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ADN com sete mil anos revela população humana isolada do período verde do Saara

por Carla Quirino - RTP
Missão Arqueológica no Saara - Universidade Sapienza de Roma

Uma equipa de investigadores em genética e arqueólogos conseguiu, "pela primeira vez", recolher dados genéticos de população antiga do Saara Verde. Dois esqueletos de mulheres enterradas num abrigo rochoso, no sul da Líbia, há sete mil anos, revelaram uma população anteriormente desconhecida e desligada das restantes comunidades pessoas que viviam à época na África subsaariana.

Um novo estudo de ADN antigo recolhido numa gruta no Saara da Líbia revela uma linhagem humana norte-africana há muito isolada.

"É a primeira vez que genomas antigos são conhecidos num sítio arqueológico do Saara", afirma o arqueólogo Peter Mitchell, da Universidade de Oxford. "É muito emocionante", exalta o investigador.

Os trabalhos  arqueológicos no abrigo rochoso onde de encontraram estes enterramentos humanos começou em 2003. O sítio é conhecido por Takarkori, localiza-se no sudoeste da Líbia, perto da fronteira com a Argélia e atualmente “está no meio do deserto”, descreve o arqueólogo e líder da escavação Savino di Lernia, da Universidade Sapienza de Roma.

Porém, “as pessoas que viviam aqui há sete mil anos teriam vista para um lago o ano todo”.

O Deserto do Saara apresenta agora uma paisagem coberta por dunas móveis, mas há sete mil anos era uma savana verde cheia de hipopótamos, crocodilos, elefantes e girafas. Durante um intervalo que durou mais de cinco milénios, o clima apresentou-se húmido e com monções.

A partir de 5000 a.C. as monções começaram a recuar para o sul, onde estão hoje, e conduziram à desertificação do Saara.

No quinto mílénio antes de Cristo, as comunidades que por aqui circularam seriam semi-nómadas. Caçavam, pescavam e, provavelmente, já se dedicavam também a atividades de pastorícia.
Quem seriam esses grupos humanos?
Algumas das respostas foram encontradas neste conjunto de restos osteológicos com sete mil anos, depositados no abrigo de pedra no sul da Líbia, que ainda continham ADN antigo.

Área de escavação do abrigo rochoso de Takarkori | Missão Arqueológica no Saara - Universidade Sapienza de Roma

O estudo de dois esqueletos apontou serem de duas mulheres na faixa dos 40 anos. Morreram cerca de 5000 a.C., após as mudanças nos padrões climáticos começarem a reduzir o período verde do Saara.

As novas condições secas desse ambiente favoreceram a mumificação natural dos corpos, garantindo, com isso, uma quantidade suficiente de ADN preservado até aos dias de hoje para ser analisado.

"Tivemos muita sorte em ter amostras preservadas a este nível", sublinhou a coautora Nada Salem, especialista em paleogenética do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (EVA).

Desta forma, os investigadores conseguiram reconstruir o genoma e compararam "a ancestralidade com bancos de dados de populações modernas e antigas".

Até então, uma das teses existentes sobre estas movimentações populacionais defendia os que migrantes do norte da África povoaram o Saara verde e, mais tarde, ter-se-iam misturado com pessoas da África subsaariana e do Mediterrâneo oriental. 

“Os estudos anteriores diziam que essa área era um corredor”, explica o coautor Johannes Krause, investigador de ADN antigo, do EVA. Até porque, se os animais se dirigiam para zonas com água, as comunidades humanas iriam no seu encalce, atrás do sustento: “Afinal, os animais vieram da savana subsaariana há mais de dez mil anos” e com eles provavelmente pessoas, acrescenta.
Debate: ADN antigo geneticamente isolado

Porém, o ADN agora analisado sugere que os antepassados das duas mulheres eram distintos dos africanos subsaarianos.

Um outro indício revelou que estas gentes também não vieram do Levante. Ou seja, os genomas de pessoas do Médio Oriente — e de grande parte do mundo fora do continente africano — contêm ADN derivado de neandertais, adquirido quando os humanos modernos começaram a sair da África e misturar genes com os “nossos primos próximos, há cerca de 50 mil a 60 mil anos”.

Mas, ao ser apurado que o genoma da mulher com o DNA mais bem preservado “tinha apenas uma quantidade extremamente pequena de ancestralidade neandertal, dez vezes menos do que as pessoas que vivem fora da África subsaariana, atualmente”, os investigadores interpretaram que essa linhagem na gruta do Saara era mais antiga e não se tinha misturado com outros grupos humanos.

Esses indivíduos partilham laços genéticos próximos com caçadores-recoletores de há 15 mil anos que viveram durante a Era do Gelo, na Caverna Taforalt, em Marrocos, momento que antecede o Período Húmido Africano e a chegada de populações semi-nómadas que já tratam do gado e começaram a produzir cerâmica (há cerca de dez a oito mil anos), processos que levaram ao sedentarismo, explica a investigação.

Também o estudo do ADN mitocondrial (carga genética que é passada pela linha materna, de mãe para filha/o) destas duas mulheres sugere que os antepassados vieram de uma população africana que forneceu alguns dos primeiros migrantes humanos modernos para a Europa. 

Essa população, entretanto, já desapareceu de ambos os continentes. “É uma população que estava separada da África subsaariana”, argumenta Salem, “mas também era distinta das pessoas de fora de África”, acentuam.

"A nossa investigação desafia suposições anteriores sobre a história da população do Norte da África e destaca a existência de uma linhagem genética profundamente enraizada e há muito isolada", acrescenta Salem.
Migração: Cerâmica e pastorícia versus ADN

Entretanto surge outro dado proveniente dos materiais arqueológicos cerâmicos.

A cerâmica encontrada em Takarkori é parecida com a que era produzida ao longo de todo o Norte da África - indiciando trocas de influências, logo contato com pessoas de fora do Saara, contrariando a informação dos genes analisados que não mostram nenhuma mistura com novas populações.

Em algumas grutas na proximidade foram também encontradas marcas de arte rupestre retratando cenas de caça e pastorícia, refletindo mudanças na fauna e na flora, e ainda os diferentes modos de vida das populações.


Arte rupestre em gruta no maciço rochoso de Tadrart Acacus no Saara, entre a Líbia e a Argélia | Património Mundial da UNESCO

Assim, as alterações tecnológicas associadas à introdução da pastorícia ou hábitos culturais (cerâmicas semelhantes) “são frequentemente acompanhadas por um influxo de novas pessoas”. Então "o Saara verde não sendo um corredor para o movimento de pessoas (genes sem marcas de misturas), teria sido, com certeza, um corredor para ideias e tecnologias", sustenta Savino di Lernia.

Em suma, as evidências apontam para o Saara Verde não ter sido um corredor de migração entre a África do Norte e a África Subsaariana e a disseminação da pratica da pastorícia migratório no Saara Verde provavelmente ocorreu via uma troca cultural.

Peter Mitchell revela que a investigação em torno da ancestralidade destas mulheres ainda tem muito estudo pela frente e realça que seria muito importante encontrar mais enterramentos porque é difícil tirar conclusões “com base em dois pontos de dados”. “Talvez se tivéssemos ADN de outros enterros no Saara, veríamos um quadro mais complexo”, sustenta.

Os primeiros resultados desse quadro genético, publicados esta semana na Nature, abrem uma janela no tempo para um breve e exuberante interlúdio da pré-história do norte da África.

"Ao lançar luz sobre o passado profundo do Saara, pretendemos aumentar o nosso conhecimento sobre as migrações humanas, adaptações e evolução cultural nesta região-chave da nossa espécie", remata Lernia.
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