Deu que falar o vaivém de mensagens entre o comandante do porta-aviões "Theodore Roosevelt" e a Administração Trump, ele a pedir medidas contra o contágio a bordo, os superiores hierárquicos a desvalorizarem o risco de contágio. Agora os cerca de 5.000 membros da guarnição encontram-se de quarentena e 584 estão infectados, incluindo o comandante. Hoje registou-se a primeira vítima mortal.
O marinheiro que hoje morreu de Covid-19 no hospital de Guam fora encontrado inconsciente na sua cama, há cinco dias, e dera entrada na unidade de cuidados intensivos. É o primeiro membro da guarnição do "Theodore Roosevelt" a morrer de Covid-19. Mas há outros 584 que foram testados positivos.
Num artigo elaborado a partir dos depoimentos de duas dúzias de membros da guarnição e de funcionários civis e militares dos Departamentos da Defesa e da Marinha, alguns deles falando a coberto do anonimato, o New York Times situa a morte do marinheiro na história da epidemia a bordo e reconstitui essa história desde o momento em que começou o contágio, com o desembarque da guarnição na cidade vietnamita de Da Nang.
Já a visita do porta-aviões a Da Nang tinha suscitado dúvidas, porque começavam a ser noticiados casos de Covid-19 no Vietname. Acabou no entanto por decidir-se manter a visita, porque esta era apenas a segunda visita de um porta-aviões norte-americano àquele país desde que os EUA foram derrotados na guerra do Vietname, há 45 anos. Ou seja, quase a quebra de um tabu. No meio de tensões diversas com a China, desde a guerra comercial à marcação de águas territoriais, a Administração Trump queria tudo menos cancelar a visita a Da Nang.
Vinha a calhar, quase como encomendada para satisfazer essa ansiedade da Administração Trump, que os casos de Covid-19 conhecidos no Vietname fossem poucos e todos localizados no norte do país, muito longe da cidade que era previsto visitar. Tendo em conta esse dado, decidiu-se manter a visita agendada a Da Nang.
Devido à limitada dimensão dos cais, o navio não pôde atracar e teve de ficar fundeado. Mesmo assim, a partir de 5 de março e durante quatro dias, a guarnição foi a terra. Dezenas de membros da guarnição do "Theodore Roosevelt" alojaram-se no hotel que deve ter sido o primeiro foco de contágio, porque nele estavam também hospedados dois turistas britânicos que em breve seriam testados positivos com Covid-19.
Quando o navio voltou ao mar, não se conhecia a existência de infecções. Mas em 24 de março, as comunicações com o exterior foram limitadas e em breve veio a saber-se que era por haver a bordo três casos testados positivos. O primeiro surto tinha sido no coração do porta-aviões, o serviço dos reactores nucleares. Os três doentes foram evacuados de avião para o hospital de Guam, dois dias antes de o navio atracar nesse porto e de toda a guarnição começar a fazer testes.
Nesse momento, o comandante do porta-aviões, Brett Crozier, propunha já ao almirante Stuart P. Baker, com conhecimento ao secretário da Marinha, Modly, que a guarnição fosse evacuada, deixando apenas a bordo 500 membros para manterem em funcionamento os reactores nucleares e outras áreas essenciais, e que o navio fosse desinfectado de alto a baixo.
Entre as várias alternativas que foram sendo debatidas, nenhuma decisão era tomada e o comandante foi pressionando o escalão hierárquico superior com a urgência de resolver um problema que, segundo estimativas dos médicos de bordo, poderia originar até 50 mortos no navio. Crozier acabou por enviar um e-mail a uma vintena de oficiais da esquadra do Pacífico, pedindo-lhes ajuda. Mostrou-o aos oficiais mais graduados do navio, que concordaram e lhe propuseram assinar também. Para que não fossem prejudicados nas suas carreiras, Crozier decidiu assinar sozinho.
Em 31 de março, o teor do email tinha chegado às mãos do jornal The San Francisco Chronicle, provavelmente por via de algum dos tais destinatários e rapidamente se tornara viral. O secretário de Estado Modly aconselhou-se com vários oficiais generais sobre o que fazer e estes recomendaram que fosse aberta uma investigação sobre a fuga de informação. Mas Modly receava a ira de Trump e em 2 de abril decidiu por si próprio retirar a Crozier o comando do "Theodore Roosevelt", sem aguardar por investigação alguma.
Nesse momento, já alguns congressistas democratas começavam a manifestar reservas à demissão de um comandante sem ter havido uma investigação exaustiva. Mas os acontecimentos continuaram a precipitar-se. Quando Crozier deixou o navio, centenas de marinheiros aclamaram-no entusiasticamente, no que era uma evidente desautorização do secretário da Marinha.
Modly, furioso com essa manifestação, meteu-se a caminho de Guam, voou durante 35 horas e gastou quase um quarto de milhão de dólares para ir ao porta-aviões, fazer um discurso de 15 minutos à guarnição, em que tratou Crozier de "demasiado ingénuo ou demasiado estúpido" para comandar um vaso de guerra daquela importância, e em que repreendeu asperamente os marinheiros pelo aplauso que lhe tinham dispensado à saída.
Apesar de Modly ter regressado a Washington confiante no efeito do discurso, foi encontrar um clamor de congressistas democratas a exigirem a sua demissão e uma atitude dos comandos militares, de não quererem expor-se na defesa do indefensável. Começou por dizer que reafirmava tudo o que tinha dito, depois reconsiderou e pediu desculpa, mas era demasiado pouco e demasiado tarde e logo teve de apresentar a sua própria demissão.
Quanto a Crozier, se sobreviver ao novo coronavírus, é visto pelo Departamento da Marinha como possível sucessor de si próprio no comando do navio. Um abaixo-assinado a caminho do meio milhão de assinaturas pede o seu regresso ao comando e o Departamento não descartou a hipótese.
A decisão que for tomada neste ponto pode ter o peso de um sinal sobre as políticas a adoptar em casos semelhantes. Três outros porta-aviões norte-americanos - o "Ronald Reagan", o ""Carl Vinson" e o "Nimitz" - já têm a bordo casos testados positivos. E o fenómeno é internacional, sendo também conhecido um problema idêntico no porta-aviões francês "Charles De Gaulle".
Mais do que em navios de porte inferior, os porta-aviões podem tornar-se enormes clusters de contágio. Na pressão febril que exerceu sobre o Departamento, Crozier tomava como termo de comparação o caso do navio de cruzeiros "Diamond Princess", com 2.600 passageiros a bordo, ainda por cima em camarotes individuais, muito mais fáceis de isolar do que os marinheiros a dormirem em camaratas. E, ainda assim, houve nesse navio civil 700 pessoas infectadas e oito que morreram de Covid-19.