Há precisamente 20 anos chegavam à prisão de Guantánamo, num voo militar, os primeiros detidos pelos Estados Unidos por suspeitas de terrorismo. Estrategicamente localizada numa base naval em Cuba, as leis norte-americanas podiam lá ser contornadas e nem sequer advogados ou familiares podiam entrar em contacto com os prisioneiros. Agora, 39 pessoas continuam encarceradas nas instalações em solo cubano e sem perspetiva de libertação.
Foi assim que a prisão, que chegou a albergar quase 700 pessoas, acabou por se tornar símbolo de abusos dos Direitos Humanos e de torturas. O próprio George W. Bush, cuja Administração foi responsável por criar Guantánamo, quis depois encerrar o estabelecimento prisional, mas sem sucesso.
O seu sucessor, Barack Obama, também falhou na tentativa de fechar a prisão em Cuba. Donald Trump, enquanto presidente, suspendeu o processo, mas o atual presidente Joe Biden já garantiu que iria cumprir com essa intenção.
Esta terça-feira, no 20.º aniversário da sua abertura, Guantánamo continua em funcionamento: são 39 os detidos que lá se encontram, a maioria suspeitos de terrorismo, aguardando ainda julgamento, apesar de todas as tentativas de libertação por parte de organizações dos Direitos Humanos e do Governo norte-americano.
Das quase quatro dezenas de prisioneiros, cinco estão acusados de ajudar a planear os ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA. No entanto, nenhum deles foi ainda julgado, incluindo o paquistanês Khalid Sheikh Mohammed, suspeito de ajudar a orquestrar os ataques às Torres Gémeas.
Apenas dois dos detidos foram efetivamente sentenciados e cumprem em Guantánamo uma pena de prisão. São eles Ali al Bahlul, aliado de Bin Laden que enfrenta prisão perpétua, e Majid Khan, que participou em vários planos da Al Qaeda e cuja pena termina já no próximo mês.
Os restantes prisioneiros não foram, nestes 20 anos, acusados oficialmente, mas continuam em Guantánamo sob o argumento de serem presos de guerra relacionados com a Al Qaeda, pelo que podem permanecer detidos por tempo indeterminado.
O moroso e complexo processo de libertação
Apesar de um painel especializado ter recomendado a remoção de pelo menos uma dezena dos detidos, até agora o presidente Joe Biden apenas conseguiu transferir um deles: Abdul Latif Nasir, que foi enviado para Marrocos, onde o detiveram à chegada.
O procedimento para realizar a transferência de prisioneiros em Guantánamo é complexo, lento e sujeito a restrições. É necessário, antes de mais, que o Conselho de Revisão Periódica (painel que reúne membros de seis órgãos de segurança dos Estados Unidos) recomende a libertação.
Depois, o Departamento de Estado tem de chegar a acordo com um terceiro país que assegure o cumprimento dos Direitos Humanos e, simultaneamente, o controlo do prisioneiro em questão. Apenas nessa altura o chefe do Departamento de Defesa deve informar o Congresso norte-americano sobre a situação.
É ainda necessária predisposição por parte do líder da Casa Branca. No caso da libertação de Abdul Latif Nasir, a aprovação do plano foi conseguida em 2016, mas Donald Trump virou a cara à situação. Apenas agora, sob a Administração Biden, o detido conseguiu finalmente deixar Guantánamo. Durante a sua presidência, Bush libertou cerca de 500 detidos. Obama libertou, aproximadamente, 200.
Outra dificuldade reside no facto de o Congresso impedir a transferência de detidos da prisão em solo cubano para os Estados Unidos, sob o argumento da ameaça que representam. Além disso, esse órgão impede que sejam usados dinheiros públicos quer para as extradições, quer para a expansão das atuais instalações em Guantánamo.
Joe Biden tem procurado modificar estas condições, mas sem sucesso. Ainda em dezembro de 2021, numa sessão no Senado, os republicanos disseram não pretender alterar a lei atual. Oito deles chegaram mesmo a enviar uma carta ao presidente na qual frisavam que se opõem ao encerramento das instalações prisionais em Cuba.
“Não estamos a combater um crime. Estamos a lutar numa guerra”, disse recentemente o senador republicano Lindsey Graham. “Não quero torturar ninguém, mas quero submeter [os prisioneiros] a um processo coerente com o estado de guerra e mantê-los detidos o tempo necessário para que nos mantenhamos em segurança, até concluirmos que eles já não são uma ameaça”.
“Nódoa moral”
De acordo com o testemunho de antigos detidos e com documentos classificados divulgados em 2011 pelo WikiLeaks, a tortura em Guantánamo passava por simulações de afogamento, privação de sono ou exposição dos prisioneiros a temperaturas extremas.
“Quanto mais eu cooperava, mais me torturavam”, relatou em outubro passado o ex-detido Majid Khan, tornando-se o primeiro prisioneiro de Guantánamo a relatar, perante um júri militar, os métodos de interrogatório levados a cabo nesse estabelecimento.
Manter a prisão de Guantánamo ativa custa cerca de 13 milhões de dólares aos contribuintes norte-americanos. Representa, além disso, “uma nódoa moral” para os Estados Unidos, considerou na passada semana Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado.
O diretor da Amnistia Internacional em Portugal, Pedro Neto, lamenta que este flagelo se perpetue. “Esta questão torna-se já quase uma questão esquecida por estar no passado”, disse à Antena 1.
Para o responsável, “com a saída [dos Estados Unidos] do Afeganistão, em que se encerrou um capítulo de intervenção nessa matéria e nesse quadrante, há também aqui a oportunidade que não se pode perder de fechar este assunto que se arrasta há tanto tempo”.