O Exército de Myanmar (antiga Birmânia) declarou o estado de emergência e assumiu o controlo do país. Pretende manter o comando durante um ano. A chefe do Governo, Aung San Suu Kyi, foi detida.
O Exército de Myanmar, que ocupou o poder de 1962 a 2011, já prometeu organizar novas eleições quando terminar o estado de emergência de um ano. “Estabeleceremos uma verdadeira democracia multipartidária”, anunciaram os militares num comunicado publicado na rede social Facebook, acrescentando que o poder será transferido após a realização de “eleições gerais livres e justas”.
O vice-presidente Myint Swe, nomeado para o cargo pelos militares, graças à reserva prevista na Constituição, assume agora a presidência, enquanto o chefe das Forças Armadas, Min Aung Hlaing, será responsável por fiscalizar as autoridades, indicou o canal Myawaddy News.
Numa declaração divulgada esta segunda-feira na cadeia de televisão do exército Myawaddy TV, os militares acusaram a comissão eleitoral do país de não ter posto cobro às "enormes irregularidades" que dizem ter existido nas legislativas de novembro, que o partido de Aung San Suu Kyi venceu por larga maioria.
Os militares evocaram ainda os poderes que lhes são atribuídos pela Constituição, redigida pelo Exército, permitindo-lhes assumir o controlo do país em caso de emergência nacional.
As detenções e a proclamação do Exército surgem num momento em que o parlamento eleito nas anteriores eleições se preparava para iniciar a sua primeira sessão.
As linhas telefónicas no país foram cortadas, apesar de a internet funcionar com algumas falhas. A televisão estatal está suspensa e, segundo o jornal The Irrawaddy, apenas o canal televisivo militar Myawaddy News está a funcionar.
O Tatmadaw (nome do exército birmanês) justificou a ação com o artigo 407 da Constituição de 2008, em vigor no país e elaborada por militares, que permite a intervenção do Exército “para evitar a degradação da União Birmanesa”.
A Constituição em vigor prevê que seja o Presidente a única pessoa a declarar o estado de emergência e a entregar o poder às Forças Armadas.
Exército regressa ao controlo do país
Com este golpe, Myanmar regressa ao controlo do Exército dez anos depois da dissolução da junta militar, que abriu caminho para a transição da democracia que teve o seu maior marco nas eleições 2015, nas quais a Liga Nacional para a Democracia de Aung San Suu Kyi teve maiorias esmagadoras.
Apesar da realização de eleições e das sucessivas vitórias do NLD, o exército manteve o controlo do país protegido pela Constituição. A lei birmanesa reserva 25 por cento dos lugares no Parlamento para os militares, que têm poder de veto sobre as emendas legislativas. As Forças Armadas reservam ainda os Ministérios do Interior, Defesa e Fronteiras.
O NLD mantém a popularidade no país que o impulsionou à vitória em duas eleições, apesar de Aung San Suu Kyi ter sofrido um descrédito junto da comunidade internacional devido à sua inércia na repressão da minoria Rohingya, a quem é negada a cidadania e o voto, entre ouros direitos. A ONU já considerou a situação como um exemplo de limpeza étnica e eventual genocídio.
O apelo à população do LND
O partido de Aung San Suu Kyi, a Liga Nacional para a Democracia (LDN), apelou à população para que se oponha ao golpe de Estado e ao regresso a uma “ditadura militar.
Aung San Suu Kyi está detida em Naypyidaw, a capital de Myanmar.A Liga Nacional para a Democracia (LND) publicou um comunicado na rede social Facebook, em nome de Aung San Suu Kyi, afirmando que as ações dos militares são injustificadas e violam a Constituição e a vontade popular.
Segundo a agência de notícias France-Presse, terá sido a própria Aung San Suu Kyi quem "deixou esta mensagem à população", segundo explicou no Facebook o presidente do seu partido, Win Htein.
Suu Kye, filha do fundador da independência em 1948 e vencedora do Prémio Nobel da Paz em 1991, não pode tornar-se Presidente do país porque a Constituição não o permite a quem tem familiares com passaporte estrangeiro. Depois de vencer as eleições, criou o cargo de Conselheira de Estado para poder liderar o país.
Espaço aéreo encerrado
A agência governamental birmanesa, responsável pelas viagens aéreas, suspendeu esta segunda-feira todos os voos de passageiros no país.
A embaixada dos Estados Unidos em Myanmar indicou na sua página de Facebook que a estrada para o aeroporto internacional de Rangum, a maior cidade do país, foi fechada, e no Twitter acrescentou que “todos os aeroportos estão fechados”.
A mesma embaixada emitiu também um “alerta de segurança”, dizendo estar ciente da detenção da líder da antiga Birmânia, Aung San Suu Kyi, bem como do encerramento de alguns serviços de Internet, incluindo em Rangum.
“Há potencial para agitação civil e política na Birmânia e continuaremos a monitorizar a situação”, escreveu a embaixada, usando a designação anterior de Myanmar.
Alegadas irregularidades nas legislativas
Os militares denunciam há várias semanas irregularidades nas eleições legislativas de 8 de novembro. Nas quais o NLD obteve 83 por cento dos 476 lugares no Parlamento.
A Comissão Nacional de Eleições já negou que tenha existido fraude no ato eleitoral.
As supostas irregularidades foram denunciadas em primeiro lugar pelo Partido da Solidariedade e de Desenvolvimento da União (USPD, na sigla em inglês), a antiga força política no poder, criada pela então Junta Militar antes de esta se dissolver.
O USDP foi o grande derrotado das eleições, ao obter apenas 33 lugares no parlamento, tendo recusado aceitar os resultados, chegando mesmo a pedir a realização de nova votação, desta vez organizada pelo Exército.
Os militares garantem ter recenseado milhões de casos de fraude, incluindo milhares de eleitores centenários ou menores.
No dia seguinte às eleições, o chefe do Exército birmanês, Min Aung Hlaing, afirmou, numa intervenção perante as Forças Armadas, que se deveria abolir a Constituição se a Carta Magna não for cumprida, o que foi interpretado como uma ameaça ao país, que esteve submetido a uma ditadura militar entre 1962 e 2011.
Em novembro de 2020, o Centro Carter – organização criada pelo antigo Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, que enviou observadores às eleições –, emitiu um comunicado em que considerou as eleições livres e justas.
“Os eleitores puderam expressar livremente a sua vontade nas urnas e eleger os seus representantes”, referiu-se, então, no comunicado, em que se criticou, porém, o sistema constitucional e o impedimento do direito de voto a algumas minorias étnicas.
Estas foram as segundas eleições legislativas desde 2011, o ano da dissolução da Junta Militar que se manteve no poder durante meio século no país.
Na nova legislatura, Suu Kyi e o seu partido pretendiam promover a reforma constitucional. O processo de reconciliação com as dezenas de guerrilheiros que lutam pela autonomia dentro de Myanmar foi fundamental.
Condenação internacional
A comunidade internacional já condenou o golpe de Estado em Myanmar.
Os Estados Unidos exigiram a libertação dos vários líderes detidos e ameaçaram reagir em caso de recusa.
"Os Estados Unidos opõem-se a qualquer tentativa de alterar os resultados das recentes eleições ou de impedir a transição democrática da Birmânia e agirão contra os responsáveis se estas medidas [detenções] não forem abandonadas", disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, em comunicado.
A União Europeia também condena o golpe militar e reclama também a libertação imediata de todos os detidos, frisando que os resultados das eleições devem ser respeitados.
"Condeno firmemente o golpe em Myanmar e apelo aos militares para que libertem todos aqueles que foram ilegalmente detidos em operações por todo o país", escreveu o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, na sua conta oficial na rede social Twitter.
Charles Michel acrescenta que "o desfecho das eleições deve ser respeitado e o processo democrático necessita de ser restaurado".
Também o Alto Representante da UE para a Política Externa, Josep Borrell, recorreu à rede social Twitter para condenar "firmemente o golpe levado a cabo pelo exército de Myanmar" e reclamar igualmente "a libertação imediata dos detidos".
"Os resultados eleitorais e a constituição têm de ser respeitados. O povo de Myanmar quer democracia. A União Europeia está a seu lado", escreveu o chefe da diplomacia europeia.
Entretanto, num comunicado divulgado pelo Serviço Europeu de Ação Externa, Josep Borrell reforça que o golpe constitui "uma clara violação da Constituição do país e uma tentativa dos militares de reverter a vontade do povo de Myanmar e o seu forte compromisso com a democracia".
Várias embaixadas em Myanmar, incluindo a britânica, australiana e de vários países europeus, avisaram que reprovam “qualquer tentativa” para alterar os resultados eleitorais ou “impedir” a transição democrática.
“Pedimos a todos os militares e a todos os atores do país a aderirem às normas democráticas”, indicaram num comunicado conjunto.
Também o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, condenou "firmemente" as detenções considerando as ações dos militares um "rude golpe" contra as reformas democráticas.
Em comunicado, o responsável da ONU afirmou que as detenções e "a declaração da transferência de todos os poderes legislativos, executivos e judiciais para os militares", constituem "um rude golpe contra as reformas democráticas em Myanmar".
O enviado especial das Nações Unidas a Myanmar condena o golpe militar que classifica a ação de ultrajante para a democracia.
Austrália, Singapura e Japão, França e Reino Unido também condenaram as ações dos militares e apelam a uma libertação dos presos políticos.
A China, um dos parceiros económicos mais importantes do país ao investir milhares de euros em minas, infraestruturas e gasodutos, apelou aos atores militares e políticos do Myanmar para que "resolvam as suas diferenças, de acordo com a Constituição e as leis".
"A China é um país vizinho amigo do Myanmar", reagiu em conferência de imprensa o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês Wang Wenbin.
"Esperamos que todas as partes interessadas resolvam as suas diferenças, de acordo com a Constituição e as leis, a fim de manter a estabilidade política e social", disse Wang.
O porta-voz disse que a China "está a tentar entender melhor a situação atual", após o golpe.
“Esperamos que a situação não piore e, claro, consideramos que o século XXI não é o momento para tais ações”, disse o porta-voz daquele ministério, Saeed Khatibzadeh, numa conferência de imprensa.
O responsável sublinhou as “sérias preocupações” do Irão com a situação das minorias em Myanmar, numa alusão aos muçulmanos rohingya, alvo de uma campanha de perseguição e violência por parte do exército birmanês em 2017.
Vários grupos de defesa de direitos humanos exigiram também a libertação imediata dos detidos pelo exército.
“O Exército de Myanmar deve libertar imediata e incondicionalmente Aung San Suu Kyi, funcionários do Governo e todos os detidos ilegalmente. As ações do Exército mostram total desdém pelas eleições democráticas”, afirmou Brad Adams, diretor da Human Rights Watch (HRW) Ásia.
A vice-diretora regional da Amnistia Internacional, Ming yu Hah, descreveu as detenções como “extremamente alarmantes” e exigiu que fossem libertados “imediatamente” se não pudessem ser acusados de qualquer crime reconhecido pelo direito internacional.
“É um momento sinistro para o povo da Birmânia e ameaça agravar a repressão militar e a impunidade”, frisou, usando a antiga designação de Myanmar.
Por sua vez, Matthew Smith, diretor da organização Fortify Rights, disse que o Exército deve parar as detenções e dar garantias da segurança e do bem-estar dos detidos.
Refugiados Rohingya no Bangladesh satisfeitos “O Exército de Myanmar deve libertar imediata e incondicionalmente Aung San Suu Kyi, funcionários do Governo e todos os detidos ilegalmente. As ações do Exército mostram total desdém pelas eleições democráticas”, afirmou Brad Adams, diretor da Human Rights Watch (HRW) Ásia.
A vice-diretora regional da Amnistia Internacional, Ming yu Hah, descreveu as detenções como “extremamente alarmantes” e exigiu que fossem libertados “imediatamente” se não pudessem ser acusados de qualquer crime reconhecido pelo direito internacional.
“É um momento sinistro para o povo da Birmânia e ameaça agravar a repressão militar e a impunidade”, frisou, usando a antiga designação de Myanmar.
Por sua vez, Matthew Smith, diretor da organização Fortify Rights, disse que o Exército deve parar as detenções e dar garantias da segurança e do bem-estar dos detidos.
Os refugiados Rohingya no Bangladesh manifestaram-se satisfeitos com as detenções.
"Sinto uma sensação de alegria, porque Suu Kyi é em grande parte responsável pelo genocídio contra nós", disse Mohammad Jubair, líder da Sociedade Arakan Rohingya pela Paz e Direitos Humanos, de Kutupalong, o principal campo de refugiados em Cox's Bazar, no sudeste do Bangladesh.
Cerca de 738 mil Rohingya fugiram para esses campos após o início, em agosto de 2017, de uma campanha de perseguição e violência do exército birmanês no país vizinho, que a ONU descreveu como um exemplo de limpeza étnica e possível genocídio, algo que os tribunais internacionais estão a investigar.“Violaram as nossas mães e irmãs, mataram o nosso povo, tiraram as nossas terras e obrigaram-nos a morar aqui neste pequeno abrigo, mas ela (Suu Kyi) não fez nada. Bem-vindo (a prisão e o golpe militar). Vou comemorar", disse Jubair.
No entanto, o líder Rohingya disse não acreditar que o golpe militar vá afetar o processo de repatriação dos refugiados para a Birmânia, já que considera que depende sobretudo da comunidade internacional.
"A Birmânia não aceitará o nosso regresso sem a pressão da comunidade internacional. Está a decorrer um processo judicial. Assim que estiver concluído, esperamos poder regressar", acrescentou.
Por seu turno, Abdur Rahman, que lecionava na Birmânia antes de fugir para o Bangladesh, reconheceu em declarações à agência de notícia espanhola Efe que "nenhum golpe é bom".
Também o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Bangladesh, AK Abdul Momen, se mostrou preocupado com o que se passa na Birmânia, pois acredita no "princípio da democracia" e também, como país vizinho, espera "paz e estabilidade".
“O processo constitucional deve ser respeitado na Birmânia. Iniciamos seriamente as negociações para a devolução dos Rohingya e esse processo deve continuar em qualquer circunstância”, garantiu o ministro.
C/agências