Guterres na ONU. "Um mundo de insegurança" à beira do colapso nas mãos de uma governação global "presa no tempo"

por Rachel Mestre Mesquita - RTP
O SGNU, António Guterres, discursa na 78ª Sessão da Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque, EUA, a 19 de setembro Mike Segar - Reuters

No discurso de abertura da 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU, que arrancou esta terça-feira, em Nova Iorque, o secretário-geral das Nações Unidas (SGNU) descreveu um mundo desequilibrado e fragmentado pelas várias crises humanitárias e conflitos, com particular destaque para a guerra na Ucrânia, onde "a violação da Carta das Nações Unidas" apresenta "graves repercussões para todos", e cuja governação global "presa no tempo" tem sido incapaz de resolver.

Perante os problemas que o mundo enfrenta, o secretário-geral da ONU, António Guterres, insistiu que o mundo precisa de um “compromisso global”, um termo que segundo ele “parece ter-se tornado tabu”. Mas que acredita ser  fundamental para fazer face às ameaças globais, como é o caso das alterações climáticas, sobre a qual os países ricos têm responsabilidades a que não devem fugir.
“Um mundo de insegurança para todos"
O chefe das Nações Unidas, António Guterres afirmou que a invasão da Ucrânia pela Rússia é “prova” de uma “violação da Carta das Nações Unidas” e do direito internacional, por não respeitar o compromisso de paz patente na Carta e cujo desrespeito “criou um mundo de insegurança para todos”.
“Desencadeou um nexo de horror: vidas destruídas, direitos humanos violados, famílias dilaceradas, crianças traumatizadas, esperanças e sonhos destruídos", constatou o secretário-geral da ONU.
António Guterres também relatou o impacto de uma guerra que vai para além das fronteiras da Ucrânia, mencionando o Acordo dos Cereais do Mar Negro, que se encontra atualmente suspenso por decisão de Moscovo, mas que permitiu a exportação de cereais ucranianos e de fertilizantes russos ao longo de vários meses de guerra.

"O mundo precisa urgentemente de alimentos ucranianos e de alimentos e fertilizantes russos para estabilizar os mercados e garantir a segurança alimentar. Não vou desistir dos meus esforços para que isso aconteça", garantiu, tendo sido fortemente aplaudido pela plateia.

Numa altura em que a paz e a segurança estão mais comprometidas do que nunca, António Guterres pediu aos Estados para se comprometerem com um mundo livre de armas nucleares: "As ameaças nucleares colocam-nos a todos em risco. Ignorar tratados e convenções globais torna-nos a todos menos seguros. Não devemos ceder no trabalho pela paz” acrescentou.
Sistema humanitário global está à beira do colapso
Apesar do destaque concedido à guerra na Ucrânia, o líder da ONU não deixou de mencionar a situação preocupante que atravessam muitos países como o Sudão, a República Democrática do Congo, o Haiti, o Myanmar, os territórios palestinianos ocupados ou ainda o Afeganistão, onde a maioria da população necessita de assistência humanitária, além da violação sistemática dos direitos das mulheres e raparigas afegãs. "Face a estas crises crescentes, o sistema humanitário global está à beira do colapso. As necessidades estão a aumentar. E o financiamento a acabar", apelou António Guterres.

António Guterres explicou que as operações humanitárias da ONU "estão a ser forçadas a fazer cortes massivos", pelo que insta os países para que intensifiquem e financiem o “Apelo Humanitário Global” necessário para financiar a assistência humanitária. "Se não alimentarmos os famintos, estaremos a alimentar o conflito”, acrescentou.
Reformar uma Governação Global “presa no tempo”
Também no seu discurso de abertura, o secretário-geral da ONU, defendeu a necessidade de instituições multilaterais fortes e eficazes e teceu fortes críticas à governação global atual que considerou estar “presa no tempo” por não refletir “o mundo tal como ele é” hoje em dia. Criticando, nomeadamente o próprio Conselho de Segurança da ONU e as instituições financeiras internacionais, por refletirem realidades políticas e económicas de 1945. "O mundo mudou. As nossas instituições não. Não podemos resolver eficazmente os problemas tais como eles são se as instituições não refletirem o mundo tal como ele é. Em vez de resolverem problemas, correm o risco de se tornarem parte do problema", afirmou Guterres.

No entanto, o líder das Nações Unidas e defensor da reforma das instituições multilaterais, confessou não ter “ilusões” de que as “reformas são uma questão de poder” e que a necessidade de mudança esbarra com “muitos interesses conflituantes e agendas”, apesar da necessidade de encontrar uma solução para os complexos desafios que se colocam no caminho.

António Guterres insistiu, por inúmeras vezes, que é tempo de agir, através “de um compromisso global” e que os líderes mundiais têm “uma responsabilidade especial de alcançar compromissos na construção de um futuro comum de paz e prosperidade para o nosso bem comum"

Apontando para a tragédia em Derna, na Líbia, como um exemplo do “retrato triste” de um mundo de desigualdades e injustiças, que vitimou pelo menos onze mil pessoas e mais dez mil estão desaparecidas. "O povo de Derna - vítima da negligência de líderes próximos e distantes” – viveu e morreu no epicentro dessa indiferença”, criticou.

A igualdade de género também esteve presente no discurso de António Guterres, que fez questão de salientar que “metade da humanidade ainda está à espera de direitos iguais e de salários iguais”, dirigindo-se a uma plateia de alto nível maioritariamente masculina. ““Os povos”” não significa “os homens””, afirmou, destacando que os direitos básicos ainda não foram alcançados por todos.

O discurso do chefe das Nações Unidas antecedeu o do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que está pela primeira vez presencialmente na sede da ONU, em Nova Iorque, depois de ter participado remotamente no ano passado, através de uma mensagem gravada.

O debate de alto nível da 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU vai prolongar-se até ao próximo dia 26 de setembro, onde os chefes de Estado e de Governo de todo o mundo, à exceção dos presidentes russo e chinês, Vladimir Putin e Xi Jinping, que brindam a assembleia com a sua ausência, vão prosseguir com os trabalhos previstos pela ONU, com foco na importância dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 e na guerra na Ucrânia.

Nos próximos dias espera-se que os líderes das potências ocidentais utilizem os seus discursos na ONU para reafirmar o apoio a Kiev, e por sua vez que a Rússia, representada pelo chefe máximo da diplomacia do país, Serguei Lavrov, venha a atacar o Ocidente por essa ajuda prestada à Ucrânia desde o início do conflito.

c/agências
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