Dez anos após a independência, o Sudão do Sul ainda teme o regresso da guerra

por Graça Andrade Ramos - RTP
Uma criança sul-sudanesa DR

A mais nova nação do mundo está a comemorar uma década de independência, confinada e sem alegria. Em vez da prosperidade sonhada reinam a penúria, a miséria e a incerteza. O Governo de Transição de Unidade Nacional foi a solução encontrada em 2020 para dominar o conflito armado entre velhos rivais, mas o embargo de armas imposto pelas Nações Unidas terá dado igualmente um importante contributo para a paz, tal como o cansaço do povo.

O Presidente, Salva Kiir Mayardit, afirmou esta sexta-feira estar mais interessado em desenvolver o país do que em voltar à luta efetiva com o seu principal opositor e rival, Riek Machar, que dominou metade da primeira década de independência. A guerra estalou em 2013, dois anos e meio após a independência, quanto Kiir demitiu o então vice-presidente Machar e este liderou um golpe de Estado. A capital, Juba, foi palco de uma noite de confrontos sangrentos e a guerra alastrou a todo o país. Nos cinco anos seguintes fez cerca de 400 mil mortos, 2,2 milhões refugiados e 1,4 milhões de deslocados internos, de acordo com o Norwegian Refugee Council.

"Garanto-vos que não vamos regressar à guerra. Trabalhemos todos juntos para recuperar da última década e reconduzir o nosso país ao caminho do desenvolvimento nesta nova década", disse o Presidente, num discurso em inglês, perante dezenas de celebrantes oficiais.

Riek Machar garantiu também que tanto ele como Kiir têm consciência do que está em causa.

"O nosso povo espera muito de nós. O mundo também espera também muito de nós...", afirmou aos repórteres esta sexta-feira. Para "continuar a celebrar" a independência ainda por muitos anos, "precisamos manter viva a paz", acrescentou.
Fartos da guerra
A pandemia de Covid-19 e a penúria oficialmente atribuída a sanções internacionais podem explicar as ruas vazias de Juba e as comemorações escassas, longe da euforia de há dez anos, mas há outros sinais pessimistas, de depressão colectiva. A repórter da televisão da Al Jazeera, Haru Mutasa, mencionou alguns a partir de Juba, a capital do país.

"O ambiente por aqui é sombrio e muitas pessoas não têm vontade de celebrar", referiu. "Sente-se uma desilusão generalizada", acrescentou, sobretudo com a falta de serviços básicos, pobreza persistente e desemprego.

"As pessoas também notaram que, quando Kiir discursou, não estava com Machar", referiu a repórter. "As pessoas esperavam que os dois homens aparecessem pelo menos lado a lado a aparentar que estão mesmo a tentar trabalhar juntos para levar o país em frente".

"Ninguém quer mais guerra" afirmou à mesma televisão Barnaba Marial Benjamin, ministro dos assuntos presidenciais. "Se há alguns líderes políticos que pensam poder vir e mobilizar alguns dos nossos cidadãos, para causar um conflito, porque querem ser líderes do país - não creio que vão ter seguidores", acrescentou.

Os sul-sudaneses parecem contudo não saber muito bem o que fazer com as suas vidas, sobretudo porque lhes falta liderança capaz de estabelecer um plano de desenvolvimento.
Marasmo
Em 2011, o futuro parecia promissor. O Sudão do Sul é rico em petróleo e no início gozou de uma chuva de doações e financiamentos internacionais, perdidos e desviados ao longo dos anos por senhores locais ou de guerra mais interessados em promover os próprios interesses.

A guerra, a seca, inundações e pragas graves de gafanhotos, deixaram entretanto mais de 60 por cento da população à beira da fome. Inflação galopante, crise monetária e caos económico paralisam os esforços.

O Governo não ajuda, uma vez que não implementa quaisquer políticas ou decisões, criticam observadores internacionais.

"O país está, de facto, muito pior do que há dez anos", referiu o analista do Grupo de Crise Internacional, Alan Boswell, à Al Jazeera. "Os parceiros internacionais são realmente os únicos a fornecer uma espécie de serviços governamentais. A situação não parece assim muito sustentável", acrescentou. Tanto os fornecedores de auxílio internacional, vital para a sobrevivência de milhões, como as autoridades sul-sudanesas, estão dominados pela inércia. Não parece existir qualquer plano para tirar o país da atual situação.

À agência Lusa, o britânico Mark Millar, analista de conflitos no Conselho Norueguês para os Refugiados (NRC, na sigla em inglês), que trabalha em Juba, confirmou as palavras de Boswell.

"A situação piorou, de facto. Os ciclos de violência, que já tinham quatro décadas, foram renovados e exacerbados e tornaram-se ainda maiores. O processo de paz não correspondeu às expectativas do povo", referiu.

Celebrações oficiais dos 10 anos de independência do Sudão do Sul em Juba, 9 de julho de 2021 foto - Reuters
Década de guerra, fome, pandemia, morte
A independência foi o corolário de décadas de luta separatista do agora vizinho do norte, a República do Sudão, espelhada em duas guerras civis, a segunda das quais a mais longa de sempre no continente africano, que provocaram milhões de mortos e de deslocados.

A promessa da paz esteve na base da anuência mundial ao novo país à revelia da legislação internacional que, com o fim do período colonialista, determinou que os países então emergentes seriam territorialmente indivísiveis. A República do Sudão do Sul viu a luz do dia, oficialmente, a 9 de julho de 2011, após num referendo em janeiro desse ano mais de 98 por cento da população ter votado pela independência da República do Sudão, a norte. Cinco dias depois tornou-se o 193º membro das Nações Unidas.

A esperança perdeu-se em poucos anos.

O poder foi inicialmente partilhado num sistema presidencial entre os líderes das duas mais poderosas etnias sul-sudanesas, os Nuer (pastores) e os Dinka (agricultores), cuja rivalidade pelo controlo das terras tinha servido durante décadas os interesses do Sudão do norte. 

Os dois primeiros anos foram marcados por escaramuças e pequenos conflitos pelo controlo do petróleo, longe da capital. Em julho de 2013, Salva Kiir, o novo Presidente e um antigo comandante militar dos Dinka, demitiu Riek Machar, líder rebelde dos Nuer e comandante do Exército Popular de Libertação do Sudão, líder da oposição, assim como todo o Governo.

Machar acusou Kiir de tentar impor uma ditadura. Em dezembro, apoiantes de um e de outro envolveram-se em combates pelo controlo da capital e a guerra alastrou.
Historial de violações de acordos
Em 2015, ambos assinaram um acordo de paz que devolveu Machar à vice-presidência.

Em 2016 os combates recomeçaram, com Machar a acusar Kiir de tentar matá-lo. Um novo acordo de paz foi assinado em 12 de setembro de 2018, prevendo uma nova partilha de poder e uma série de salvaguardas para evitar o reacender do conflito. A implementação tem sido lenta e Machar só em março de 2020 tomou de novo posse, mais uma vez, como vice-presidente. Em junho seguinte, Kiir e Machar chegam a acordo para o controlo dos 10 estados do país. Somente em maio de 2021 é que o Presidente abre o Parlamento a membros da oposição, dando início a 25 de maio à elaboração de uma nova Constituição.

Depois de sucessivos prolongamentos da missão da ONU no Sudão do Sul e denunciando os riscos crescentes do reacender da guerra, a comunidade internacional aproveitou a efeméride para apelar aos líderes sul-sudaneses mais ações em favor dos 12 milhões de habitantes do país.

"A jornada da guerra para a paz tem sido longa e difícil e há muito ainda a fazer para que as pessoas possam exercer o direito democrático que conquistaram há uma década", afirmou em comunicado Nicholas Haysom, diretor da missão da ONU no Sudão do Sul, UNMISS.

"Nós apelamos aos líderes políticos que aproveitem esta oportunidade de tornar realidade as esperanças e sonhos de há uma década, garantindo uma paz duradoura e sustentável, para possibilitar uma recuperação completa e o desenvolvimento", escreveu Haysom.

Salva Kiir. Presidente do Sudão do Sul, à esquerda, junto ao arquirival e vice.presidente Riek Machar em fevereiro de 2020 Foto - Reuters
Promessas e realidade
Salva Kiir preferiu celebrar esta sexta-feira "um novo espírito de diálogo" entre rivais políticos, e referiu que o Governo de Transição de Unidade Nacional iria focar nas reformas económicas e no melhoramento da segurança.

Apontou contudo o dedo à ONU e ao embargo de armas prorrogado pelas Nações Unidas até 31 de maio de 2022, o qual, afirmou esta sexta-feira, tem impedido o estabelecimento de forças de segurança eficazes e o fornecimento "das armas necessárias" às novas forças de segurança, um primeiro contingente de 53.000 efetivos que está "pronto" a terminar a formação.Em notas de esperança, o Presidente referiu que as prioridades do governo são "o sector da segurança e as reformas económicas". "Estas duas áreas irão estabilizar" o Sudão do Sul, e "assegurar o crescimento económico através do aumento da produção, levando ao desenvolvimento socioeconómico", sustentou.

Sobre as grandes reservas petrolíferas do país, Salva Kiir recordou que "foram abertos mais campos de petróleo nas áreas de produção" e afirmou que uma refinaria de petróleo "estará, em breve, plenamente operacional".

O país encontra-se espartilhado em fragmentos de território sob o controlo das forças leais a Kiir, das forças do chamado Exército de Libertação do Povo do Sudão na Oposição (SPLA-IO) leais ao vice-presidente Riek Machar, e ainda de uma quantidade grande de exércitos particulares, sob o comando de senhores da guerra, ou "generais", alinhados ou não com Kirr ou Machar, que exploram vastas zonas ricas de território por interesses pessoais e de poder político.

Atualmente e de acordo com estimativas internacionais, apenas cinco por cento do país tem acesso a eletricidade, a água potável chega a 50 por cento da população através de camiões de empresas privadas e somente 20 por cento da população vive com redes de esgotos.

O sistema de Saúde é considerado um dos piores do mundo. A iliteracia afeta 84 por cento das mulheres e das crianças e apenas 27 por cento das pessoas com mais de 15 anos sabe ler e escrever.
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