Em direto
Incêndios em Portugal. A situação ao minuto

Gaza. O desafio de contar vítimas ao cabo de dez meses de guerra

por Cristina Sambado - RTP
Anadolu via AFP

A contagem dos mortos é um desafio quotidiano na Faixa de Gaza, bombardeada há dez meses e transformada, em grande parte, num campo de ruínas. Como é que o Ministério da Saúde do Hamas calcula o número de mortos, que se aproxima dos 40 mil?

Os cadáveres são identificados quer pelas provas encontradas sobre eles, quer por um familiar, como constataram os jornalistas da AFP que visitaram várias vezes os hospitais de Gaza.

Os dados pessoais dos mortos são depois introduzidos numa base de dados informatizada pertencente ao Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, que regista o nome, o sexo, a data de nascimento e o número do bilhete de identidade do falecido.
Quando os corpos não são identificados - quer estejam irreconhecíveis ou ninguém os venha reclamar, quer famílias inteiras sejam por vezes mortas por um ataque - os prestadores de cuidados registam-nos com um número e o máximo de informação que conseguem reunir.
Joias, relógios, telefones, marcas de nascença: qualquer pista é recolhida e fotografada. Dois correspondentes da AFP testemunharam a forma como os estabelecimentos de saúde alimentam o sistema do Ministério com informações.

Em vários comunicados de imprensa, o Ministério da Saúde de Gaza explicou também o procedimento utilizado para o apuramento do número de mortos.

Para os chamados "hospitais do governo", sob a administração do Hamas no poder em Gaza, os "dados pessoais e o número de identidade" de cada palestiniano morto durante a guerra são introduzidos na base de dados informatizada do estabelecimento após a chegada do corpo ou após a sua morte, no caso dos feridos que sucumbem, segundo o Ministério.


Estes dados são depois transmitidos "diariamente" ao "registo central dos mártires" do Ministério.

Quanto aos mortos evacuados para hospitais privados, os seus dados pessoais são registados num formulário que é enviado "no prazo de 24" horas ao Ministério para inclusão na base de dados central.
O "centro de informação", um departamento específico do Ministério, é responsável por verificar as informações fornecidas pelos hospitais "governamentais" e privados para "garantir que não há duplicações ou erros", antes de registar os nomes na base de dados.

Os habitantes de Gaza são igualmente convidados pelas autoridades palestinianas a comunicar a perda de um ente querido numa página na internet do Ministério da Saúde, que utiliza os dados para os seus próprios controlos.

O Ministério é composto por funcionários públicos que respondem tanto à Autoridade Palestiniana, com sede em Ramallah, como ao Hamas, o movimento rival que tomou o poder na Faixa de Gaza em 2007.


Um estudo da ONG Airwars, especializada no impacto da guerra sobre os civis, que analisou cerca de três mil nomes de pessoas mortas, estabeleceu "uma forte correlação entre os dados oficiais (...) e o que os civis palestinianos relataram online - 75 por cento dos nomes relatados publicamente também aparecem na lista do Ministério da Saúde".

O estudo refere, no entanto, que à medida que a guerra avançava, as estatísticas do Ministério "tornaram-se menos exatas", argumentando que os danos causados ao sistema de saúde tornaram a tarefa mais difícil.

Por exemplo, dos 400 computadores do hospital Nasser, um dos últimos estabelecimentos de saúde a laborar, em parte, no sul da Faixa de Gaza, apenas 50 estão a funcionar, revelou o diretor, Atef Al-Hout, à AFP.

Enquanto as autoridades israelitas questionam regularmente as estatísticas do Hamas, que não especificam o número de civis e combatentes mortos, suspeitando que são manipuladas, o exército e o primeiro-ministro não contestam a ordem de grandeza do balanço global.Em Gaza, os serviços de imprensa do governo do Hamas estimam que cerca de 70 por cento dos cerca de 40 mil mortos são mulheres (cerca de 11 mil) e "crianças" (pelo menos 16.300).

Em Israel, o ataque sem precedentes do Hamas no sul do país, a 7 de outubro de 2023, causou as mortes de 1.198 pessoas, a maioria civis, segundo uma contagem da AFP baseada em dados oficiais israelitas.

Os números diários publicados pelo Ministério da Saúde do Hamas foram por vezes contestados, nomeadamente pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que pôs em causa a sua credibilidade no início do conflito.

Mas, em março passado, falou de "milhares e milhares" de civis mortos, sem comentar a veracidade das estatísticas do Ministério, que contabilizam também os feridos.

Estes números são citados pela maioria das organizações internacionais e várias agências da ONU, nomeadamente a agência responsável pelos refugiados palestinianos (UNRWA), consideraram as estatísticas credíveis.


"No passado, as estatísticas relativas aos cinco ou seis ciclos de conflito na Faixa de Gaza eram consideradas credíveis. Nunca ninguém pôs verdadeiramente em causa estes dados", afirmou Philippe Lazzarini, diretor da Unrwa, em Jerusalém, no final de outubro.

Um estudo publicado pela revista médica britânica The Lancet estima que 186 mil mortes podem ser atribuídas ao conflito em curso na Faixa de Gaza, incluindo causas indiretas como as mortes relacionadas com a crise sanitária.
PUB