Extrema-direita celebra vitória "ideológica" na nova lei de imigração em França

por Graça Andrade Ramos - RTP
Marine Le Pen durante o debate na Assembleia Nacional de França sobre imigração a 11 de dezembro de 2023 Stephanie Lecocq

O texto levado esta terça-feira a votação na Assembleia francesa foi acordado por uma Comissão Mista Paritária (CMP) de sete deputados e de sete senadores, após meses de debate, e prevê o agravamento das medidas de permanência de imigrantes em França e dos motivos de eventual expulsão.

A reunião da Comissão foi atribulada, tendo os trabalhos sido iniciados pelas 17h00 locais de segunda-feira e sido interrompidos várias vezes. O acordo só surgiu pelas 16h00 desta terça-feira, hora francesa (15h00 em Portugal).

O presidente Emmanuel Macron já prometera abandonar as alterações legislativas caso a CMP falhasse o acordo ou o texto saído dela fosse chumbado pelo Parlamento.

A adoção do texto levou a reações inflamadas da esquerda, a apelos ao seu chumbo no Parlamento para evitar "uma grave crise política" e à convocação de manifestações de estudantes e de juventudes partidárias, maioritariamente de esquerda, na praça des Invalides, ao fim do dia, em "resposta imediata e unitária".

A votação do acordo está prevista para as 19h00 no Senado e 21h30 no Parlamento [menos uma hora em Lisboa]. A aprovação no Senado está praticamente garantida, a dos deputados poderá reservar surpresas apesar da direita e da extrema-direita já terem confirmado que irão votar a favor.

O Eliseu convocou uma reunião extraordinária do seu grupo parlamentar antes da votação, para colmatar eventuais dissensões. Duas dezenas de deputados do Renaissance, de Macron, anunciaram o voto contra o acordo e contra um "discurso que amalgama estrangeiro com perigo".
Vitória "ideológica"
Quase todas as medidas incluídas no texto do acordo saído da CMP foram propostas originalmente pelos representantes da direita e da extrema-direita, que disputam agora os louros da conquista.

Marine Le Pen, do Rassemblement National, que sempre rejeitou a regularização da imigração por via laboral, saudou "uma vitória ideológica, por ter ficado inscrita agora nesta lei a 'prioridade nacional'", expressão usada há décadas pela extrema-direita francesa.

"Hoje, são os Republicanos que, graças ao seu trabalho, graças às suas ideias, impõem este texto", afirmou por seu turno à imprensa Eric Ciotti, presidente do partido Les Republicains, de cariz liberal e conservador que tem vindo a adotar linhas mais duras para com a imigração.

A esquerda francesa indignou-se com a nova legislação, que dizem romper com princípios universais sagrados ao introduzir uma discriminação com base na nacionalidade.

"Há uma nova maioria de facto quanto à questão migratória, que é uma maioria de extrema-direita", afirmou o secretário-geral do Partido Socialista, Olivier Faure, lamentando o apoio eleitoral dado anteriormente a Emmanuel Macron.

O ecologista Benjamin Lucas denunciou igualmente uma "vitória ideológica importante" da extrema-direita, que colocou em perigo o "juramento humanista" feito aos franceses e acusando o executivo de ter "cedido em toda a linha".

Também os comunistas denunciaram a preferência de Macron em "negociar com a direita e a extrema-direita". O texto constitui "um tombo na legislatura, na história da nossa República e dos seus valores fundamentais", estimou Fabien Roussel, secretário-geral do PCF.
Executivo defende-se
Sob a chuva de críticas da esquerda, que classificou o acordo "um grande momento de desonra" para o executivo, a primeira-ministra Elisabeth Borne, negou que a legislação seja uma "amálgama" das posições do executivo e da extrema-direita.

"Nós combatemo-la", afirmou. "A extrema-direita é a rejeição dos estrangeiros por princípio", referiu, "é a preferência nacional". "Nós acreditamos na integração através do trabalho", acrescentou ainda, defendendo a "eficácia" do projeto-lei "conforme aos valores republicanos".

"Esta legislação irá tornar o nosso sistema mais eficiente, porque irá simplificar drasticamente os nossos processos para processar pedidos de asilo e porque irá tornar possível expulsar mais rapidamente estrangeiros criminosos ou radicalizados", sublinhou Borne no Parlamento.

O texto aprovado em sede de CMP resultou da necessidade de compromisso do executivo do presidente Emmanuel Macron com os conservadores, depois de ter visto o seu projeto, mais suave, chumbado pela Assembleia Nacional na semana passada.

O partido do presidente está contudo profundamente dividido perante a nova legislação e o sucesso com o acordo obtido esta terça-feira poderá vir a custar caro a Macron, que dispõe de apenas uma maioria relativa no Parlamento. 
"Xenofobia descomplexada"
O primeiro projeto-lei avançado pelo executivo pretendia ser um misto de "pau e cenoura", que iria facilitar aos migrantes com contrato de trabalho obter autorizações de residência ao mesmo tempo que facilitava a expulsão de ilegais.

A legislação agora saída da Comissão Mista Paritária é contudo muito diferente da inicial. No Senado, dominado pelo centro-direita e pela extrema-direita, as alíneas foram-se tornando progressivamente mais repressivas. O texto acordado esta terça-feira corresponde em 90 por cento a estas propostas.

"É uma verdadeira viragem, que vai permitir reduzir as entradas e aumentar as partidas", celebrou Bruno Retailleau, líder do grupo parlamentar dos republicanos e um dos grandes promotores da nova legislação.

"Pela primeira vez desde há muito tempo, a França outorga-se os meios de recuperação do controlo da sua política migratória. Resta agora ao governo aplicar a lei com todo o rigor", acrescentou.

O acordo foi deplorado por mais de meia centena de ONG, associações e sindicatos, incluindo a Liga dos Direitos Humanos, num comunicado comum.

Consideraram "nem mais nem menos o projeto-lei mais retrógrado desde, pelo menos, os últimos 40 anos, para os direitos e condições de vida das pessoas estrangeiras, incluindo as presentes desde há muito tempo em França".

O texto saído da CMP não passa de "xenofobia descomplexada", acusaram.
O que inclui o projeto-lei
  • O projeto-lei altera as condições de acesso dos imigrantes a prestações sociais não contributivas, como os abonos de família, ajudas de custo de apoio à autonomia, ou direito à habitação. Passa a distinguir entre os que estão, ou não, "em situação de emprego", estabelecendo um período de espera de cinco anos para os que não trabalham e de trinta meses para os restantes.
  • O acesso a Ajuda Pessoal para o Alojamento, APL, foi um dos pomos da discórdia. Ficou previsto que o acesso fique dependente de uma permanência de cinco anos em França para os imigrantes que não trabalham ou de três meses para os empregados.
  • Estudantes estrangeiros, refugiados e titulares de uma carta de residente não são abrangidos por estas novas restrições. Aos estrangeiros que solicitem uma autorização de residência "de estudante" passará a ser pedida uma caução, para cobrir eventuais "custos de afastamento".
  • O acesso ao título de residência de "estrangeiros doentes" e à ajuda médica estatal será igualmente mais restrito, não podendo ser acordado, salvo algumas exceções, exceto se o "tratamento apropriado" não existir no país de origem. Se a segurança social francesa considerar que o requerente tem igualmente recursos suficientes para pagar o tratamento, não terá direito à assistência estatal.
  • Quanto à regularização da permanência em França, um imigrante sem papéis não poderá pedir uma autorização de residência sem o aval do seu empregador, exceto se as autoridades locais o considerarem essencial para uma atividade económica específica.
  • Os outros poderão pedir um visto de permanência de um ano, decidido caso a caso, desde que tenha residido três anos em França e exercido labor assalariado por pelo menos 12 meses dos anteriores 24. Uma restrição "experimental" que só entrará em vigor em finais de 2026.
  • Está ainda previsto introduzir quotas imigratórias, a par de um debate parlamentar anual sobre a migração.
  • A perda da nacionalidade passa a incluir os detentores de dupla nacionalidade condenados por homicídio voluntário de toda a pessoa representante de autoridade pública.
  • Deixa de ser automática a atribuição da nacionalidade francesa aos nascidos em França de pais estrangeiros, tendo de ser pedida entre os 16 e os 18, sendo negada se a pessoa for condenada por violação da lei.
  • O projeto-lei recupera ainda a figura de "delito de permanência irregular", penalizado com multa sem detenção.
  • Uma das conquistas do governo de Macron neste acordo é a proibição de colocar estrangeiros menores sob detenção.
  • Para o reagrupamento familiar, as novas regras irão impor uma permanência mínima em França de 24 meses do requerente, devendo apresentar prova que recursos "estáveis, regulares e suficientes" e dispor de seguro de saúde.
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