"Há uma guerra que tem de ser feita. Aceitar forças estrangeiras nesta fase seria capitular"

Em entrevista à RTP, o investigador Fernando Jorge Cardoso aborda as razões profundas que levaram aos ataques em Moçambique nos últimos anos. Com a maior mediatização do conflito após o ataque a Palma, em março de 2021, crescem os apelos a uma intervenção externa que leve a uma resolução rápida do problema. No entanto, o investigador especializado em temas africanos e de desenvolvimento defende que esse apoio internacional deve seguir determinados moldes e que o combate deve ser feito sob coordenação das forças moçambicanas, pese embora a falta de preparação e de recursos.

Ao fim de mais de um mês do ataque a Palma, ainda não se sabe ao certo quantos mortos e feridos resultaram dessa investida, a 24 de março de 2021. Mas a situação evidenciou como nunca o que se tem passado em Moçambique nos últimos anos, com assaltos constantes no norte do país, particularmente na província de Cabo Delgado, desde 2017.

Deste conflito já resultaram pelo menos 2.500 mortos e mais de 700 mil deslocados. As autoridades moçambicanas conseguiram recuperar o controlo da vila de Palma ao fim de dez dias, mas os ataques podem voltar a ocorrer na região.

Fernando Jorge Cardoso, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL na área de temas africanos e do desenvolvimento, explica, em entrevista à RTP, que o conflito em Moçambique surge devido a um conjunto de fatores, desde logo o que classifica como “má governação, abuso de autoridade e ressentimentos por parte da população”, situações que não ocorrem só na província de Cabo Delgado.

“Parte da população ouviu falar há muito tempo da exploração de gás a ser feita não exatamente na zona de guerra, mas mais para oeste, no distrito de Montepuez. Apesar disso, não sentiram uma melhoria nas suas condições de vida ou um interesse particular por parte das autoridades”, refere.


Muitos investigadores apontam para esta como uma das principais explicações da insurgência, como uma espécie de “revolta popular”. Mas a narrativa da má governação vai muito para além disso, refere Fernando Jorge Cardoso.

“A elite que está no poder é uma elite que tomou conta da Frelimo, e é a Frelimo que tem governado Moçambique desde a independência. De tal maneira que existe desde que começou a privatização dos bens públicos, nos anos 90. Este conjunto de pessoas, muitas delas ligadas ao Governo ou mesmo com cargos governamentais, começaram a ficar mais preocupadas em acumular riqueza, em ostentar riqueza, em criarem grupos de apoio da mesma língua, da mesma religião, mas sempre com um traço comum: nós fazemos parte da elite”, argui.

A elite em causa "governa o país com um comportamento negligente relativamente às necessidades da população".

Relativamente a Cabo Delgado, o investigador insiste que a província deveria ter sido tratada de outra forma "a partir do momento em que é descoberto o gás".

"Deveria ter havido um cuidado particular. Isto não aconteceu muito por ineficácia, por má estratégia política mas também pelo facto de haver mais interesse em ver como é que cada um pode lucrar com esta situação”, acrescenta.

“O Governo de Moçambique tem esta marca, que começa quando foi descoberta a questão da dívida escondida em 2015. Este Presidente de Moçambique era o ministro da Defesa nessa altura, fazia parte do Governo. Mesmo que não estivesse envolvido sabia o que estava a acontecer”, refere o investigador. A situação acabou por criar desconfiança relativamente à credibilidade do Governo de Moçambique entre a própria população, explica.

“A ineficácia, o desleixo, a má governação em Moçambique não se passa só em Cabo Delgado. É geral. Aliás, falando com as organizações da sociedade civil, com as organizações religiosas, o sentimento é muito comum. Só mesmo os órgãos oficiais, as autoridades oficiais é que dizem o contrário", acrescenta.

E no entanto apenas esta "situação favorável à eclosão de conflitos e de problemas" não é suficiente para explicar o que se passa no norte de Moçambique. "Por mais verdade que tudo isto seja, não é suficiente para provocar a guerra. Há algo mais a acontecer”, adianta.
Radicalismo marginalizado durante décadas

Daqui surge a tese da “agressão, não só externa, mas do ponto de vista ideológico” vinda também do interior de Moçambique. Uma agressão conduzida por seguidores de “uma seita, de natureza salafita, com interpretação literal do Corão”, destaca o investigador.

Estes insurgentes “procuram impor pela força preceitos de natureza religiosa, mas, mais do que isso, preceitos de comportamentos e de vida social”.

“Quem não os aceita torna-se um alvo das suas ações sobre vários pontos de vista. Estas seitas argumentam que durante o tempo de guerra é perfeitamente aceite, segundo os ensinamentos do Profeta, que as pessoas sejam mortas, normalmente por decapitação, que é uma forma de inspirar o terror, que sejam escravizadas e que as mulheres possam servir como escravas sexuais entre os combatentes”, refere Fernando Jorge Cardoso.

Esta segunda interpretação sobre o conflito também coloca em destaque o processo de radicalização dos moçambicanos em curso já há várias décadas, mas que não corresponde à realidade e às práticas dominantes do país.

"Muitos moçambicanos foram recebendo bolsas e estudar para escolas, chamadas madraças, mesquitas, na Arábia Saudita e noutros países do Médio Oriente. Ao regressarem procuraram aplicar os seus ensinamentos e não foram bem recebidos. O Islão praticado em Moçambique é um Islão sufi, moderado, um islão de confrarias, um islão que convive pelo menos desde há 60 anos bastante bem com a Igreja Católica. Há uma espécie de pacto de boas relações entre os principais credos religiosos em Moçambique”, explica o investigador.

As ideias radicais foram marginalizadas pelos próprios responsáveis islâmicos e imãs do país e grande parte acabou por se fixar no norte de Moçambique, em particular na província de Cabo Delgado.

“Estes grupos tentaram criar mesquitas, madraças. Foram muito hostilizados por parte da comunidade islâmica e tratados com alguma complacência por parte das autoridades. Ficaram revoltados com isso até ao ponto em que, com uma ligação estreita que têm com outros radicais que professam o mesmo tipo de pensamento no sudeste da Tanzânia, acabaram por iniciar ações de natureza violenta em 2017”, explica.

A tentativa de imposição de uma ideologia a ocorrer em Moçambique nem sequer constitui uma guerra religiosa, já que é uma guerra contra os próprios muçulmanos a ocorrer numa zona do país de maioria muçulmana. “Esta seita considera que os muçulmanos que não aceitam esta ideologia são apóstatas e que é perfeitamente possível aos muçulmanos apóstatas aplicar regras ainda mais duras do que se aplica relativamente a um inimigo religioso, de outra religião. Na verdade, o número de refugiados e o número de mortos são basicamente muçulmanos”.

Cabo Delgado, um território “maior do que Portugal”, com cerca de dois milhões de 500 mil habitantes, em grande parte muçulmanos, tem nesta altura mais de 700 mil refugiados. É o centro da investida, em que a população civil tem sido alvo indiscriminado.

“Nenhum grupo que procura ou que tem o apoio da população utiliza a população como alvo deliberado. Obviamente também atacam autoridades, instalações, etc, mas tudo isto ao mesmo tempo que matam as pessoas para espalhar o terror, a insegurança”, adianta Fernando Jorge Cardoso.

O investigador sublinha que existe até uma associação Wahhabi em Moçambique. "Esta associação é legal, está registada, mas declarou desde o início a sua oposição total a esta seita, também de inspiração salafita, que faz a guerra em Cabo Delgado. Porém, as práticas destes salafitas começam do mesmo sítio, de pessoas que vão estudar para fora e que voltam radicalizadas, mas que não vão fazer a guerra, vão fazer a pregação”, explica.
Exploração de gás natural

Outra das explicações que tem sido utilizada na justificação do conflito prende-se com a exploração dos recursos naturais numa zona especialmente rica de Moçambique. “É uma tese tirada da cartilha que diz basicamente que num sítio em que se descobre petróleo e gás, em países frágeis, estes recursos podem ser fonte de enriquecimento para as companhias. Onde é que este argumento cai por terra? É que a exploração de gás ainda nem começou, o que temos neste momento são contratos de gás e alguns trabalhos a decorrer, trabalhos que estão paralisados neste momento. A expetativa em relação à futura exploração não financia terroristas. Não se pode atribuir a culpa da eclosão desta guerra à existência do gás”, refere Fernando Jorge Cardoso.

“As riquezas naturais, o gás, não estão a financiar a guerra. Há teorias da conspiração que dizem que é a própria Total a financiar os terroristas com o objetivo de diminuir a percentagem da exploração do gás natural com que o Governo moçambicano pode ficar. Mas é uma especulação que não corresponde à verdade”, defende.

Para o investigador esta é uma análise “rebuscada e errada”, ainda que a guerra em curso afete de forma evidente “os calendários de exploração de gás” e mesmo à retirada por parte da Total dos seus trabalhadores em Afungi, anunciada esta segunda-feira.

A guerra neste momento é que originou a paralisação do gás. E não foi o gás que originou a eclosão da guerra. Estes fatores estão ligados, mas estão ligados de forma inversa”, argumenta.


Algo semelhante acontece em relação aos vários tráficos ilícitos – marfim, madeiras preciosas, drogas pesadas – que passam por Moçambique, redes que são muito anteriores à guerra em curso e não estão na origem do conflito, argumenta Fernando Jorge Cardoso.

A guerra não vem beneficiar o tráfico. Ele já existia, o tráfico não precisava da guerra para continuar. Precisava sim de um estado frágil e que olhasse para o lado. A guerra apenas vem baralhar isto. Posso dizer que historicamente, não seria nada de novo que a continuação da guerra viesse a provocar outra coisa: os combatentes começarem a taxar os traficantes”, aponta o investigador. Ou seja, os vários tráficos com passagem por Moçambique que existem há vários anos podem acabar a financiar os terroristas.

“Eles não vão tornar-se traficantes. É mais fácil ter uma arma e roubar do que andar a recolher rubis ou no corte de madeira. Mas podem taxar”, acrescenta o investigador.
A ligação ao Daesh
Poucos dias após o ataque de Pemba, o autoproclamado Estado Islâmico veio reivindicar a ofensiva. Só que o Estado Islâmico não comanda propriamente as operações em Moçambique, defende Fernando Jorge Cardoso.

“Vamo-nos por na pele desse grupo e dos seus aliados. Sem dúvida que o chamado Daesh, através da sua empresa de comunicação, disse que aquilo era um ataque deles. Mas o Estado Islâmico é uma ideia. A partir do momento em que foram derrotados, em que o califado foi derrotado no Iraque e na Síria, esta ideia manteve-se e está presente em milhares de pessoas que estão em vários países do mundo. Qual é esta ideia? Criar um califado na terra em que seitas impõem o Islão como a religião oficial. Eles admitem outras regiões, desde que sejam praticadas em privado e desde que paguem impostos ao Estado Islâmico, e desde que se comportem em consonância”, acrescenta.

Defende, por isso, que o ataque só foi reivindicado “por razões de propaganda”.

“Quando eu digo que é uma ideia quero dizer que ninguém sabe quem é que neste momento está a dirigir o Estado Islâmico. O Estado Islâmico, do ponto de vista operacional, funciona a partir de uma ideia central e depois de forma descentralizada. Ou seja, os grupos que pedem a sua afiliação ao Estado Islâmico não recebem instruções de como atacar. Desenvolvem as suas atividades e depois a máquina de propaganda aproveita todas as ações que são feitas em qualquer parte do mundo, independentemente de haver ou não haver uma coordenação. Aproveitam isso em termos ideológicos”, refere.

De tal forma que a tal máquina de propaganda mostra profundo desconhecimento da situação no terreno e até se enganou na localidade ao reivindicar o ataque, argumenta o investigador.

“A prova de que é um aproveitamento propagandístico é que a agência Amaq, quando Palma é atacada, publica uma fotografia em que se vê combatentes com as bandeiras negras do Estado Islâmico, as faixas vermelhas à volta e muitas pessoas à volta deles. Mas depois, focando melhor a fotografia vê-se uma placa a dizer Mocímboa da Praia. Aquilo foi uma imagem recolhida na altura em que Mocímboa da Praia é tomada por estes insurgentes em agosto de 2019. A razão de ser daquelas pessoas estarem todas à volta tem a ver com o facto de eles terem explodido as máquinas multibanco que existiam em Mocímboa da Praia e terem espalhado e entregue o dinheiro todo à população que se juntou com grandes vivas, com um contentamento muito grande. Isto está perfeitamente relatado”, acrescenta.   
Combatentes experimentados

Na visão de Fernando Jorge Cardoso, o conflito em curso em Moçambique tem muito mais que ver com a “tomada de decisões a nível local” que é acompanhada pela “ajuda de combatentes experimentados, com prática estratégica”, que atacam sempre três a quatro sítios ao mesmo tempo, colocando à prova os serviços de inteligência “extremamente débeis” de Moçambique.

“Eles [os terroristas] chegaram a Palma percorrendo cerca de 70 a 80 quilómetros da fronteira da Tanzânia em linha paralela, onde atacam três vilas antes de Palma. As forças moçambicanas que estavam em Palma já sabiam que eles se dirigiam para ali, só que não tinham preparação para conseguir enfrentar um ataque que é feito em três direções simultâneas. A verdade é que estas pessoas, que pensam desta maneira, também estão muito mais dispostas a morrer do que aqueles que estão a defender uma vila de que nem sequer são parte, em que foram colocados”, refere.

Os “shababos” moçambicanos não estão ligados ao movimento al-Shabbab da Somália, mas provocam um tipo de guerra que tem prosperado no continente africano desde 2012. “Há determinados conflitos que têm uma origem local muito mais enraizada em pensamentos que são parecidos, mas não são exatamente iguais”, explica.

Estas diferenças com outros movimentos não implicam que sejam apenas moçambicanos a fazer a guerra. “Este grupo que está atuar [em Moçambique] fá-lo claramente em ligação. As provas são evidentes pelos mortos e capturados, por pessoas que fogem de cativeiro. Neste momento existem combatentes não-moçambicanos, estrangeiros, muito experimentados. Numa primeira fase chegaram os tanzanianos, mas os tanzanianos não são combatentes experimentados, têm mais a parte da ideologia, que está muito ligada a uma das seitas salafitas que teve o seu início no norte do Quénia, mas que as autoridades quenianas rapidamente eliminaram, matando o o principal líder, Sheikh Aboud Rogo. Os seus seguidores acabaram por fugir do Quénia para a Tanzânia e estabeleceram-se de forma mais ou menos pacífica. Levantaram alguns problemas mas depois resolveram funcionar em sistema e foram-se situando na parte sul da Tanzânia. São os seguidores desta seita que fazem a ligação com os seus colegas [em Moçambique] e que desde início estão presentes”.

Os combatentes experimentados a atuar em Moçambique são sobretudo ugandeses, somalis e congoleses, que “aparecem em 2019 após a tomada da cidade que tinha sido proclamada como base da província para a África Central do Estado Islâmico”.

“Quando o Estado Islâmico faz esta proclamação, o Exército congolês toma essa base de assalto em 2019. A base ficava na zona do Kivu, nordeste do Congo, que faz fronteira com o Ruanda, com o Burundi, com o Uganda e também com a Tanzânia. Uma parte desses combatentes, que eram não apenas congoleses, mas também ugandeses, tinham fugido depois do Conflito dos Grandes Lagos para essa zona”, completa.

O local em causa, no nordeste do Congo, é conhecido sobretudo pela abundância de cobalto ou coltan, “minerais raros e absolutamente centrais para a indústria de telecomunicações”, assinala o investigador.

Na visão de Fernando Jorge Cardoso, essa é “a guerra económica mais importante no momento” e explica em parte porque é que Maputo recusa de forma tão veemente uma intervenção externa. “Existem forças das Nações Unidas de 17 mil homens [no Congo] e a única coisa que conseguem fazer é proteger algumas populações, não resolveram absolutamente nada. Essa é uma das razões pelas quais eu acho que o Governo moçambicano tem toda a razão em não permitir a entrada de forças multilaterais em Moçambique, porque iria escapar ao comando central e fragilizar ainda mais a capacidade de intervenção das Forças Armadas, sem resolver absolutamente nada”, adianta. 

No caso de ajudas e intervenções bilaterais “pode-se chegar um acordo, que passa sempre por uma espécie de co-comando”, sem que haja um funcionamento “em paralelo com a estrutura das Forças Armadas moçambicanas", mas antes com as forças "em estreita sintonia”.
Forças moçambicanas fragilizadas

Foi então a partir de 2019 que ugandeses, somalis e congoleses se juntaram aos moçambicanos e tanzanianos e provocaram "um pulo enorme nas táticas e na estratégia militar”. Fernando Jorge Cardoso argumenta que as forças moçambicanas careciam de preparação para um acontecimento desta magnitude também por culpa da constante marginalização do Exército.

“Desde que foi assinado o acordo [de paz] de Roma, que terminou com a guerra [civil] em 1992, ficou estabelecido que as forças da Renamo seriam integradas no Exército, nas Forças Armadas. Mas nada foi dito relativamente à integração na polícia ou nos serviços de segurança. E o que é que na altura o Presidente [Joaquim] Chissano faz? Pura e simplesmente toma a decisão de marginalizar o Exército e de reforçar a polícia, sobretudo a polícia de intervenção e as forças de segurança”, explica o investigador do ISCTE-IUL.

Esta situação manteve-se até muito recentemente e só nos últimos anos o Presidente chegou a acordo com os líderes da Renamo para uma nova abordagem na polícia e forças de segurança.

“[Afonso] Dhlakama entretanto morre em 2018, há uma grande confusão. Esta guerra começa numa altura em que a situação em Moçambique é a seguinte: a polícia de intervenção moçambicana, que atua em ambiente urbano para conter possíveis revoltas, era ao mesmo tempo a força que estava a operar na Gorongosa contra a Renamo, que ainda tinha armas. Então as Forças Armadas moçambicanas foram formando comandos, simplesmente. Os quartéis onde eles estavam eram um caco. Na verdade, a única companhia que estava preparada era uma força de fuzileiros, que em 2019 defendeu Mocímboa da Praia e que não conseguiu manter a situação sob controlo porque ficou sem munições. Muitos fuzileiros foram mortos por causa disso, o que mostra o grau de impreparação do Exército”, adianta.

Fernando Jorge Cardoso argumenta que a polícia de intervenção de Moçambique continua a ser hoje “totalmente inoperacional" e que não está "formada nem capacitada para uma guerra no mato, uma guerra que implica a necessidade de tropas especiais ”. Filipe Nyusi, que tinha sido ministro da Defesa, apercebeu-se da situação e passou logo que possível o comando operacional de Cabo Delgado do Ministério do Interior para o Ministério da Defesa no final de 2020.

No entanto, a situação continua a ser catastrófica para o país. “Hoje temos umas Forças Armadas moçambicanas cuja formação neste tipo de guerra é muito baixa e em que falta capacidade de comando operacional. Não há militares experimentados que tenham passado por guerras idênticas. Estão agora a fazer a sua prova de fogo”, argumenta o investigador.

“Aquilo é uma guerra. Sendo uma guerra, tem de ser ganha militarmente o mais depressa possível. Caso contrário transforma-se noutra coisa. Depois será muito difícil terminar com isto. E vemos isso noutros conflitos em África que duram há muito tempo, apesar da presença de forças militares externas”, refere ainda.

Fernando Jorge Cardoso alerta, nesse sentido, para a possibilidade do conflito armado se espalhar, não só ao resto do país, mas também para a Tanzânia.

“Não existe nenhuma guerra na Tanzânia, mas eles não estão livres disso, bem pelo contrário. Talvez estejam mais preparados. Mas o mau relacionamento que existe entre Moçambique e a Tanzânia é um problema que tem de ser sanado imediatamente com o apoio de todos os membros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), França, Reino Unido, EUA, seja de quem for", defende. 

Essa é “a única forma de assegurarem a defesa dos Estados”, numa “guerra contra o Estado, uma guerra civilizacional, pela imposição de uma maneira de viver” por parte dos insurgentes, diz Fernando Jorge Cardoso.
Situação em Pemba e desinformação

No início de abril, a consultora Pangeas-Risk alertava para a possibilidade de um ataque dos insurgentes contra Pemba – onde estão muitos dos refugiados que fugiram - , e mesmo numa tentativa de recuperação de Palma. O investigador Fernando Jorge Cardoso refere, em declarações à RTP que não vê essa ocupação a ocorrer num futuro próximo: “Em termos de movimento militar, no sentido de atacar Pemba, para fazer o mesmo que fizeram em Palma, isso não creio, porque eles não têm força numérica suficiente para fazer uma ação desse género. Mas se me fizer a mesma pergunta em relação a daqui por um ano, isso eu não sei responder”

Eu não acredito que esta força, estes insurgentes tenham a capacidade militar para ocupar a cidade de Pemba. Mas é possível que haja grupos que se aproximem da cidade de Pemba e façam ações de terror que provoquem nos campos de refugiados uma sensação enorme de insegurança. Se isto pode acontecer? Pode. Espero que não aconteça”, adianta.

Deslocados de Palma num local de acolhimento temporário em Pemba. Fotografia de 3 de abril de 2021. Foto: Emidio Jozine - Reuters

Um dos elementos que marca o conflito a ocorrer em Cabo Delgado é a desinformação ou a dificuldade de confirmar informações no terreno, até mesmo quanto ao número de vítimas no próprio ataque de Palma. Fernando Jorge Cardoso argumenta que, para além das preocupações securitárias, existe “alguma hostilidade do Governo relativamente a jornalistas que não estejam ligados à Frelimo, ao poder, nos locais de guerra”.

“Como [o Governo] sabe que a situação não está sob controlo, inclusivamente ao nível da atuação das Forças Armadas, não quer relatos que façam cair a moral ou que contem até algumas verdades inconvenientes”, acrescenta.

E nesses casos são as organizações locais e a sociedade civil que vão reportando o que se passa em Moçambique. “A informação existe. O que não existe é uma informação estruturada, organizada, como àquela a que estamos habituados”, argumenta o investigador, dando o exemplo da Igreja Católica ou páginas e redes de contacto independentes do Governo como fontes de alguma informação credível. 
A questão da ajuda externa
Sobre a relutância do país em aceitar ou requerer apoio externo, Fernando Jorge Cardoso defende como “legítimo” o posicionamento que Maputo tem assumido.

“Moçambique quer apoio militar externo mas em condições que também quereríamos se fizéssemos parte do Governo. Quando entram forças multilaterais das Nações Unidas, União Africana ou organizações regionais sob mandato das Nações Unidas, o que acontece é que o comandante dessas forças é normalmente designado pelo secretário-geral da ONU, e o comando dessas forças não fica nas mãos do Governo, fica nas mãos desse comandante. Ou seja, é uma força estrangeira sem ligação ao comando militar moçambicano”, explica o investigador.

“A experiência das forças multilaterais só serve como tampão quando existem duas forças antagónicas óbvias e para proteger civis, para proteger uma localidade. Não serve para fazer guerra. E neste caso há uma guerra que tem de ser feita. Aceitar forças estrangeiras nesta fase seria estar a capitular. Não se trata de Moçambique não querer. Moçambique está ansioso por receber apoio militar” mas na forma bilateral e em moldes que possa supervisionar, refere.

Neste momento, as autoridades moçambicanas enfrentam essa dicotomia: a necessidade urgente de ajuda externa, sendo que essa ajuda, necessária e possível sobretudo no âmbito da logística ou formação, não irá surtir efeitos imediatos. Nesse âmbito, e para além da ajuda de formação já enviada por Portugal, Fernando Jorge Cardoso considera que a cimeira extraordinária da Comunidade de Desenvolvimento de África Austral (SADC), que se realiza hoje, dia 28 de abril, em Maputo, será decisiva.

O grupo reuniu-se no início de abril em Maputo para discutir a crise de segurança em Cabo Delgado e optou por criar uma equipa técnica responsável por avaliar durante algumas quais são as principais necessidades de apoio que Moçambique necessita no combate ao terrorismo. 

Esta missão técnica deverá propor o envio de 2.916 militares para ajudar Moçambique no combate aos grupos armados que aterrorizam a região norte do país, segundo revelou o documento publicado na antecâmara da reunião.

Sem esconder as fortes ligações a Moçambique, país onde viveu e estudou nos anos 90, Fernando Jorge Cardoso considera “estranho” que não haja grande mobilização por parte da sociedade portuguesa para apoiar o esforço humanitário em Cabo Delgado perante a gravidade da situação. Outra crítica do investigador é apontada ao próprio Presidente moçambicano.

“Se em março de 2019 ele esteve um mês na cidade da Beira, que fica no centro de Moçambique, com vários ministros a comandar as operações de reconstrução e de resgate das vítimas [após os ciclones Idai e Kenneth], qual é a razão plausível para que o Presidente Filipe Nyusi, que nasceu em Cabo Delgado, em Mueda, que é maconde, qual é a razão para não ter estado ainda em Cabo Delgado? Há 700 mil refugiados em Cabo Delgado. Há uma guerra em Cabo Delgado", vinca. 

Filipe Nyusi, Presidente de Moçambique, durante uma cerimónia de assinatura de acordos de cooperação e segurança em Moscovo, a 22 de agosto de 2019. Foto: Alexey Nikolsky/Sputnik via Reuters

Fernando Jorge Cardoso sublinha a necessidade dessa proximidade do poder em relação à população tendo em conta a dimensão do país e a distância entre o centro da ação e os centros de poder. Maputo, capital de Moçambique, a mais de 2.000 quilómetros de Cabo Delgado, “fica distante de Palma, e mesmo de Pemba, como de Lisboa a Berlim”.

“Filipe Nyusi não vai ganhar a guerra nos próximos tempos. Mas, enquanto Presidente da República, tem de estar junto das centenas de milhares de moçambicanos, refugiados, que estão a sofrer com tudo isto. Seria um ato político simbólico. A única justificação [para não ir] que consigo ver está relacionada com razões de segurança, com os militares e forças de segurança a dizerem ao Presidente que uma deslocação a Pemba não é segura. Não vejo mais nenhuma razão. De qualquer maneira, acho que é um erro político por parte do Presidente da República não o fazer, independentemente dos problemas de segurança que possam existir. A segurança cria-se”, argui. 

O investigador destaca por fim a urgência de uma resolução rápida da guerra, e não só pelas questões humanitárias. “Esta não é uma guerra que se possa esconder, muito menos quando está em causa um ultimato por parte da Total, que deu seis meses a Moçambique para resolver o assunto. A Total fez o mesmo no Iémen quando a guerra civil começou. Nunca mais voltou, mesmo já tendo no país as instalações para a exploração de gás”.

Sobre se a empresa da exploração de gás poderá voltar a Moçambique em breve, Fernando Jorge Cardoso argumenta que tudo depende do que se passar em Cabo Delgado, mas também do ritmo da retoma da economia mundial após a pandemia e consequentemente da procura deste tipo de recursos, recorrendo ao exemplo da gigante ExxonMobil, que está a fechar instalações ou a arrastar decisões devido à menor procura.

“Na transição energética, sabemos que o gás tem futuro. Mas enquanto a economia mundial estiver nesta situação, haverá gás e petróleo a mais”, conclui.