Ao fim de meses a fio de palavras beligerantes, os líderes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte mostram-se prontos a encontrar-se numa cimeira nuclear, a realizar em maio. O anúncio é, para uns, um avanço histórico de dois países de costas voltadas há mais de sete décadas; outros temem uma armadilha.
Chung Eui-yong, diretor do gabinete de Segurança Nacional da Coreia do Sul, entregou ontem a Donald Trump uma carta assinada na segunda-feira por Kim Jong-un. Foi este representante que liderou a delegação sul-coreana enviada a Washington.
Nessa missiva, o líder norte-coreano oferece a suspensão do programa nuclear e balístico em troca de um início de negociações com os norte-americanos.
No Twitter, o Presidente norte-americano escreveu que intenção do Presidente da Coreia do Norte é avançar com a desnuclearização, "não apenas um congelamento" do programa nuclear.
Kim Jong Un talked about denuclearization with the South Korean Representatives, not just a freeze. Also, no missile testing by North Korea during this period of time. Great progress being made but sanctions will remain until an agreement is reached. Meeting being planned!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) 9 de março de 2018
"Há um grande progresso, mas as sanções vão continuar até haver um acordo. A reunião está a ser planeada!", afirmava Trump num tweet.
Poucos diplomatas?
O Japão já felicitou a mudança de atitude da Coreia do Norte. Ao telefone com Donald Trump, Shinzo Abe alertou para a necessidade de manter pressão máxima sobre o regime norte-coreano. O primeiro-ministro japonês vai visitar os Estados Unidos em abril.
Na Europa, a reação mais sonante foi a de Angela Merkel. Na sua visão, a abertura sinalizada pelos dois lados para um encontro constitui um “vislumbre de esperança”. A chanceler apelou a todos os envolvidos para que “prossigam os esforços”.
Com a abertura por parte do regime eremita, a diplomacia norte-americana prepara o seu aparelho para que o encontro seja bem-sucedido num momento de fragilidade. O próprio secretário de Estado Rex Tillerson já admitiu que os Estados Unidos ficaram "um pouco surpreendidos" com a proposta de Kim Jong-un e que a decisão de aceitar o encontro tinha sido “inteiramente” de Donald Trump.
Horas antes deste anúncio, Tillerson referia que a situação atual está muito longe de permitir um início das negociações. “Estamos muito longe das negociações. Precisamos de ser claros e realistas. (…) Não sabemos se as condições são as corretas para começar a pensar nas negociações”, referiu horas antes de ter sido anunciada a decisão.
O Washington Post assinala alguns dos problemas que poderão ser encontrados na organização do encontro histórico, nomeadamente a escassez de conselheiros e diplomatas na cadeia de relacionamento entre os dois países, uma vez que o enviado especial dos EUA para a Coreia do Norte, Joseph Yun, se reformou no final de fevereiro e ainda não foi substituído, mas também porque ao fim de um ano de mandato, o Senado ainda não aprovou o Embaixador norte-americano apontado pela Administração Trump.
Uma vitória para Seul
O Wall Street Journal destaca esta sexta-feira que o anúncio de um encontro entre os dois líderes constitui uma vitória para Moon Jae-in, que ocupa o cargo de Presidente da Coreia do Sul há apenas dez meses.
De facto, a administração do líder sul-coreano tentou desde cedo propiciar o acordo entre os países envolvidos. O início do ano de 2018 ficou marcado pela interação com a Coreia do Norte a propósito dos Jogos Olímpicos de Inverno, que incluiu o momento simbólico de representantes do norte e sul a desfilarem com a mesma bandeira na cerimónia de abertura. Para o fim de abril está preparada uma cimeira entre as duas coreias.
O Financial Times alerta para os riscos de desentendimento entre a Coreia do Sul e Estados Unidos, que não têm neste momento uma posição concertada. As diferenças poderão ser exploradas por Pyongyang nas negociações.
“Temos de ser cautelosos, uma vez que vários obstáculos ainda permanecem. Só quando os Estados Unidos se comprometerem com a segurança do regime e impedirem a ameaça militar, incluindo exercícios militares conjuntos, é que a Coreia do Norte avançará com o processo de desnuclearização”, considera Koh Yoo-hwan, professor de estudos norte-coreanos na Universidade Dongguk de Seul.
“Trabalho de casa a fazer”
Apesar do otimismo após ter sido anunciado este encontro inédito, os diplomatas e especialistas alertam para o risco de implosão das conversações mesmo antes do seu início.
O alerta não é despropositado, tendo em conta os temperamentos e o histórico da relação entre Trump e Jong-un ao longo dos últimos meses: de um lado, as ameaças constantes e os lançamentos de três mísseis balísticos só em 2017, de outro, as promessas de “destruição total” e de “fogo e fúria” contra Pyongyang no primeiro ano de mandato do novo Presidente na Casa Branca.
Ao New York Times, vários analistas mostraram-se céticos sobre o encontro, uma vez que não existe qualquer indicação de que a Coreia do Norte tenha desistido de se tornar num estado nuclear.
“Temos todas as razões para acreditar que a Coreia do Norte está a tentar atenuar as sanções e garantir uma legitimidade de facto para com o programa nuclear com este gesto”, considerou Michael J. Green, conselheiro para assuntos asiáticos durante a Presidência de George W. Bush.
Outro conselheiro, mas da Administração Obama, considerou, em declarações ao mesmo jornal, que qualquer conversação direta com o líder norte-coreano apenas servirá para elevar Kim Jong-un e legitimá-lo. Evan S. Medeiros alerta que o líder norte-coreano “nunca vai desistir das armas nucleares” e que “enganou Moon [líder sul-coreano] e agora está a enganar Trump”.
Wendy Sherman, conselheira durante a Administração Clinton para a Coreia do Norte e responsável por liderar as negociações para o acordo nuclear com o Irão durante a Administração Obama, considera que o início das negociações deve ser “imediato”, mas adverte, com base na sua experiência, que os resultados vão demorar a chegar.
“Vai levar muito tempo para conseguir concluir estas negociações, em quaisquer circunstâncias. (…) Quando conseguimos as negociações com o Irão, nós escrevemos um acordo inteiro de 100 páginas antes sequer de começar as negociações, para que houvesse uma noção de quais eram os nossos objetivos. Era um acordo muito detalhado e incrivelmente técnico. Há trabalho de casa a fazer”, considera Wendy Sherman, em declarações ao Post.
Sem precedentes
Ao mesmo jornal, Daryl G. Kimball, responsável para organização de apoio ao desarmamento Arms Control Association, diz que a situação “não tem precedentes no sentido em que foi a primeira vez que um Presidente norte-americano aceitou o convite para um encontro com um líder norte-coreano”.
De recordar que as relações entre os dois países têm sido marcadas por tentativas frustradas de diálogo e de negociação desde 1953, ano em que terminou a Guerra da Coreia. No conflito, os Estados Unidos alinharam a favor da Coreia do Sul. Do outro lado estavam Coreia do Norte apoiada pela China, que ainda hoje é a aliada de peso da dinastia Kim.
Ao longo das últimas décadas, sobretudo desde 1990, as negociações para a desnuclearização têm conhecido avanços e recuos. Em 1994, o país chegou a um entendimento com Washington e admitiu desmantelar o programa nuclear em troca de ajuda económica. Esse acordo colapsa em 2002, com os serviços de inteligência norte-americanos a acusarem Pyongyang de continuar a tentar produzir urânio enriquecido, necessário à produção de armas nucleares.
Em 2005, o regime norte-coreano compromete-se em abandonar o fabrico de armas nucleares, num acordo histórico entre as duas Coreias, os Estados Unidos, a China, a Rússia e o Japão. No ano seguinte, o acordo cai por terra, quando a Coreia do Norte decide testar o seu primeiro dispositivo nuclear. Em 2009, a Coreia do Norte lança dois mísseis balísticos de longo alcance pela primeira vez, uma ação condenada pela comunidade internacional.
Nos últimos 70 anos, os líderes dos dois países estiveram próximos de um encontro direto apenas por uma vez, em 2000, quando a secretária de Estado, Madeleine K. Albright, visitou Pyongyang, já no fim da Administração de Bill Clinton. A viagem teve como propósito preparar uma visita do Presidente que nunca viria a acontecer, uma vez que Kim Jong-il, pai do atual líder da Coreia do Norte, líder do país até à sua morte, em 2011, exigiu negociar diretamente com o Chefe de Estado sem fazer qualquer cedência em antemão, um requisito que não foi aceite pelos norte-americanos.