trata sempre das suas coisitas.
Verdade e ficção
Já ficou dito: o fio do labirinto espanhol daquelas décadas conturbadas é desenrolado por Agustin Sánchez. Mas o ex-seminarista de origem humilde é uma personagem ficcionada, disse o autor ao online da RTP.

Personagens reais e históricos são José Sanjurjo Sacanell, José António Primo de Rivera, Juan Antonio Ansaldo e Serrano Suñer. Real é igualmente a história do "Turquesa", como são reais as ligações estabelecidas entre Jaime Cortesão e separatistas espanhóis, mormente o industrial basco Horácio Echevarrieta. Os exilados portugueses eram conhecidos como o grupo dos "Budas", que incluia ainda nas suas fileiras Jaime de Morais, Alberto Moura Pinto, Nuno Cerqueira Machado Cruz, Ernesto Carneiro Franco ou Francisco Oliveira Pio.

Comungando do ideal republicano, mas com fortes pontos de contacto com o socialismo, o grupo procurara refúgio na capital espanhola (pelo que também era designado por "Grupo de Madrid"). Os "Budas" opunham-se ao regime ditatorial de António Oliveira Salazar e procuravam no estrangeiro todos os apoios possíveis para derrubar o ditador.

No palco de Lisboa são ficcionadas as personagens do inspector Miguel Neves e do mecânico espanhol Pérez. Também é ficcional um mecânico português, ligado à histórica "Revolta dos Marinheiros" (Setembro de 1936), e presente no aeródromo de Alverca, onde fora feita uma primeira mas incompleta vistoria ao avião do piloto Juan Ansaldo. Teixeira de seu nome, tinha à perna a PVDE. A polícia política cumpriria assim os desejos de Salazar de atirar para os comunistas as responsabilidades do atentado. A pista a seguir era a de um Teixeira sabotador às ordens do partido.

De qualquer forma, explica o autor ao online da RTP, também a história do atentado "contra Sanjurjo é ficcional, ainda que esta teoria tenha tido a sua popularidade nos meios antifranquistas. Embora Ansaldo, o piloto que sobreviveu à queda da avioneta, tenha admitido nas suas memórias que essa seria uma das explicações possíveis. Há em todo o caso que ter em conta que o monárquico Ansaldo escreveu as suas memórias quando já havia cortado definitivamente relações com Franco".

Na teia que envolveu a morte da Sanjurjo, é entretanto verdade uma outra linha narrativa explorada no livro: o embaixador republicano em Lisboa pressionou o Governo de Salazar a proibir a viagem e desse modo empurrou a avioneta para o discreto aeródromo da Quinta da Marinha. Igualmente verdade é que o general insistiu em embarcar os seus trajes de gala, o que mereceu uma objecção inicial do piloto. Mas este facto não prova que fosse a vaidade a causar a perda de altura da aeronave.

E, como é ficcionada a personagem de Teixeira, assim o é igualmente a obsessão de Salazar: pôr a PVDE na pista do atentado anarco-comunista.

Há, por último, o caso de uma carta enviada por Ramón Franco ao mecânico Pérez, seu mecânico e confidente. Nessa carta, desculpa-se Ramón por se ter passado dos republicanos para os nacionalistas, traindo um passado de camaradas com ideais comuns. Confessa aí a trama que desemboca na história do "nosso homem no Estoril" - Agustin Sánchez, o homem de mão para pôr em marcha o atentado.

A carta passa de Pérez para Teixeira num encontro de acasos. A carta, produto da imaginação do escritor, a ser encontrada, permitiria ao igualmente imaginário Miguel Neves resolver o processo que em má hora lhe foi entregue. Ora, tal como Pérez e Teixeira, também essa epístola é inexistente para os livros da História.
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