Desastre aéreo abria caminho a Franco

por RTP
O avião em que viajava Sanjurjo, despenhado no Estoril DR

A queda da avioneta em que viajava o general Sanjurjo foi tão oportuna para Franco que logo levantou suspeitas de ter sido orquestrada por este. A polícia portuguesa não encontrou provas de atentado, mas uma coisa é certa: a morte de Sanjurjo permitiu a Franco tornar-se o "caudillo" na Guerra Civil que estava a começar. Três anos depois, a vitória permitiu-lhe ocupar o poder durante quase quatro décadas.

Sanjurjo tinha feito uma longa tarimba em guerras coloniais combatendo primeiro em Cuba e depois em Marrocos. Ganhara prestígio militar, influência política e galões de general. Entre os seus subordinados contava-se Francisco Franco (à esq. na foto, com Sanjurjo durante a guerra de Marrocos - DR).

Nos anos 20, Sanjurjo participou no golpe militar de Primo de Rivera, um ditador populista que em muitos aspectos dava continuidade a características pioneiras, proto-fascistas, da ditadura que Sidónio Pais instaurara em Portugal. O consulado de Rivera durou mais que o de Sidónio e não caiu por via do tiranicídio: foi o próprio rei quem lhe tirou o tapete quando achou oportuno.

Sanjurjo, entretanto investido no cargo de chefe da Guardia Civil, permaneceu ao serviço do rei. Mas não lhe perdoou a traição ao seu amigo Primo de Rivera. Em 1931, quando os partidos republicanos ganharam as eleições e o rei tentou reagir com um golpe militar, perguntou-lhe se podia contar com ele; o general respondeu que sim - que podia contar com uma escolta da Guardia Civil até à fronteira, a caminho do exílio. A sua adesão à República contribuiu para a pacífica defunção da monarquia.

Sanjurjo exila-se em PortugalMas em breve Sanjurjo entrava em rota de colisão com essa república em que as classes trabalhadoras reivindicavam um novo lugar. Logo em 1932, ele encabeçou uma conjura anti-republicana que abortou em todo o lado. Chegou a combater-se em Madrid. A cidade de Sevilha, onde Sanjurjo estabeleceu o seu centro de operações, chegou a estar durante algumas horas nas mãos do golpe. No final, também aí o movimento fracassou.

Várias adesões esperadas não chegaram a concretizar-se - entre elas, a de Franco. Outras não bastaram para mudar o signo de fracasso ao complot: entre elas, a de Juan António Ansaldo, falangista e monárquico, súbdito fiel do rei exilado, mas também admirador indefectível de Sanjurjo desde os tempos de Marrocos. Ansaldo era sobretudo um brigão disponível para todas as revoltas de direita. Iria ser ele o piloto do avião despenhado quatro anos depois no Estoril.

Após a derrota, Sanjurjo tentou fugir para Portugal, mas foi capturado a caminho da fronteira. Julgado em tribunal marcial, pediu a Franco que o defendesse. O futuro caudillo respondeu-lhe friamente que ele, Sanjurjo, ganhara "o direito a morrer heroicamente". E recusou o convite. No julgamento, o juiz perguntou a Sanjurjo com quem contava para a conjura e o general respondeu-lhe: "Agora que fui derrotado, [não contava] com ninguém. Mas se tivesse ganho, o primeiro com quem contava era consigo". Foi condenado à morte.

Depois, a pena foi-lhe comutada para prisão perpétua e ficou a cumpri-la. Com a vitória eleitoral da direita, em 1933, veio a amnistia. Sanjurjo pôde sair da cadeia, mas não pôde regressar ao exército. Em Abril de 1934, partiu para um voluntário exílio em Portugal.

Franco frustra o regresso de Sanjurjo a EspanhaEm Outubro, a entrada dos fascistas de Gil Robles no novo governo de direita ocasionou uma insurreição operária apoiada pelos socialistas. Em Madrid foi rapidamente dominada, na Catalunha deu lugar a uma efémera proclamação da independência, mas nas Astúrias tornou-se um caso mais sério. O proletariado mineiro tomou o poder em Mieres e noutras cidades, criou um "exército vermelho", marchou com ele sobre a capital asturiana, Oviedo, cercou o quartel e dominou quase toda a cidade.

Para além da dinamite, que utilizavam com perícia, os mineiros (na foto, durante a insurreição - DR) contavam ainda com um carregamento de armas que fora vendido aos socialistas pelo grupo de republicanos portugueses exilado em Espanha, cujo nome mais sonante era o de Jaime Cortesão. Essas armas tinham chegado escassas semanas antes ao porto asturiano de San Esteban de Pravia. Parte delas fora interceptada pela Guardia Civil, mas uma outra parte ficara escondida à espera da insurreição.

Para derrotar a "Comuna das Astúrias", houve movimentações visando fazer Sanjurjo regressar do exílio português. De Lisboa, o general enviou uma mensagem ao governo da direita, colocando-se à sua disposição, mas em breve se tornou claro que ele só desempenharia um papel na contra-insurreição se impusesse ao governo a sua presença. Ansaldo voou para Lisboa na sua avioneta e ofereceu-se para conduzi-lo ao teatro de operações, nas Astúrias.

Mas, em Madrid, Franco vetava a iniciativa. Nomeado pelo governo, tomava ele próprio a direcção das operações. No terreno, os mercenários mouros dirigidos pelo tenente-coronel Yagüe conduziam uma sangrenta repressão. Os mineiros foram derrotados. O governo da direita voltava a estabilizar-se. Havia de cair ingloriamente, devido à corrupção manifestada num negócio com as máquinas de jogo usadas nos casinos.

Os militares conspiram contra a Frente Popular
Em Fevereiro de 1936, novas eleições deram a vitória à Frente Popular. A velha sociedade espanhola voltou a sobressaltar-se. Sanjurjo, o eterno conspirador, surgia agora como um profeta que tivera razão prematuramente. Tinha passado o tempo das ambiguidades. O próprio Franco, tão useiro e vezeiro em se resguardar de envolvimentos conspirativos, tomou a iniciativa de pedir ao governo de Portela que lhe transmitisse a ele, Franco, o poder, antes que a Frente Popular pudesse assumir as rédeas do país. O pedido não foi atendido e não houve auto-golpe.

Para a Alemanha, viajaram Sanjurjo e o jovem José António Primo de Rivera, filho do ditador dos anos 20 e prometedor dirigente do partido fascista, a Falange. Sob pretexto de assistirem aos Jogos Olímpicos de Inverno, visitaram fábricas de armas e entrevistaram-se com os dirigentes da Alemanha nazi. Sanjurjo falou longamente com o almirante Canaris, chefe da espionagem militar e reputado especialista da Península Ibérica. Mas não é líquido que a Alemanha nazi se tenha comprometido imediatamente a apoiar um golpe militar em Espanha.

A conspiração prosseguiu, dirigida pelo general Emilio Mola e tendo Sanjurjo como sua figura mais emblemática. Entre os chefes militares, havia um que continuava a hesitar, como hesitara perante a "Sanjurjada" de 1932 e perante a tentativa de fazer regressar Sanjurjo em 1934: Francisco Franco. Desterrado para as Canárias por causa do seu atrevimento de fevereiro, Franco calculava agora as probabilidades de êxito do movimento e demorava o seu tempo. Sanjurjo referia-se a ele, desdenhosamente, como a uma "Miss Canárias", que se faz cortejar longamente antes de se comprometer. E terminava encolhendo os ombros: "Com Franquito ou sem Franquito, salvaremos a Espanha".

Mas Franco compreendeu que, desta vez, a oficialidade se encaminhava rapidamente para o golpe e decidiu participar. Em 17 de julho, partiu das Canárias para Marrocos, com o plano de sublevar a guarnição da colónia. E assim fez.

A morte de Sanjurjo abre o caminho a Franco
Em Lisboa, Sanjurjo planeava partir para Burgos, a assumir a chefia do movimento, que unanimemente se lhe atribuía. Juan Ansaldo voou com a sua avioneta, aterrou primeiro na praia de Santa Cruz, dirigiu-se a casa do general e ofereceu-se para transportá-lo. Assistido por um oficial da PVDE, Pessoa Amorim, levou o aparelho para o aeroporto de Alverca e aguardou instruções.

Entretanto, o embaixador republicano em Lisboa, Claudio Sánchez-Albornoz, pressionava fortemente Salazar para proibir a partida de Sanjurjo. O Governo de Lisboa tinha declarado a sua neutralidade no confronto que então começava e decidiu iludir a pressão de Albornoz proibindo a utilização de qualquer aeroporto do Estado pela avioneta de Ansaldo. Ao acentuar que a proibição só valia para aeroportos do Estado, o próprio Salazar insinuava já uma solução.  E foi mesmo mais longe, significando a um enviado de Sanjurjo que pouco lhe importava o que se passasse em qualquer aeródromo particular.

Ansaldo voou então de Alverca para uma pista improvisada - um hipódromo situado na Quinta da Marinha. Sanjurjo, que o esperava aí, embarcou (na foto, o momento do embarque - DR) com aquilo que alguns presentes consideravam uma bagagem demasiado pesada. Mas recusou obstinadamente separar-se dos seus uniformes de gala: julgava-os necessários a muito breve prazo, para as comemorações de uma vitória que considerava iminente.

Segundo umas interpretações por excesso de peso, segundo outras por sabotagem, o avião despenhou-se pouco depois de levantar voo, no dia 20 de Julho. Sanjurjo teve morte imediata e Ansaldo, gravemente ferido, foi internado num hospital. Acabou por não  esclarecer as dúvidas sobre o motivo do despenhamento, porque logo fugiu do hospital, ajudado por um piloto da Iberia e pelo militante fascista português Pequito Rebelo. Apresentou-se em Burgos e foi concluir a sua convalescença em Pamplona, para depois participar na guerra civil como piloto.

O funeral de Sanjurjo em Lisboa (na foto -  DR) foi uma grande concentração de imigrados espanhóis nacionalistas e fascistas, em que o nome de Franco já circulava como o de um provável sucessor. É que, apesar do evidente protagonismo de Mola na organização da conjura, este era apenas general de brigada, além disso pouco ambicioso, ao passo que Franco era um general de divisão com insaciável sede de poder.

Franco consolida a sua posiçãoA outra personalidade que poderia fazer sombra a Franco era o carismático dirigente fascista Jose Antonio Primo de Rivera. Este encontrava-se numa prisão republicana e defendia desde aí uma mediação do conflito. Franco torpedeou todas as tentativas para trocá-lo por prisioneiros republicanos e Jose Antonio acabou por ser julgado e fuzilado.

A Alemanha nazi lançava entretanto na balança da sucessão todo o seu peso a favor de Franco. Desde logo, decidiu colocar à disposição de Franco aviões que lhe permitissem trazer as suas tropas mouras de Marrocos para a Península Ibérica. A ponte aérea foi decisiva para consolidar a vitória local que o "alzamiento" obtivera em Sevilha e para permitir em pouco tempo a tomada de Badajoz.

Com o sangrento episódio de Badajoz, completava-se o controlo da fronteira hispano-portuguesa pelas tropas franquistas. A Alemanha passava a ter a possibilidade de abastecer por terra os militares sublevados. Armamento enviado do porto de Hamburgo para o de Lisboa seguia depois de comboio até Espanha. Mas aquele que fosse entregue a Mola, devia ser-lhe entregue como cedido por Franco e não como fornecimento directo a partir da Alemanha. Com esta instrução aos transportadores se sinalizava a opção dos nazis para a chefia do movimento.

Mas Franco continuou a ser contestado e um ano depois Mola decidiu sair da sua reserva e reivindicar a chefia. Meteu-se num avião para ir ao encontro de Franco e convencê-lo a transmitir-lhe o comando. O avião despenhou-se e Mola morreu. Neste caso mais uma vez se levantaram suspeitas de sabotagem. Acidente ou sabotagem, também Franco foi o beneficiário deste despenhamento.
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