"Guerra de múltiplas frentes". Forças de Israel já agiram em "seis teatros" do conflito
Multiplicaram-se nos últimos dias os sinais de que a guerra iniciada com a invasão e o ataque por parte do Hamas contra Israel, dia 7 de outubro, pode extravasar e tornar-se um perigoso conflito regional. O principal objetivo será cortar as ramificações do poder iraniano no Médio Oriente, que Teerão tem usado nos últimos meses para atingir Israel e os Estados Unidos.
"Estamos numa guerra com múltiplas frentes e estamos a ser atacados a partir de vários teatros: Gaza, Líbano, Síria, Judeia e Samaria (Cisjordânia), Iraque, Iémen e Irão. Já respondemos e agimos em seis destes teatros", revelou esta terça-feira aos deputados do Knesset o ministro israelita da Defesa, Yoav Gallant.
A frente libanesa, entre Israel e as milícias do Hezbollah, tem sido, a par de Gaza e do Hamas, a mais notória das referidas pelo ministro da Defesa. Os bombardeamentos têm-se sucedido de parte a parte.
Ainda dia 25 de dezembro, o movimento xiita libanês assumiu a autoria de uma ação contra a base militar israelita de Beit Hillel. Israel detetou ainda o lançamento de oito projéteis do território libanês contra a Galileia.
Yoav Gallant tem repetido que Israel "não está interessado" em mais uma "guerra com o Hezbollah", mas esta poderá ser-lhe imposta. E nada garante que outras frentes se mantenham estáveis.
Apesar de Gallant não ter especificado quais as operações realizadas nos vários "teatros" que referiu ao Knesset, um ataque aéreo perto de Damasco, Síria, matou esta segunda-feira um dos principais comandantes dos Guardas da Revolução Iraniana.
O brigadeiro Sayyed Razi Mousavi era considerado por Teerão e o principal responsável por coordenar a aliança militar entre a Síria e o Irão. O presidente iraniano já disse que Israel "irá pagar" pela sua morte.
Teerão poderá ter contudo outras preocupações para tentar manter ativos os seus múltiplos peões na área, do Hezbollah libanês ao Hamas palestiniano, passando pelos rebeldes Houthi do Iémen.
Nas últimas horas, o chefe de Estado Maior das Forças de Defesa de Israel, Herzi Halevi, afirmou que as operações militares israelitas na Faixa de Gaza contra o Hamas irão prolongar-se por muitos meses, de forma a garantir que o grupo islamita palestiniano não se recompõe tão cedo.
"Não há atalhos quando se desmantela uma organização terrorista", explicou Halevi durante uma conferência de imprensa transmitida pela televisão, junto à fronteira com o enclave. "Iremos chegar à liderança do Hamas", prometeu "quer demore uma semana ou meses".
O papel dos EUA
Noutra frente, os Estados Unidos anunciaram que atacaram locais de milícias pró-iranianas no Iraque, em retaliação pela mais recente operação destes grupos, que fez três feridos, um em estado crítico.
Bagdade denunciou um ataque contra as suas próprias forças, classificando-o de "ato hostil". Um soldado iraquiano morreu e 18 outras pessoas ficaram feridas, mas as relações entre os dois países poderão ser as mais prejudicadas.
O governo iraquiano, que não tem contido os ataques das milícias apoiadas e financiadas pelo Irão contra tropas e instalações militares norte-americanas na área, considerou-o "um ataque inaceitável à soberania do Iraque" que iria prejudicar "as relações bilaterais".
Washington poderá estar contudo a colocar as suas fichas num dos seus outros aliados do Médio Oriente, a Arábia Saudita. O New York Times anunciou no fim da semana passada que a Administração Biden estará a planear relaxar restrições à venda de armas a Riade.
De acordo com várias fontes sob anonimato, a monarquia saudita estará a necessitar de reforçar as suas defesas a sul, com o Iémen, devido à guerra com as milícias Houthi e, nas últimas semanas, vários responsáveis do país têm pressionado o Congresso norte-americano a levantar pelo menos em parte as proibições.
Estas foram impostas pelos Estados Unidos há dois anos, devido a preocupações com direitos humanos e com eventuais crimes de guerra, cometidos sob ordens de Riade.
A guerra em Gaza e as dezenas de ataques levados a cabo pelos Houthi contra navios alegadamente ligados a Israel ou empresas e empresários israelitas, em protesto pelas operações contra o Hamas, terão contudo alterado as prioridades de Washington, de forma a proteger o comércio internacional.
Os rebeldes iemenitas têm ainda enviado drones contra Israel, muitos dos quais acabam por atingir alvos no Egito, junto ao Mar Vermelho, como sucedeu ainda esta terça-feira.
A guerra não interessa a Teerão
O Irão já se demarcou dos ataques da milícia xiita do Iémen, que tem financiado e armado desde há vários anos, mas poucos analistas acreditam na sua versão. Até porque, pelo menos à primeira vista, a guerra serve os interesses iranianos.
O especialista em ciência política e no Irão, Mohammad-reza Djalili comentava há um mês no site de notícias Telos que, desde o ataque de 7 de outubro, "o processo de normalização das relações árabe-israelitas congelou e a questão palestiniana retomou o local central no palco regional e internacional".
O analista avisava contudo que a resposta israelo-americana poderá "conseguir enfraquecer as capacidades dos aliados não estatais de Teerão, o que irá requerer novos investimentos pelo Irão a expensas da situação interna, que permanece explosiva".
Djalili defendeu que o principal objetivo do regime dos ayatollahs é manter-se no poder e a estabilidade do país, pelo que o alargamento do conflito não servirá os seus interesses, como se poderia pensar.
Martin Ehl pensa o mesmo. O analista e jornalista do jornal checo Hospodářské noviny, considerou em novembro que Teerão "não está pronto para um conflito generalizado", mesmo se pretende continuar a pressionar Israel. "A questão é se os iranianos serão capazes de controlar os seus aliados do Hezbollah no sul do Líbano".
O que já ganhou o Irão
Teerão já pode contar vitórias. Conseguiu, através da troca de reféns israelitas do Hamas por detidos palestinianos e um breve cessar-fogo, a libertação de seis mil milhões de dólares dos seus fundos, congelados até então na Coreia do Sul por ordem dos EUA. A guerra ainda não abalou também a sua reconciliação gradual com a Arábia Saudita.
O ódio a Israel atingiu ainda, em semanas, um alcance e uma unanimidade impensáveis há poucos meses. O sentimento anti-israelita no mundo árabe alastrou e o conflito está a transformar-se numa guerra religiosa, provocando manifestações de repúdio não só nas cidades árabes mas também em Jacarta, na Indonésia, ou em Islamabad, Paquistão.
Também ficou na prateleira a aproximação entre Israel e a Arábia Saudita, que ameaçava os principais peões de Teerão na sua luta para destruir Israel, os palestinianos.
Talvez estes ganhos sejam suficientes para que o Irão comece a refrear os seus aliados.
"Um conflito entre o Irão por um lado e Israel e os norte-americanos por outro seria devastador para todos, incluindo para o regime iraniano", opinou a analista Natalie Tocci, no italiano La Stampa.
Possivelmente ciente dos riscos, o regime iraniano terá acelerado o seu programa de enriquecimento nuclear, que afirma ter fins pacíficos.
O Irão, denunciou esta terça-feira a Agência Internacional para a Energia Atómica, AIEA, reverteu "desde finais de novembro" o ritmo da operação e está a enriquecer mensalmente nove quilos de UF6 (hexafluórido de urânio) a 60 por cento, "próximo do nível necessário para fabricar armas", acima dos três quilos registados anteriormente.