"Meu corpo, minha escolha" ou "o meu corpo não é um caixão" são mensagens que se lêem em cartazes empunhados por polacas, em duas semanas consecutivas, contra a imposição das novas regras restritivas.
Este movimento foi engrossando ao longo dos dias por todo o país desde 22 de outubro, dia em que o Tribunal Constitucional polaco anulou a norma que permitia a interrupção voluntária da gravidez em caso de malformação do feto. Ou seja, o novo texto proíbe a prática de abortar legalmente por anomalias fetais, o que desde 1993 era possível.
A restrição na lei provocou tamanha indignação que o movimento cresceu em todo o país, ultrapassando mesmo as fronteiras. Em quase toda a Europa ocorreram também manifestações de mulheres solidárias com os protestos na Polónia.
Os números crescentes da Covid-19 não travaram as milhares de pessoas nas ruas. Nem a pandemia, nem o gás lacrimogénio da polícia retirou o ímpeto à multidão.
Além de uma greve, no dia 28 de outubro, que mobilizou cerca de 430 mil pessoas por todo o país, segundo o porta-voz da polícia, Varsóvia foi palco da maior marcha desde o fim da Guerra Fria, no dia 30. Mais de 100 mil pessoas marcharam na capital.
Donald Tusk, líder do Partido Popular Europeu e ex-presidente do Conselho Europeu, associou-se ao movimento e regista a marcha em Varsóvia. "A Polónia ainda não está perdida".
A Polónia é um país de maioria católica com um Governo ultraconservador no leme. A Constituição polaca integra uma das leis de aborto mais restritivas do Continente Europeu.
Em 2016 e 2018, o Governo tinha já tentado impor a proibição da prática do aborto em sessão parlamentar. A onda de protestos conseguiu travar este desígnio. Em 22 de outubro, o decreto veio pela mão do Tribunal Constitucional.
Se a interrupção da gravidez depende da saúde do feto, está-se a promover práticas eugénicas, o que corresponde a uma discriminação direta e por isso é considerada inconstitucional, afirma Julia Przylebska, presidente do Tribunal Constitucional, citada pela Reuters.
Jaroslaw Kaczynski, líder da formação dominante no Governo polaco, Partido Lei e Justiça (PIS) , defende que os fetos sem possibilidade de sobrevivência fora do útero devem terminar em parto, para poderem ser batizados e enterrados.
"É um dia triste para os direitos das mulheres. Tornar quase todos os abortos ilegais é igual a banir e a violar os Direitos Humanos", afirmou a Comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic.
Esta decisão "traduz-se em abortos clandestinos ou [realizados] no estrangeiro para quem pode pagar e mais sofrimento para as outras", acrescentou a comissária no Twitter.
Números do Ministério polaco da Saúde indicam que, em 2019, foram realizados 1110 abortos legais na Polónia, a maioria (1074) devido a malformações do feto. Clandestinamente ou em clínicas fora do país, realizam-se quase 200 mil abortos por ano, números estimados por organizações não governamentais de apoio à mulher.
Andrzej Duda, Presidente da Polónia, declarou no final de outubro que as mulheres deveriam ter o direiro a escolher abortar em alguns casos.Em entrevista à rádio RMF FM, o Presidente referiu-se favoravelmente à proibição do aborto em casos de fetos com defeitos congénitos não letais. Terá sido um primeiro sinal das autoridades polacas para neutralizar os protestos.
O novo texto permite apenas a prática do aborto em caso de gravidez proveniente de violação, incesto e se existir risco para a vida da mulher.
A passada segunda-feira seria a data em que o Governo deveria publicar a decisão do Tribunal Constitucional, para que entrasse vigor a normativa mais restritiva. Não o fez, adiando indefinidamente a publicação.
Michal Dworczyk, chefe de gabinete do primeiro-ministro, citado no Guardian,
explica que "o assunto ainda está em debate" e acrescenta: "É uma
situação que gera muitas emoções, é importante dar um pouco de tempo
para que o diálogo se estabeleça e trabalharmos uma nova posição".
A decisão judicial que abre caminho à proibição quase total da interrupção voluntária da gravidez sublinhou ainda mais a divisão na sociedade polaca.
A violência estalou entre grupos de extrema-direita e os manifestantes contrários às intenções do Governo. A Igreja Católica saiu em defesa da decisão do Tribunal Constitucional.
Para além da capital, milhares de pessoas prometem não desmobilizar e encher avenidas e pontes de Cracóvia, Wroclaw, Szczecin, Lodz e Pozna, mantendo-se firmes na luta pela liberdade de escolha.