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Guerra na Ucrânia. A evolução do conflito ao minuto

"Dois pesos e duas medidas". Amnistia denuncia incapacidade internacional de lidar com crises globais

por Joana Raposo Santos - RTP
No relatório "O Estado dos Direitos Humanos no Mundo", a Amnistia denuncia uma "duplicidade de critérios" a nível global. Foto: Diego Azubel - EPA-EFE

A comunidade internacional não é capaz de se unir de forma consistente na proteção dos Direitos Humanos e demonstra "dois pesos e duas medidas". A conclusão surge no relatório anual da Amnistia Internacional sobre o estado destes valores universais por todo o mundo. Para a ONG, a resposta robusta do Ocidente à agressão russa da Ucrânia contrasta com a "falta de atuação" face a graves violações de Direitos Humanos de outras nações, como Israel ou Arábia Saudita.

“A guerra em solo ucraniano expôs a hipocrisia dos Estados ocidentais que se mobilizaram contra a agressão do Kremlin, mas toleraram ou foram cúmplices de graves violações de Direitos Humanos cometidas noutros países”, refere a Amnistia Internacional.

No relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, a ONG denuncia uma “duplicidade de critérios” e “respostas inadequadas” às violações destes direitos a nível global, o que fomenta a impunidade e instabilidade.

Como exemplos, a Amnistia enumera os casos da Arábia Saudita, onde as autoridades estão a impor proibições de viagens a ativistas e jornalistas; do Egito, onde persistem casos de tortura, desaparecimentos e execuções extrajudiciais; ou de Israel, onde se mantém um “sistema de apartheid” contra os palestinianos.

Para a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, se a veloz resposta dada à guerra na Ucrânia – que englobou sanções, assistência financeira e apoio militar – tivesse sido dada também aos crimes russos na Chechénia e na Síria, milhares de vidas poderiam ter sido salvas. “Em vez disso, o resultado traz mais sofrimento e devastação”, lamentou.

“As respostas à invasão russa da Ucrânia deram-nos algumas provas do que pode ser feito quando há vontade política. Vimos condenações globais, investigações criminais, fronteiras abertas aos refugiados. Esta abordagem deve ser contemplada para lidar com todas as graves violações de Direitos Humanos no mundo”.

A responsável defende que “precisamos de menos hipocrisia e cinismo, e de uma ação mais consistente, ambiciosa e fundamentada em princípios para todos os Estados, para que promovam e protejam todos os direitos”.
“Hipocrisia” ocidental
A Amnistia Internacional salienta como os Estados Unidos, por exemplo, têm recebido dezenas de milhares de ucranianos que fogem da guerra enquanto, por outro lado, usaram “políticas e práticas racistas” para expulsar do seu território mais de 25.000 haitianos num espaço de poucos meses.

Já nos Estados-membros da União Europeia, que abriram as portas aos refugiados ucranianos, proporcionando-lhes acesso à saúde, educação e habitação, “mantiveram as suas portas fechadas aos migrantes que procuravam escapar da guerra e repressão na Síria, no Afeganistão e na Líbia”.

A China, onde persistem os relatos de violação dos Direitos Humanos na perseguição aos uigures e outras minorias muçulmanas, tem escapado à condenação internacional das Nações Unidas.

“O Conselho de Direitos Humanos da ONU instituiu um relator especial sobre a situação dos Direitos Humanos na Rússia e um mecanismo de investigação sobre o Irão devido às manifestações que assolaram todo o país. Em contrapartida, votou para que não se continuasse a investigar e discutir as próprias conclusões da ONU sobre os potenciais crimes contra a humanidade em Xinjiang, na China, e suspendeu uma resolução sobre as Filipinas”, indica a Amnistia.

No caso dos jornalistas, vários foram punidos na Rússia só por fazerem referência à guerra na Ucrânia. Mas também noutros países, entre os quais Afeganistão, Etiópia, Myanmar e Bielorrússia, muitos destes profissionais foram detidos arbitrariamente.

Também na crise climática as nações se mostraram incapazes de “agir em prol do interesse da humanidade e abordar a dependência dos combustíveis fósseis”. Em 2022, o aquecimento global continuou a progredir de forma catastrófica, em particular para a Ásia e África Subsaariana, onde as inundações desencadearam vagas de doenças transmitidas pela água, matando centenas de pessoas.

“Este fracasso coletivo foi outro exemplo evidente da fraqueza dos atuais sistemas multilaterais”, acusa a Amnistia.
Crises não-ucranianas
O caso dos palestinianos na Cisjordânia ocupada é um dos destacados pela Amnistia Internacional, com 2022 a representar “um dos anos mais mortíferos” desde que a ONU começou a registar o número de vítimas.

“As autoridades israelitas continuaram a forçar os palestinianos a abandonar as suas casas, e o Governo está a lançar planos para expandir drasticamente os colonatos ilegais na Cisjordânia ocupada. Em vez de exigirem o fim do sistema de apartheid de Israel, muitos governos ocidentais optaram por atacar aqueles que o denunciavam”, refere a ONG.

Nos casos da Austrália, Índia, Indonésia, Sri Lanka e Reino Unido, as autoridades aprovaram nova legislação para restringir manifestações. A lei britânica “confere amplos poderes às autoridades, como a capacidade de proibir ‘manifestações ruidosas’, comprometendo as liberdades de expressão e de reunião pacífica”, vinca a Amnistia.

Estas liberdades estão também em causa no Irão, onde há décadas as autoridades respondem aos protestos da população com “força ilegal” e recurso a “munições vivas, granadas metálicas, gás lacrimogéneo e agressões”, resultando na morte de centenas de pessoas, incluindo crianças.

A violência policial tem sido sentida igualmente no Peru, especialmente nas manifestações que se seguiram à destituição do ex-presidente, Pedro Castillo.

O relatório sublinha ainda o impacto do ano 2022 nos direitos das mulheres, dando destaque à revogação do direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos. Segundo a Amnistia, este episódio coloca em causa outros Direitos Humanos, como o direito à vida, à saúde, à privacidade, à segurança e à não-discriminação de milhões de mulheres e raparigas.

Em 2022, os direitos das mulheres ficaram também mais fragilizados em países como o Afeganistão - onde, após a tomada de poder pelos talibãs, a autonomia, educação, trabalho e outras liberdades das mulheres se deterioraram.

No Irão, a chamada “polícia da moralidade” foi globalmente condenada pela morte da jovem Mahsa Amini às suas mãos, depois de alegadamente ter utilizado de forma errada o véu islâmico (hijab). O incidente originou manifestações por todo o país, nas quais várias mulheres e raparigas foram detidas e agredidas.

“Mesmo que a dinâmica do poder global esteja um verdadeiro caos, os Direitos Humanos não podem ser perdidos na desordem”, apela a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard.

“Por outro lado, são os Direitos Humanos que devem guiar o mundo à medida que se multiplicam os contextos cada vez mais instáveis e perigosos. Não podemos esperar que o mundo volte a arder”.
Crise ucraniana
O relatório da Amnistia detalha os principais problemas de Direitos Humanos em 2022/23 em 156 países. A Ucrânia é, naturalmente, um dos que está em destaque, fruto da invasão russa iniciada a 24 de fevereiro do ano passado.

“As forças russas realizaram ataques indiscriminados que resultaram em milhares de vítimas civis, entre evidências crescentes de outros crimes, incluindo tortura, violência sexual e assassinatos. Ataques a infraestruturas civis também levaram a violações dos direitos à habitação, saúde e educação”, denuncia a ONG.

A guerra exacerbou ainda as desigualdades já existentes para as mulheres, com relatos de aumento de violência de género. Além disso, manteve-se a repressão aos dissidentes e aos defensores dos Direitos Humanos na Crimeia, anexada pela Rússia em 2014.

“A 30 de setembro, um ataque com mísseis russos a um comboio humanitário em Zaporizhia matou pelo menos 25 civis. As forças russas também ocuparam grandes extensões de território e negaram aos civis o acesso a ajuda humanitária”, lê-se no relatório.
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