Experiências em laboratório. Portugal usou mais de 40 mil animais num ano

por Joana Raposo Santos - RTP
A União Europeia utilizou 9,39 milhões de animais em experiências de laboratório em 2017, dos quais 70% foram roedores Foto: Shannon Stapleton - Reuters

A Comissão Europeia lançou o relatório mais transparente de sempre sobre o uso de animais em experiências científicas, médicas e veterinárias, revelando o número total de animais utilizados nos países da União Europeia em 2017 e quais os danos que estes sofrem em consequência das experiências. Em Portugal foram utilizados 40.998 animais em laboratório nesse ano, estando os roedores no topo da lista.

Em Portugal, os roedores são os animais mais utilizados em laboratório. Em 2017, o país utilizou mais de 35 mil murganhos (comummente chamados de ratinhos), por serem biologicamente semelhantes aos humanos, e cerca de três mil ratos.

Foram ainda utilizados, nesse ano, 1.699 peixes (sendo o peixe-zebra o mais concorrido, por ser transparente e geneticamente semelhante aos humanos), 450 cefalópodes (moluscos marinhos), 120 aves, 155 porcos, 36 coelhos e 12 ovelhas.


Por outro lado, animais como cães, gatos, furões, cavalos ou primatas não foram utilizados nas investigações portuguesas, ao contrário do que se verifica noutros países europeus. França foi o país que utilizou mais cães (2.752) e a Alemanha quem mais recorreu a macacos-cinomolgos (2.387) e cavalos e burros (1.013).

No total, Portugal utilizou em 2017 40.998 animais, o que representa apenas 0,4 por cento de todos os animais utilizados nos Estados-membros da UE no mesmo ano. O Reino Unido foi o país com o maior total de animais, ultrapassando os 1,83 milhões, na sua maioria roedores.
Os números na União Europeia
Quanto à União Europeia como um todo, o número total de animais utilizados em laboratório fixou-se nos 9,39 milhões em 2017, valor menor do que no ano anterior, quando se registaram 9,81 milhões.

“Mais de 92 por cento [em 2017] foram ratinhos, peixes, ratos e pássaros, enquanto os cães, gatos e macacos representam cerca de 0,25 por cento do total”, elucida a Associação Europeia de Investigação Animal (EARA, na sigla original), entidade que comunica e defende a investigação biomédica com recurso a animais, fornecendo informações concretas sobre a mesma.

No comunicado em que divulga o relatório da Comissão Europeia, a EARA esclarece que o número total da UE “é composto por animais usados em pesquisas básicas e complexas, em estudos para garantir a segurança de medicamentos e outros produtos e também para fins educacionais”.


Estas estatísticas não podem ser comparadas com relatórios anteriores porque “este novo relatório fornece informações significativamente mais detalhadas sobre o uso de animais” e cobre aspetos que não estavam incluídos nos anteriores documentos, tais como o estatuto genético dos animais e o nível de gravidade dos procedimentos a que estão sujeitos.

A associação esclarece ainda que os primatas têm um papel significativo em investigações sobre a SIDA e no desenvolvimento de tratamentos para o Parkinson ou Alzheimer, enquanto os cães estão a ser utilizados para descobrir tratamentos para doenças cardíacas e distrofia muscular de Duchenne, que ainda não tem cura e origina mortes precoces.
Avanços no combate ao cancro da pele e diabetes
“A utilização de animais na investigação é, muitas vezes, a única forma de desenvolver novos tratamentos e compreender o corpo humano”, sustentou Kirk Leech, diretor-executivo da EARA.

Em Portugal, um dos casos em que o uso de animais se mostrou fundamental aconteceu na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL), onde cientistas criaram uma vacina que consegue prevenir o desenvolvimento do cancro da pele em ratinhos.

“Esta vacina não tem como alvo direto as células tumorais, utilizando em vez disso o sistema imunitário do corpo para destruir de forma seletiva as células cancerígenas”, explica a EARA. “Estes resultados são extremamente relevantes para os pacientes com cancro”.

Já no Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, cientistas utilizaram ratos para descobrir uma terapia que poderá ajudar a reduzir os efeitos colaterais da diabetes tipo 2, permitindo que esta doença interfira menos com as atividades diárias dos pacientes.

“A maioria dos medicamentos que existem são provenientes de investigações com animais”, garante a EARA, acrescentando que “antes de os investigadores utilizarem um modelo animal, têm de provar que os métodos que não utilizam animais não permitiriam adquirir os conhecimentos necessários”.

Por essa razão, “a investigação com animais é estritamente regulada” por diretivas europeias e, para cada procedimento em animais – desde uma recolha de sangue a uma cirurgia – são necessárias licenças e aprovações por parte de entidades que avaliam a ética destes processos.

A associação dá o exemplo da maquilhagem, explicando que “desde 2013 é ilegal vender ou importar cosméticos cujos ingredientes ou produto final tenham sido testados em animais”.
Consequências nos animais
O relatório da Comissão Europeia é também transparente em relação às consequências sofridas pelos animais usados em laboratório, esclarecendo que, em 2017, 51 por cento das utilizações foram consideradas “suaves”, 32 por cento “moderadas”, 11 por cento “severas” e seis por cento “sem recuperação”.

Os casos designados “sem recuperação” são aqueles em que os animais foram submetidos a anestesias gerais das quais não recuperaram.

De acordo com o documento, a maioria de utilizações “severas” deveu-se a testes de potência dos medicamentos para controlo de qualidade (em 264 mil dos casos), seguindo-se testes no sistema nervoso (87 mil) e diagnósticos de doenças (81 mil).

Testes no sistema nervoso são, aliás, uns dos mais recorrentes em animais no que diz respeito a “investigações básicas”, seguindo-se testes no sistema imunitário, testes de oncologia e testes de comportamento animal.

Nas “investigações complexas”, que são menos frequentes, as principais áreas estudadas são o cancro humano, perturbações nervosas e mentais, doenças infeciosas em humanos e doenças do campo animal.

De acordo com a legislação em vigor, os investigadores devem reutilizar ao máximo os animais destinados a testes em laboratório. No entanto, nem sempre tal é possível, e em 2017 apenas dois por cento do total de animais puderam ser reutilizados.
Acordos de Transparência
Em 2018, 16 instituições portuguesas assinaram o Acordo de Transparência sobre a Investigação Animal promovido pela EARA (Associação Europeia de Investigação Animal) com o objetivo de dar a conhecer à sociedade a realidade das experiências com animais de laboratório.

Na altura, o neurocientista Nuno Sousa, uma das caras deste Acordo de Transparência, explicou à RTP que o público tem o “direito de saber o que as instituições fazem” e que estas têm o “dever” de transmitir essas informações com toda a clareza.



Desde a assinatura, Portugal tem vindo a trabalhar para ser mais aberto em relação a este tema. “O setor biomédico português confirmou o seu compromisso para com a abertura quando 16 instituições assinaram o Acordo de Transparência que pretende uma comunicação mais aberta sobre como os animais são usados nas investigações”, explica a EARA.

Para já, existem acordos de transparência no Reino Unido, Espanha, Portugal e Bélgica. A Suíça deverá assinar um acordo ainda este ano, e Itália e França poderão ser os países seguintes na lista.
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