Os eleitores escolhem entre mergulhar a Itália numa crise e a possibilidade de ficar sob a égide de um Governo tecnocrático, ou a possibilidade de agilizar a ação governativa e acelerar os processos de legislação. Mas o voto deste domingo é tudo menos linear.
Goffredo Adinolfi, investigador de Ciência Política do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (IES) do ISCTE - IUL, falou com a RTP sobre o referendo e desconstruiu as narrativas reiteradas pelo “sim” e pelo “não” e a situação “paradoxal” que caracteriza esta votação.
Voto “dramatizado”
Adinolfi nasceu em Itália e é doutorado em História pela Universidade de Milão, mas vive em Lisboa desde 1998. Fez investigação sobre o fascismo do século XX em Portugal e em Itália. Dedica-se atualmente ao estudo das crises da democracia na Europa em relação à emergência de movimentos populistas. Além da investigação, é também correspondente para Il Manifesto, jornal italiano com o qual colabora com artigos sobre Portugal.
Mas a distância não o impede de acompanhar de perto a realidade política e social italiana, muito conturbada nos últimos meses. Um terrível terramoto, a questão dos refugiados, a crise e insustentabilidade dos bancos e o sentimento antieuropeísta crescente na sociedade colocam este fim-de-semana todos os focos de atenção sobre a grande bota no centro do Velho Continente.
No que diz respeito ao referendo, Adinolfi coloca-se categoricamente do lado do "não" e, por viver no estrangeiro, até já entregou o voto antecipadamente. Considera que Matteo Renzi, primeiro-ministro de Itália desde 2014, se rege por uma “lógica populista” para conseguir captar o voto dos italianos.
Um tema recorrente
Atualmente, no sistema italiano, para ser aprovada uma lei deve passar pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, duas câmaras que têm exatamente a mesma função. Com as alterações constitucionais, o Senado perde elementos (passa de 315 para cerca de 100 senadores), perde relevância na aprovação de leis e assume um papel muito mais regional.
Não se sabe ao certo, aprovada a alteração da lei, como seriam nomeados ou eleitos estes senadores, e se seriam escolhidos pelas próprias regiões de Itália. Goffredo Adinolfi explica que, caso vença o “sim”, o Senado “não vai ter poder de veto para as leis”. Antes, se uma lei era aprovada pela Câmara dos Deputados, essa mesma lei deveria ser aprovada de igual forma pelo Senado.
“Desta forma, havia um poder de escrutínio bastante maior, no sentido que, na passagem da Câmara para o Senado, era muito mais fácil detetar um erro. Torna um pouco mais lento o processo de aprovação das leis, mas permite perceber o que era o conteúdo destas leis”, explica o investigador.
O assunto das reformas não é de todo novidade na vida dos italianos. Quase todos os presidentes do Conselho tentam levar a cabo mudanças estruturais de grande importância enquanto estão no poder. A reforma constitucional e das leis eleitorais é tema recorrente desde 1992.
Este referendo é, efetivamente, o terceiro voto popular no que diz respeito a reformas constitucionais na história da república italiana. Dos outros dois escrutínios, a reforma de 2001 foi aprovada e a de 2006 foi rejeitada.
Este referendo é, efetivamente, o terceiro voto popular no que diz respeito a reformas constitucionais na história da república italiana. Dos outros dois escrutínios, a reforma de 2001 foi aprovada e a de 2006 foi rejeitada.
“Tivemos várias reformas eleitorais, várias tentativas de reformas constitucionais, num clima de estagnação económica”, explica.
Através da mobilização e ímpeto reformista, os vários líderes governamentais alcançam apenas o imobilismo económico e não acertam “no ponto determinante”, visto que a economia “ainda não está a crescer”.
Segundo a previsão de outono da União Europeia, o PIB italiano deverá crescer apenas 0,7 por cento em 2016, o mesmo valor que já tinha registado no ano passado. Um crescimento “a um ritmo modesto”, classifica Bruxelas. “Em Itália, as leis tornaram-se um fim e não um meio”, explica o especialista.
Adinolfi refere que a proposta dos vários partidos políticos nos últimos anos tem sido feita no sentido de reformar o sistema político, da Constituição e da lei eleitoral, para que se possa apostar no crescimento da economia. As formas de poder, os corpos intermédios, são vistos como um “entrave” às grandes reformas que Itália deve aplicar para voltar à prosperidade.
A estagnação acontece porque, argumentam os vários Governos, os ministros “não têm poder” para iniciar reformas. O investigador desmonta este raciocínio e refere que “nos últimos 20 anos foram feitas reformas no ensino, nas pensões, no Estado Social”, mas que não conseguiram acertar passo do ponto de vista económico.
“Evidentemente a economia ainda não está a crescer. Mas de facto os italianos estão acostumados a viver neste clima em que são as regras do jogo que devem mudar e que de facto mudam constantemente. Nunca há um clima sereno para desenvolver novas políticas. Ninguém percebe qual é o projeto político real dos partidos”, acrescenta.
Renzi tem sido “antieuropeísta"
O mesmo acontece com este referendo, que se tornou, segundo afirma Goffredo Adinolfi, um meio de atingir popularidade por parte do atual primeiro-ministro, um voto de aprovação dado pelo povo ao próprio governante ao confirmar uma reforma por ele impulsionada durante dois anos.
“Ele pessoalizou bastante esta reforma, em combinação com o antigo chefe de Estado, Giorgio Napolitano. Está a tornar-se uma questão determinante para ele”, refere.
Matteo Renzi apela ao “sim” no referendo e, diz Adinolfi, faz uso de muitos argumentos que não fazem sequer referência aos conteúdos da reforma constitucional.
“As motivações são de caráter muito populista. Diz que é preciso reduzir os custos da política, por exemplo, e quer reduzir o número de senadores (…) mas teria sido muito mais rápido [aprovar] uma lei ordinária que reduzisse para metade os vencimentos dos deputados”, argumenta.
A própria postura denuncia o primeiro-ministro, segundo afirma este investigador. Ao ponto de a bandeira da União Europeia ter desaparecido das suas conferências de imprensa sobre o referendo.
Goffredo subscreve os argumentos de Nadie Urbinati, investigadora de ciência política na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, quando esta diz que Renzi “tem uma postura populista”.
“Esta lógica populista é a ideia de governar diretamente e apelar ao povo, sem ter em conta os corpos intermédios. Renzi tem todo um discurso contra o seu partido, contra a Europa. Na campanha para este referendo, ele tem tido uma retórica muito antieuropeísta”, refere.
De facto, Matteo Renzi, antigo presidente da Câmara de Florença, chega ao poder em 2014, quando a Itália atinge o auge do discurso populista.
Criado em 2009, no início da crise financeira, o Movimento 5 Estrelas nasce a partir de um blog satírico de Beppe Grillo. Define-se como “um não partido político”, é apologista da democracia direta e apresenta geralmente uma conotação fortemente antieuropeísta.
Nas eleições legislativas de 2013, o Movimento 5 Estrelas (M5S) alcançou um estrondoso resultado, conseguindo obter 109 deputados em 630 na Câmara dos Representantes e 54 em 215, no Senado. Ficou apenas atrás do Partido Democrático e do Centro-Direita, liderado por Silvio Berlusconi, com menos quatro por cento de votos que as duas grandes forças políticas.
Como se explica esta ascensão? Em 2011, o Governo tecnocrático de grande coligação uniu o Partido Democrático ao Povo da Liberdade, dois partidos fulcrais que apoiavam o executivo de Mario Monti. “Na perceção da opinião pública, o único partido realmente de oposição era o 5 Estrelas”, refere Adinolfi.
“Esta foi uma grande revolução no sistema político italiano. Todos os partidos tiveram de candidatar ou apresentar secretários ou líderes capazes de ter um discurso populista”, acrescenta o investigador.
Os paradoxos italianos
Sobre o escrutínio deste domingo, que tem sido conotado pela imprensa internacional como a próxima grande surpresa eleitoral de 2016, depois do Brexit e da eleição de Donald Trump, o investigador desvaloriza tais alarmismos e considera que o referendo “está a ser muito dramatizado”. Até porque, defende Adinolfi, o referendo constitucional em Itália não trará grandes mudanças, independentemente da vitória do sim ou do não.
Ainda assim, Adinolfi vê muito mais perigos numa eventual aprovação popular destas reformas constitucionais, em conjunto com a nova lei eleitoral. É que a natureza destas leis perturbaria o “bicameralismo perfeito” do regime italiano e constituiria a conquista de grande autonomia governativa, num país que em 2013 esteve perto de escolher o Movimento 5 Estrelas nas eleições legislativas.
“O não mantém a situação. Normalmente ficamos mais assustados se a situação muda significativamente. Desta vez o que assusta é a manutenção da situação”, refere.
O Movimento 5 Estrelas, que em junho último apoiou Virgina Raggi - a primeira mulher à frente dos destinos de Roma - surge muito próximo dos principais partidos nas mais recentes sondagens. Vários investigadores apontam para os perigos de uma reforma constitucional que, ao ser aprovada, poderá gerar uma deriva populista e até bloquear todo o sistema político, justamente pela clivagem das leis que devem ser aprovadas pela Câmara dos Representantes e do Senado.
“Sem um sistema de checks and balances, de controlo de poderes completamente inexistente. Do ponto de vista histórico é mais preocupante e assustador que ganhe o sim. Mas na perceção dos media estrangeiros, o não é mais arriscado”, explica Goffredo Adinofi, acrescentando que esta situação “é um paradoxo”.
Segundo o académico, se o “sim” for aprovado anula-se à democracia a sua vertente liberal e reforça-se a soberania popular, ou seja, o voto direto do povo.
“Pode parecer uma coisa positiva. Finalmente é o povo quem manda. Mas se o povo elegesse o 5 Estrelas, se o povo tivesse de votar num referendo pela pena de morte …O povo tem sempre razão? É o que os constitucionalistas franceses chamam de ditadura da maioria”, refere.
Poderá não chegar a esse extremo, mas o Movimento 5 Estrelas já abriu a porta à possibilidade de convocar um referendo sobre a permanência de Itália da Zona Euro, caso o partido chegue ao poder. A vitória do sim nesse hipotético referendo, significaria a saída da terceira maior economia da moeda única, um abalo que poderia ditar o fim do euro.
Mas aqui reside outro paradoxo, identificado por Adinolfi. É que o próprio Movimento 5 Estrelas está contra as reformas eleitorais propostas pelo referendo.
“O Movimento 5 Estrelas, que poderia ganhar muito num sistema reformado, está a fazer campanha contra. Ou seja, temos um partido anti-establishment que está a fazer campanha para manter o establishment, para manter as regras do jogo inalteradas”.
De destacar também a imensa variedade de configurações presentes do lado do “não”. Vários professores de Direito Constitucional opõem-se às alterações, mas também o CasaPound, da extrema-direita assumidamente neo-fascista, o que muito serve aos apoiantes do “sim”, que segundo o investigador se aproveitam deste facto para fazer generalizações.
“Não são eleições políticas”
Apesar de tudo o que está em jogo, Goffredo Adinolfi desvaloriza por completo os possíveis efeitos deste referendo, que alguns analistas chegam mesmo a apontar como o princípio do fim da moeda única e da União Europeia. Outros, especialistas em ciência política, apontam que este pode mesmo ser o início de uma Terceira República italiana.
O investigador reconhece que a campanha para o referendo “é uma das mais polémicas que houve em Itália”, provavelmente desde as eleições de 1994, de Berlusconi, em pleno furacão provocado pelo processo Mani Pulite (“Mãos Limpas”), que abalou por completo a política interna italiana.
Apesar do “clima péssimo” que se vive no país, Adinolfi relembra que os eleitores que vão este domingo às urnas estão apenas a chumbar uma reforma constitucional, não se tratando em concreto de uma eleição para o Governo.
“Em todo o caso, não são eleições políticas. (…) Os italianos vão para dizer sim ou não à reforma constitucional que foi feita”, foca o investigador.
No entanto, se os italianos chumbarem a reforma é apenas e só isso que estão a negar. “Não estão a chumbar o Governo. O erro foi de Renzi, em pessoalizar este referendo”, acrescenta.
Para “dramatizar” e “assustar as pessoas” antes do voto de domingo, Renzi ameaçou que se demitiria em caso de derrota do “sim”, explica Adinolfi.. Mas não se sabe o que pode realmente acontecer, até porque o primeiro-ministro pode olhar ao perigo de instabilidade no país e permanecer no poder.
Além disso, refere Goffredo Adinolfi, a saída de Matteo Renzi não é um dado adquirido em caso de vitória do “não”. É que o primeiro-ministro italiano “já fez muitas promessas que depois não manteve”, lembra o investigador.
“O Movimento 5 Estrelas, que poderia ganhar muito num sistema reformado, está a fazer campanha contra. Ou seja, temos um partido anti-establishment que está a fazer campanha para manter o establishment, para manter as regras do jogo inalteradas”.
De destacar também a imensa variedade de configurações presentes do lado do “não”. Vários professores de Direito Constitucional opõem-se às alterações, mas também o CasaPound, da extrema-direita assumidamente neo-fascista, o que muito serve aos apoiantes do “sim”, que segundo o investigador se aproveitam deste facto para fazer generalizações.
“Não são eleições políticas”
Apesar de tudo o que está em jogo, Goffredo Adinolfi desvaloriza por completo os possíveis efeitos deste referendo, que alguns analistas chegam mesmo a apontar como o princípio do fim da moeda única e da União Europeia. Outros, especialistas em ciência política, apontam que este pode mesmo ser o início de uma Terceira República italiana.
O investigador reconhece que a campanha para o referendo “é uma das mais polémicas que houve em Itália”, provavelmente desde as eleições de 1994, de Berlusconi, em pleno furacão provocado pelo processo Mani Pulite (“Mãos Limpas”), que abalou por completo a política interna italiana.
Apesar do “clima péssimo” que se vive no país, Adinolfi relembra que os eleitores que vão este domingo às urnas estão apenas a chumbar uma reforma constitucional, não se tratando em concreto de uma eleição para o Governo.
“Em todo o caso, não são eleições políticas. (…) Os italianos vão para dizer sim ou não à reforma constitucional que foi feita”, foca o investigador.
No entanto, se os italianos chumbarem a reforma é apenas e só isso que estão a negar. “Não estão a chumbar o Governo. O erro foi de Renzi, em pessoalizar este referendo”, acrescenta.
Para “dramatizar” e “assustar as pessoas” antes do voto de domingo, Renzi ameaçou que se demitiria em caso de derrota do “sim”, explica Adinolfi.. Mas não se sabe o que pode realmente acontecer, até porque o primeiro-ministro pode olhar ao perigo de instabilidade no país e permanecer no poder.
Além disso, refere Goffredo Adinolfi, a saída de Matteo Renzi não é um dado adquirido em caso de vitória do “não”. É que o primeiro-ministro italiano “já fez muitas promessas que depois não manteve”, lembra o investigador.