Guerra das vacinas. Farmacêuticas escudadas na confidencialidade dos contratos

por Graça Andrade Ramos - RTP
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Atrasos na entrega das prometidas vacinas contra a Covid-19 estão a levantar questões sobre os contratos assinados pela Comissão Europeia com várias farmacêuticas. E a verdade é que, a necessidade de inocular as populações europeias, através uma distribuição igualitária e rápida das vacinas, poderá ter levado a União Europeia a aceitar condições no mínimo controversas.

Ainda esta sexta-feira, a AstraZeneca e a Pfizer pareciam correr o risco de enfrentar a ira dos Estados-membros devido aos atrasos no fornecimento das prometidas doses semanais, embora, desde que fornecessem o bolo prometido até finais de março, os seus interesses estivessem acautelados, conforme revelava há dias o jornal italiano La Repubblica.

Depois de muita controvérsia, a Comissão Europeia acabou por publicar o contrato assinado com a AstraZeneca,  para justificar a sua posição negocial. Em causa, a justificação dada pela empresa para os atrasos, invocando problemas com a sua produtora, localizada na Bélgica.

Vários indícios apontavam que a verdadeira causa da falta nas entregas seria o desvio de vacinas, ali fabricadas, para o Reino Unido ou para os Estados Unidos. A Comissão Europeia acusa a farmacêutica de não estar a cumprir a fórmula do melhor esforço razoável (best reasonable effort) a que está obrigada contratualmente.
No caso da farmacêutica, a fórmula best reasonable effort refere-se “às atividades e grau de esforço que uma empresa das dimensões, infraestruturas e recursos similares à AstraZeneca deveria empreender para desenvolver e produzir a vacina, tendo em conta a urgência de por fim à pandemia global”

A farmacêutica anglo-sueca estaria a dar prioridade ao Reino Unido na entrega das vacinas, algo contestado pela Presidente da Comissão Europeia. "O texto é claríssimo", insistia Ursula Von der Leyen.

De alguma forma, um acordo terá sido alcançado.

Além da Agência Europeia do Medicamento ter dado luz verde à vacina da AstraZeneca, a Comissão Europeia estabeleceu um mecanismo de autorização de exportação de vacinas para a covid-19, quando a Comissão Europeia tinha imposto como condição contratual que todas as vacinas a adquirir fossem produzidas em território europeu (no caso da AstraZeneca e no contrato firmado em 28 de agosto de 2020, ainda o Brexit estava a ser negociado, admitiam-se produtoras em solo britânico) e reservadas aos seus próprios cidadãos.
O comissário europeu para o Comércio, Valdis Dombrovskis, revelou que o mecanismo "abrange as vacinas da Covid-19 adquiridas ao abrigo dos contratos de compra antecipada".

A razão invocada foi a transparência do processo e as doses suficientes para os cidadãos da União Europeia, que a Comissão Europeia já tinha anteriormente dado como garantidas. Entretanto, as farmacêuticas que queiram exportar, para fora da UE, as suas doses de vacinas da Covid-19, terão de pedir a respetiva autorização, já a partir de sábado.

A Comissão Europeia acredita que fica desta forma acautelada a garantia de que as vacinas produzidas irão beneficiar primeiro os seus cidadãos. Bruxelas afirmou pretender inocular o máximo possível de cidadãos europeus até finais de março e a continuação dos atrasos no fornecimento das vacinas ameaçava estes planos.
Afinal quanto custa cada vacina... é segredo
Fica por saber se a solução agora encontrada irá servir o futuro. E, apesar da revelação de um segundo contrato [o primeiro publicado foi o firmado com a CureVac], diversas cláusulas e condições continuam na bruma.

Por exemplo, os cidadãos europeus não foram informados do preço real de cada dose da vacina, o qual varia conforme a farmacêutica. A maioria dos Estados-membros decidiu inocular gratuitamente a respetiva população, o que parece engavetar perguntas.

Nos contratos essa informação está oculta. A explicação da Comissão Europeia é simples. “Nesta fase, o preço específico por dose ainda está sujeito a obrigações de confidencialidade” conforme se lê na sua página de P&R sobre as vacinas.

Outra possível controvérsia diz respeito a quem assume o pagamento de indemnizações às pessoas afetadas no caso de algo correr mal.

Em ambos os contratos, com a AstraZeneca e com a CureVac, essa responsabilidade é assumida por cada Estado-membro, conforme se lê, respetivamente, no artigo 14.1 e no artigo 1.23.3., nos quais as farmacêuticas e “todos os seus afiliados” e subcontratados, numa longa lista, deverão ser “considerados isentos” de quaisquer reivindicações, incluindo “morte, lesões físicas, emocionais ou mentais, doença, incapacidade”, perda de bens e rendimentos ou custos legais.

Supõem-se que estas condições se repliquem noutros contratos como, por exemplo, com a Pfizer-Biontech. Só que, ninguém sabe. Poderão ser ainda mais favoráveis às farmacêuticas.
Indemnizações "inaceitáveis" às farmacêuticas
Algo que também se desconhece são as contrapartidas exigidas pelas farmacêuticas em caso de eventuais incumprimentos por parte da Comissão Europeia, de um Estado-membro ou outro Estado qualquer.

Há pelo menos dois casos no mundo que permitem levantar o véu sobre isso, ambos referidos pelo semanário argentino de esquerda, Brecha.

Na Argentina, refere um artigo do Brecha publicado esta sexta-feira, o contrato com a Pfizer ficou bloqueado devido à questão das indemnizações, que os deputados argentinos queriam imputar à farmacêutica, condição que esta rejeitou.

Entretanto, referem os articulistas, Jorge Rachid, um médico assessor do Governador da província de Buenos Aires revelou a uma rádio que a Pfizer exigia condições "inaceitáveis" de garantias de pagamento, "com bens inatingíveis, incluindo petróleo e glaciares".

No Perú, já depois de ter garantido que qualquer controvérsia seria resolvida por arbitragem internacional, levando o executivo peruano a abdicar da sua imunidade soberana, a empresa norte-americana exigiu que o país, caso perdesse a disputa, a indemnizasse com ativos peruanos no exterior.

Entre estes, bens móveis do serviço diplomático, aviões militares ou objetos de museu, afirma o Brecha.
A multiplicação das doses e as seringas especiais
O mesmo artigo analisa em profundidade a relação entre o fornecimento das doses da Pfizer e as seringas usadas para as ministrar.


Nos Estados Unidos descobriu-se que cada frasco de vacina dava não para cinco doses, como inicialmente referido, mas sim, para seis.

Em resultado, a farmacêutica pôde informar os serviços europeus que, a partir de 18 de janeiro, "cada bandeja enviada passaria a conter 1.170 doses e não as 975, com uma redução em 20 por cento do número de frascos", conforme noticiou o jornal espanhol El Mundo dia 25 de janeiro de 2021.Com essa alteração, a produção bruta da Pfizer prevista para este ano sobe de 1.300 a 2.000 milhões de doses, conforme comunicaram porta-vozes da empresa. Parece magia.

O problema é que a maioria das seringas não consegue extrair as tais seis doses. Apenas as chamadas de "baixo conteúdo morto" o conseguem fazer.

Para se ter uma ideia, dos mais de 286 milhões de seringas que a empresa Becton Dickinson – o principal produtor de seringas do mundo – prometeu vender ao Governo dos Estados Unidos, somente 40 milhões são daquele tipo. São informações da própria empresa.

"Para a Pfizer, a aprovação por parte da FDA [a agência dos EUA que autoriza a comercialização de medicamentos] da dose extra, significa que pode cumprir o seu contrato e receber dos Estados Unidos o pagamento na totalidade com quase menos sete milhões de frascos", referiu dia 22 de janeiro ao The Washington Post, Sam Buffone, ex-assessor jurídico da divisão de fraudes civis do Departamento de Justiça.

"Contudo, muitas dessas sextas doses poderão acabar desperdiçadas porque os centros de vacinação não têm as ferramentas adequadas" para as extrair, sublinhou.

A sócia alemã da Pfizer, a Biontech, anunciou já este mês a produção e venda de 50 milhões de seringas especiais.
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