Analistas dizem que o grupo russo de mercenários Wagner, que a UE sancionou em dezembro, é apenas uma das faces da estratégia de Moscovo de aproximação a África, que se intensificou em 2014 para contrariar a pressão ocidental.
"É absolutamente correto dizer que há um interesse crescente" da Rússia em África, disse à Lusa a investigadora do Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA, na sigla em inglês) Cayley Clifford, especialista na relações russo-africanas.
Após a União Soviética ter ajudado muitos países africanos nas suas lutas pela independência, capitalizando o facto de não ter um historial de colonização no continente, a Rússia focou-se nos seus próprios desafios internos e a sua presença em África atingiu o ponto mais baixo de sempre nos anos 1990, recordou a especialista do SAIIA, instituto que em março lançou um programa de investigação de dois anos para perceber o envolvimento estratégico da Rússia em África.
No entanto, o atual Presidente, Vladimir Putin, "colocou grande ênfase em reconstruir a Rússia como potência global e esses esforços, é claro, estendem-se a África", disse Clifford, sublinhando que, ao apoiar países africanos, a Rússia quer construir relações que põem em causa a ordem mundial existente.
Em 2006 Putin realizou a sua primeira visita ao continente e no ano seguinte perdoou 20 mil milhões de dólares de dívidas contraídas pelos países africanos durante a Guerra Fria, mas o analista da Chatham House Aanu Adeoye lembrou que este interesse russo em África aumentou sobretudo depois de, em 2014, Moscovo invadir a Crimeia e ser afastado do G8 e sujeito a sanções económicas do ocidente, o que deixou o país isolado e "à procura de aliados em outras partes do mundo".
"Naturalmente, decidiu tentar formar relações com os países africanos", disse à Lusa.
Em 2019 realizou-se a primeira cimeira Rússia-África, na qual participaram 43 chefes de Estado africanos e para este ano está prevista a segunda, cuja data e local deverão ser anunciadas em fevereiro.
Para a Rússia, a aposta em África "é uma questão de espalhar a sua influência global", disse Aanu Adeoye, enquanto o consultor do Instituto de Estudos de Segurança (ISS, na sigla em inglês) Peter Fabricius fala numa competição com o Ocidente e na ambição global de Putin.
"Também há interesse em benefícios materiais", nomeadamente nos recursos minerais do continente, acrescenta Fabricius, enquanto Clifford lembra a extração de metais do grupo da platina no Zimbabué, diamantes em Angola ou urânio na Namíbia, todos projetos de empresas estatais russas em África.
"O que é interessante na abordagem russa é que estes investimentos estatais estão muitas vezes ligados a iniciativas militares ou diplomáticas", diz Clifford, exemplificando que a par de construir duas centrais nucleares na Nigéria, Moscovo comprometeu-se a combater o terrorismo no país.
"Há uma abordagem multidisciplinar que é diferente da forma como outros atores se envolvem no continente", refere a especialista.
O diretor do Programa Africano da Chatham House, Alex Vines, lembra por seu lado que a Rússia, cada vez mais pressionada pelas sanções ocidentais, procura novos mercados, mas também formas de combater a pressão do Ocidente e que os votos africanos nos organismos internacionais, nomeadamente na Assembleia Geral da ONU, são importantes.
Vines lembra, no entanto, que a Rússia não tem os mesmos recursos ou o capital humano que a URSS tinha com experiência em África, por isso "está à procura de nichos em que se possa envolver".
É entre esses nichos que se insere a utilização do grupo Wagner, que Peter Fabricius descreve como "a vanguarda da intervenção russa em África".
Embora o Kremlin negue qualquer relação com esta organização paramilitar, Fabricius considera que existem "fortes sugestões" de que o grupo Wagner não é de facto uma organização autónoma, mas funciona como uma agência de Moscovo e opera sob interesses do Governo russo.
O consultor e jornalista sul-africano diz que negar a sua relação com o grupo Wagner é útil a Moscovo em termos de prestígio e estatuto porque lhe permite distanciar-se das suas ações questionáveis em termos de direitos humanos ou até dos seus fracassos, como quando o grupo foi obrigado a retirar elementos de Cabo Delgado, em Moçambique, em 2019, depois de ter sofrido uma série de baixas frente aos insurgentes do Estado Islâmico que aterrorizam a região.
Para Alex Vines, a intervenção do grupo Wagner em África, nomeadamente no Sudão, em Moçambique, na República Centro-Africana e possivelmente no Mali, permite à Rússia, "com um custo relativamente baixo, irritar o ocidente, mas também a fornecer uma narrativa alternativa".
Outra área de intervenção russa em África é a defesa, lembrou Cayley Clifford, recordando que entre 2016 e 2020, o continente representou quase 20% de todas as exportações de armas russas e lembrando os acordos assinados pela Rosoboronexport, a maior empresa estatal russa que exporta e importa produtos, tecnologias e serviços militares e defesa, com países africanos como Angola, Guiné Equatorial, Sudão ou o Mali.
"Penso que é seguro dizer que as relações militares, de defesa, de mercenários, todas estão a crescer" entre Moscovo e os países africanos, disse a especialista do SAIIA.
Vines elenca outros nichos em que Moscovo está a atuar em África, como o setor da energia nuclear, o espaço (o AngoSat em Angola é um exemplo), as criptomoedas, o aconselhamento eleitoral ou até a utilização de `trolls` nas redes sociais para influenciar a opinião pública, seja para ajudar governos a manter-se no poder ou para ajudar a oposição.