"A exploração sexual de menores está presente em cada canto" do país, garante Alba Rodríguez da ONG Save The Children. "Em Sosúa, Boca Chica, atrás de qualquer mercearia em Santo Domingo, nas zonas industriais…", enumera para o El País.
Alejandra Agudo, jornalista do diário espanhol,
mergulha neste mundo, para contar as histórias das vítimas do tráfico e dos proxenetas, e apontar o dedo à falta de apoio aos sobreviventes e à corrupção, que implica agentes das forças de segurança e políticos na prostituição e no tráfico.
No seu artigo menciona documentos da Embaixada norte-americana da República Dominicana, que corroboram o flagelo mencionado por Alba. A prostituição "dá-se nas ruas, nos parques e nas praias. Os traficantes usam catálogos para vender as vítimas a potenciais clientes, utilizando residências privadas, apartamentos alugados e hotéis de aluguer prolongado para as alojar", referem. "As relações sexuais com menores estão normalizadas na sociedade, mas mantêm-se invisíveis nas comunidades, nos bairros, nas famílias", acrescentam.
"Existe a perceção generalizada que as meninas e os adolescentes provocam essas situações e procuram relações com adultos. Descura-se a proteção do menor, que, pelo facto de o ser, nunca pode dar consentimento", explica por seu lado o subcomandante do Departamento para o Tráfico de Pessoas da polícia dominicana. Argumentos que explicam que as denúncias de exploração sexual abranjam apenas meninas. "Pensa-se que estão em rebeldia".
O marketing turístico aponta habitualmente as praias paradisíacas
do país e os hotéis "tudo incluído" como atrações principais. Os
horrores do tráfico humano para exploração sexual ficam escondidos,
tapados por imagens deslumbrantes. Muitos turistas, nacionais e
internacionais, que não vêm à República Dominicana em busca de sexo com menores, são por isso alheios aos dramas muitas vezes
vividos pelos jovens que os servem nos inúmeros bares espalhados pelo
país.
As crianças e adolescentes envolvidas no tráfico não são apenas nacionais. Muitas vêm do Haiti, outras da vizinha Colômbia. A maioria é atraída por membros das redes de tráfico, muitas vezes através de redes sociais e aplicações de chat, e acabam sequestradas.
Raptada, sequestrada, torturada, vendida, violada
Foi o caso de Flor de Lis. Tem agora 23 anos e não consegue esquecer o que lhe sucedeu "pelas cinco e seis minutos da tarde" de um certo dia em 2015.
Foi ao encontro de uma amiga, convidada para um dia de praia em Boca Chica, e aquela, membro de uma rede de tráfico, abandonou-a frente a um bar. Uma desconhecida revelou-lhe então que "trouxeram-te para aqui para que te deites com homens por dinheiro e te paguem bebidas".
Foi o fim da infância e o início de seis meses de tortura e de violações, a atender pelo menos oito clientes por dia, sob ameaças repetidas, espancamentos e coação.
Não era a única. No bordel, propriedade de um político local prestigiado, havia outras dez menores e seis mulheres adultas na mesma situação, a servir dominicanos e estrangeiros, "advogados, funcionários, pessoas sérias com quem te cruzas sem saber todo o mal que fizeram", explica Flor de Lis ao El País.
Em 2015, Flor de Lis era uma adolescente "muito novinha", separada da sua família e não sabia onde se encontrava."Estava longe de casa, maltratavam-me muito. Eu não queria estar com os clientes e batiam-me; quando tinha relações com algum cliente ficavam com o dinheiro, não me deixavam fazer um telefonema, não me deixavam sair", recorda.
"Às vezes nem me davam comida porque não queria deitar-me com os homens", acrescenta, mal contendo as lágrimas ao lembrar aquilo. Viveu espancamentos, quando se recusava a fazer uma felação ou não conseguia excitar o cliente, violações com objetos, pancadas com tubos até ficar quase morta, consumo forçado de álcool e de drogas para aguentar a violência diária.
"Eles destroçam-te a vida porque pensam apenas no seu próprio prazer. Diziam-te que se não fizesses algo bem, ou não o pusesses bem em pé, te iam enfiar um pau, te iam f… ou algo pior. Às vezes levavam-te para os montes e davam-te pancada e violavam-te ali sem dizer nada ao senhor do bar, apenas porque assim o queriam", relata.
"Aqui compra-se tudo"
O salvamento de Flor de Lis resulta de um misto de coincidências raras. O seu pai participou à polícia o seu desaparecimento. Foi o único, entre as 11 menores que ali eram prostituídas. Depois, ela convenceu um cliente a deixá-la telefonar a uma tia, a quem apenas pôde dizer que estava fechada num quarto. Foi contudo o suficiente para os investigadores rastrearem a chamada.
A operação seguinte decorreu com agentes à paisana. Flor de Lis lembra clientes que não a faziam beber, só trocavam sinais e olhares entre eles enquanto lhe faziam perguntas.
Até que um dia o proprietário a agarrou por um braço e um daqueles homens levantou-se e disse "não se mexa". "Flor de Lis não te movas, o teu pai mandou-te buscar", acrescentou. Ao ouvir o seu nome, pelo qual não era ali chamada, ela percebeu finalmente que aqueles homens conheciam a sua identidade. "Quase desmaiei. Só pensava, graças a Deus é um polícia", recorda.
Todas as meninas e mulheres foram entregues aos serviços sociais e o bordel encerrado, apesar dos protestos dos vizinhos, que defenderam o político local das acusações.
De acordo com a reportagem de Alexandra Agudo, os operacionais que operam à paisana são um progresso na luta contra a exploração sexual de menores na República Dominicana. Procuram obter provas além de resgatar as vítimas, para proceder a queixas mesmo em caso de inexistência de denúncias ou se estas forem retiradas devido a pressão, ameaças ou subornos.
Mesmo assim, os resultados não são dissuasores dos crimes. O presidente da Câmara de Valenzuela faz à jornalista espanhola notar que, "mesmo quando há condenações, não são exemplares". No caso de Flor de Lis, a sua amiga, o dono do bordel e a mulher que cobrava, permanecem em liberdade "e continuam a fazer o mesmo". "É gente poderosa. Aqui compra-se tudo", lamenta.
"A corrupção e a cumplicidade dos funcionários governamentais nos crimes de tráfico de seres humanos mantem-se motivo de preocupação, o que impede a atuação das forças de segurança", lê-se na documentação da embaixada norte-americana. "O Governo não informou sobre a situação de um caso de tráfico sexual de 2017, no qual estavam implicados agentes da polícia e membros do exército", acrescenta.
A ineficácia das entidades oficiais fica patente no número de vítimas oficiais de tráfico sexual registado em 2021. Num país em que a prostituição de menores sucede em cada canto, não passaram das 29, 21 meninas e dois rapazes menores.
Vinte e quatro das vítimas eram dominicanas, outras três haitianas e duas colombianas. Seis pessoas foram condenadas, quatro por tráfico sexual e duas por lenocínio. Já quanto ao ano de 2022, efetuaram-se 68 investigações e foram arrolados 98 suspeitos relacionados com 55 casos de tráfico, trabalho forçado e proxenetismo.
Desamparo
A falta de apoio às vítimas é também gritante. Em todo o país há apenas uma casa de acolhimento de sobreviventes com 24 camas. Outros centros mostram relutância em recebê-las por recearem a influência das meninas "sexualizadas" nas outras utentes.
E só o auxílio das ONG internacionais permite consultas médicas e de acompanhamento psicológico.
Luz del Alba António Rojas, a psicóloga que ajudou Flor de Lis a ultrapassar os traumas, afirma que as vítimas necessitam de auxílio profissional e que este só existe se for custeado pelas agências internacionais. Muitas das vítimas nem sabem que o são, têm primeiro de se aperceber conscientemente do abuso cometido contra si para depois iniciar o tratamento dos pesadelos e da raiva latente e recuperar alguma confiança nos outros seres humanos.
Quando se livram da exploração "são migalhas de ser humano", descreve sucintamente a psicóloga. "Necessitam de anos para recuperar a autoestima e pode ser que nunca o conseguiam em plano", acrescenta.
As sequelas físicas devem igualmente ser tratadas. Flor de Lis reconhece que "teve sorte" por não ter contraído nenhuma doença venérea. Mas ficou com "danos no intestino". Teve uma filha, de uma relação que entretanto terminou, e não pode ter mais crianças. A menina teve de nascer de cesariana e Flor de Lis não a pôde amamentar porque tinha contraído uma bactéria nos seios.
Ela garante que não sente rancor e só quer ser feliz e trabalhar "em qualquer coisa" e manter a sua filha, mas reclama mais apoios públicos às sobreviventes. "Prometem-nos mas não cumprem", acusa.
Leis que não protegem
Uma lei de 2003 define como crime o tráfico sexual infantil no país mas é deficitária na definição deste e na aplicação das normas de prevenção e penais. Está a ser revista desde 2019 para adaptar o texto às novas táticas digitais de venda de sexo. Os proxenetas já nem necessitam de um local que a polícia possa vigiar, basta-lhes um site onde publicam fotografias e um número de telemóvel, para contactar os clientes e levar as meninas ao domicílio indicado.
Também um projeto de lei específico de apoio às vítimas, que reconhecia o direito dos sobreviventes do tráfico sexual a não serem deportados e permitia a sua permanência na República Dominicana e a reunião familiar, foi retirado em fevereiro de debate no Parlamento. Os seus detratores temeram que se tornasse pretexto para imigração ilegal irrestrita.
Infelizmente, a retirada afeta outra norma do texto, que eliminava a obrigatoriedade de demonstração de coerção por parte dos sobreviventes para serem reconhecidos como vítimas de tráfico, referiu Alba Rodríguez.
Também o consentimento de menores "não seria considerado válido nem poderia ser usado como motivo de escusa de responsabilidade penal, civil ou administrativa dos autores ou cúmplices" dos crimes.
Regras essenciais que permanecem na gaveta.
Prevenção procura-se
Num país de pobreza endémica, a prevenção é ainda a melhor arma. Flor de Lis e outras vítimas integram uma rede de sensibilização de crianças, numa tentativa de evitar que estas caiam nas malhas dos recrutadores das redes de tráfico que tentam aproveitar-se das suas situações desesperadas.
Um projeto apoiado pela Save The Children, de forma a desenvolver "competências de autoproteção, acesso a denúncia e restituição de direitos" junto de meninas, adolescentes e mulheres. A organização pretende estendê-lo também a rapazes.
O setor hoteleiro, responsável por 25 por cento do Produto interno Bruto da República Dominicana, faz igualmente parte do programa. "O turismo sexual vem porque a oferta já existe", explica Alba Rodriguez.
David Libre, presidente da Associação de Hoteleiros e Turismo do país, garante o compromisso dos seus membros contra este flagelo.
A associação obriga os hotéis a só permitirem o registo de um menor desde que este seja acompanhado pelos pais. Mas Rodriguez aponta uma falha na medida: os traficantes pagam a famílias para se alojarem nos hotéis com as filhas, que se limitam depois a mudar de quarto para se deitarem com os clientes.
O problema principal não pode contudo ser controlado pelos grandes hotéis ou
resorts, já que
está ligado sobretudo a todos os serviços providenciados em redor, incluindo excursões, transportes, lazer... e sexo com crianças.