"Isto não se faz entre aliados", reagiu o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, "zangado e amargurado" com o acordo anunciado quarta-feira e que vai permitir à Austrália construir submarinos norte-americanos de última geração com propulsão nuclear, com apoio dos EUA e britânico.
Há apenas duas semanas, os ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros australianos confirmaram junto de Paris este mesmo acordo, firmado com o construtor naval francês Naval Group, para substituir os anteriores submarinos franceses Collins, com duas décadas de uso.
Ao receber em Junho Scott Morrison, o primeiro-ministro da Austrália, o presidente francês Emmanuel Macron tinha também celebrado as décadas de futura cooperação entre os dois Estados.
“É uma facada nas costas. Criámos uma relação de confiança com a Austrália e essa confiança foi traída”, reagiu esta quinta-feira Le Drian.
A frustração gaulesa levou mesmo o ministro a deixar de lado a fleuma diplomática e a fazer comparações pouco elogiosas para o presidente Joe Biden, num novo sinal de distanciamento entre parceiros transatlânticos, numa altura em que a confiança francesa nos Estados Unidos atinge novos mínimos.
“Esta decisão brutal, unilateral e imprevisível lembra muito a forma como o sr. Trump costumava agir”, afirmou à rádio France Info. “Isto não se faz entre aliados”.
Questionado se Washington “enganou” Paris quanto ao que o próprio Le Drian chegou a considerar o “contrato do século” dos estaleiros franceses, o ministro não hesitou em responder que “a sua análise da situação está mais ou menos correta”.
E Paris não vai ficar de braços cruzados, garantiu. “Vamos necessitar de esclarecimentos. Temos contratos. Os australianos precisam de nos dizer como tencionam denunciá-los”, afirmou o francês.
A fúria de Paris já começou a ter consequências, com o cancelamenta da gala comemorativa da aliança entre os Estados Unidos e a França, a pretexto dos 240 anos do apoio francês à revolução americana na batalha da Baía de Cheasepeake contra a Marinha Real britânica. A gala ia ter lugar sexta-feira na embaixada francesa em Washington.
JustificaçõesO primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, afastou as críticas e sublinhou que as relações franco-britânicas são “absolutamente sólidas”. O pacto irá “preservar a segurança e a estabilidade em todo o mundo” e gerar “centenas de empregos especializados”, acrescentou.
O secretário britânico da Defesa, Ben Wallace, defendeu o novo acordo submarino, mantendo que não implica uma mudança estratégica de fundo entre Paris e Londres. “Os australianos decidiram que precisavam de alterar” o acordado, afirmou à BBC esta quinta-feira.
“Não fomos à pesca disso mas enquanto aliados próximos, quando os australianos falaram connosco, claro, estudámos a proposta. Percebo a frustração francesa quanto ao assunto”, acrescentou Wallace. O Aukus é considerado por analistas como um dos mais significativos acordos de segurança e defesa desde o fim da II Guerra Mundial. Seria preciso remontar a 1958 para encontrar outro contrato semelhante, firmado então entre os EUA e o Reino Unido.
O fito não declarado das três potências signatárias será o de contrariar o domínio chinês do Indo-Pacífico, já que os novos submarinos estacionados na Austrália no âmbito do acordo são muito mais rápidos e muito mais difíceis de detetar do que os submarinos convencionais, o que confere maior influência aos EUA na região.
O Aukus irá ainda implicar a partilha de capacidades cibernéticas, Inteligência Artificial e de diversas outras tecnologias de vigilância submarinas.
Corrida às armas
Considerado uma resposta direta ao investimento de Pequim na modernização e desenvolvimento das suas capacidades nucleares, o acordo tripartido traz receios de uma nova corrida ao armamento e de uma escalada das tensões entre potências nucleares.
Joseph Borrell, responsável pela diplomacia da União Europeia, reagiu ao acordo sublinhando que o bloco necessita igualmente de desenvolver as suas próprias estratégias de defesa e securitárias, particularmente no Indo-Pacífico. “Temos de sobreviver à nossa custa, tal como outros o fazem”, disse Borrell esta quinta-feira ao apresentar uma nova estratégia europeia para a região asiática, referindo a “autonomia estratégica” já defendida por Macron.
Borrell acrescentou que a União Europeia não foi consultada quanto ao acordo entre Camberra, Londres e Washington. “Compreendo até que ponto do Governo francês deve estar desiludido”, afirmou.
A Associação de Controlo de Armas, uma organização norte-americana apartidária, lamentou a iniciativa que resultou no Aukus e alvitrou que a experiência diplomática ocidental seria mais útil no desenvolvimento de um sistema que obrigasse cada Estado a informar os restantes quanto às suas capacidades nucleares.
Melhor ainda, o Reino Unido e os seus aliados deveriam estar a tentar convencer Pequim a desistir de possuir armas nucleares, em vez de lhe darem pretexto para novos investimentos, referem ainda alguns observadores críticos e adeptos de uma diplomacia suave.
Ameaças à Austrália
A própria China acusou os três aliados do Aukus de regressarem aos tempos da Guerra Fria, quando Ocidente e União Soviética investiam em ameaças nucleares sucessivamente mais graves.
Um especialista militar chinês avisou mesmo que a Austrália “corre o risco de se tornar alvo de um ataque nuclear”, apesar das promessas de Scott Morrison de que os novos submarinos não serão equipados com armas atómicas, em respeito pela decisão do país de não se tornar uma potência nuclear.
Dirigindo-se a Morrison, o especialista militar sénior, sem se identificar, afirmou a um jornal australiano que nem a Rússia nem a China tratarão a Austrália como “uma potência nuclear inocente, mas sim como uma aliada dos Estados Unidos, podendo estar armada com armas nucleares a qualquer momento”.
Ao Parlamento britânico, Boris Johnson garantiu que o Aukus “não pretende ser contencioso”. O acordo, acrescentou, reflete “a relação próxima que temos com os Estados Unidos e com a Austrália, os valores partilhados entre nós e o absoluto nível de confiança” mútua.
A intervenção britânica, que terá sido determinante para o estabelecimento do Aukus, fez erguer algumas sobrancelhas, até porque o seu contributo será mínimo se comparado com o norte-americano.
Os analistas acreditam que esta foi uma forma de Londres afirmar aos britânicos e ao mundo em geral que não precisa da União Europeia para manter a sua influência global.
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