A ser confirmada, a morte do chefe do "Estado Islâmico" sugere uma imagem da política de Donald Trump na Síria menos errática e inconsistente do que ela parecia à primeira vista. A operação norte-americana contra Al Baghdadi pressupõe uma estreita cooperação com a força aérea e os serviços secretos turcos.
A eliminação do "califa" Abu Bakr Al-Baghdadi na região síria de Idlib, próximo da fronteira turca, pouco depois da meia noite de sábado para domingo, poderá constituir para Donald Trump algo equivalente ao que o "momento Bin Laden" foi para Obama: um trunfo importante na política interna, especialmente quando se vão acumulando contra ele as provas reunidas no âmbito do processo para a sua destituição.
Bin Laden e Al Baghdadi: duas operações
Os paralelos com o "momento Bin Laden" de Obama não ficam por esta generalidade. Os contornos da operação para eliminar o chefe do "Estado Islâmico" apresentam algumas semelhanças: um trabalho de inteligência prévio para localizar a presa; um secretismo rigoroso, pelo menos em relação a alguns dos países vizinhos; um raid noturno, envolvendo vários helicópteros (as testemunhas locais dividem-se entre seis e doze).
E há também dúvidas que são comuns a ambos os balanços operacionais: nenhum dos dois cadáveres foi apresentado à imprensa. No caso de Al Baghdadi, as dúvidas parecem ser ainda maiores, porque ele morreu alegadamente numa explosão (ou pelo efeito de um cinturão explosivo que estaria envergando ou pelo de um míssil), e tanto quanto se sabe não existe um cadáver e, menos ainda, um cadáver que tenha ficado na posse das tropas atacantes.
A operação contra Bin Laden, pelo menos, envolvera boots on the ground,
com tropas aerotransportadas que relataram ter entrado em casa do líder da Al
Qaeda, filmaram a entrada, e portanto o terão visto, abatido a curta distância, identificado, tomado posse do cadáver,
embarcando-o depois num helicóptero e lançando-o ao mar.
No caso da operação desta noite, se dois dos helicópteros chegaram a aterrar, como dizem testemunhas locais em Barisha, não consta que tenham desembarcado tropas e que estas tenham estado em contacto visual e próximo com o líder visado. A operação parece ter sido menos cirúrgica que no caso de Bin Laden, a batalha terá durado várias horas, com fogo de resposta partindo de terra e tomando como alvo os helicópteros.
O que sabia o Governo turco?
Segundo a versão online da revista norte-americana Newsweek, Trump terá recebido informação sobre o paradeiro exacto de Al Baghdadi uma semana antes da operação e as autoridades da vizinha Turquia terão sabido da operação após o início do raid. Às 7h da manhã, a Síria pasou ao Irão informação sobre os factos e às 7h30 foi a vez de as autoridades iraquianas receberem um relatório.
Mas, se a prioridade da Turquia em receber informação não parece oferecer dúvidas, já a hipótese de essa prioridade se limitar a algumas horas é menos óbvia. Com efeito, levanta-se a questão sobre a origem da informação que localizou Al Baghdadi. Ora, se Trump recebeu essa informação uma semana antes, uma das hipóteses plausíveis é que ela tenha provindo da própria Turquia, quando, imediatamente antes, em 17 de outubro, Erdogan se entrevistou sucessivamente com o secretário de Estado Mike Pompeo e o vice-presidente Mike Pence.
Erdogan tinha, nesse momento, todo o interesse em demonstrar aos EUA que continuava empenhado na destruição do "Estado Islâmico", e em fornecer ao inquilino da Casa Branca garantias de que apostara no cavalo certo ao abrir-lhe as portas para uma invasaão de território sírio que grande parte da opinião pública encara como traição aos aliados curdos e, mais ainda, como oportunidade para a reanimação do "Estado Islâmico".
Independentemente do momento e da circunstância em que a Turquia possa ter passado aos EUA as coordenadas de localização de Al Baghdadi, o ministro turco da Defesa reivindicou para os serviços de informações do seu país uma parte do sucesso, ao afirmar que tinha havido um intercâmbio de informação com os EUA na prepração do raid.
A reforçar a verosimilhança desta declaração está o facto de a esquadrilha de helicópteros norte-americanos ter operado junto à fronteira turca sem aparente receio de accionar as defeas antiaéreas turcas. Existe mesmo a possibilidade de a esquadrilha ter partido da base norte-americana de Incirklik, em território turco.
A confirmar-se esta estreita colaboração militar e de serviços de informações entre EUA e a Turquia na operação para eliminar Al Baghdadi, voltar-se-ia à imagem de uma colaboração ininterrrupta entre ambos os países, desde a luz verde de Trumpa Erdogan para invadir a Síria até à operação desta noite em Idlib; e as ameaças de Trump, de que podia "destruir a economia turca", mais do que uma viragem retórica ou um sintoma de labilidade política do presidente norte-americano, deveriam ser vistas como cortina de fumo, a ocultar uma afinidade tornada impopular pelo sacrifício dos aliados curdos.
O que sabiam as forças curdas?
O general Mazlum Abdi, comandante das SDF (Forças Democráticas Sírias, que têm como espinha dorsal as milícias curdas YPG), por seu lado, quis reivindicar o crédito de ter fornecido aos EUA a informação utilizada para localizar Al Baghdadi.
Mazloum classificou no Twitter o raid noturno dos helicópteros norte-americanos de "operação histórica e bem sucedida como resultado de um trabalho de inteligência conjunto com os Estados Unidos da América".
Ao disputar à Turquia a paternidade das informações sobre o paradeiro de Al Baghdadi, Mazloum terá perseguido objectivos políticos mais relevantes para as SDF do que a recompensa de 25 milhões de dólares que os EUA tinham oferecido pela cabeça do "califa".
Na verdade, as felicitações enviadas por Donald Trump ao general Mazloum pelo escrupuloso cumprimento, por parte das SDF, do cessar-fogo acordado entre as forças curdas e a Turquia graças aos bons ofícios dos EUA e da Rússia, têm o sabor amargo de felicitações por uma pacífica aceitação da derrota.
O cessar-fogo não se combinou para impedir um massacre de populações curdas, e sim para que a Turquia obtivesse a retirada das SDF de posições que tinham conquistado, sem ter de pagar no terreno o correspondente preço militar e sem ter de pagar na opinião pública internacional o correspondente preço político.