Covid-19. Pandemia é teatro de guerra política no Brasil

por Carlos Santos Neves - RTP
Jair Bolsonaro e o novo ministro brasileiro da Saúde, Nelson Teich Adriano Machado - Reuters

Do seio do próprio Governo ao ramo legislativo de Brasília, Jair Bolsonaro abriu nas últimas horas múltiplas frentes de conflito político num país cada vez mais atingido pela pandemia da Covid-19. Além de substituir o ministro da Saúde, cujas políticas, disse, estariam a potenciar o pânico entre a população, o Presidente brasileiro lançou-se contra o presidente da Câmara dos Deputados, acusando-o de o querer derrubar.

Ao cabo de semanas de divergências públicas entre o titular da pasta da Saúde no Governo Federal brasileiro e o Presidente, o ortopedista Luiz Henrique Mandetta foi exonerado, na tarde de quinta-feira, e substituído pelo oncologista Nelson Teich. O primeiro defendia o isolamento como medida preferencial para travar a propagação do SARS-CoV-2, contra a vontade de Bolsonaro. O segundo assume a pasta a defender não só o mesmo, como a massificação dos testes de despistagem da infeção.A Organização Mundial da Saúde inclui o isolamento social entre as medidas de combate à pandemia do novo coronavírus. No Brasil, Luiz Henrique Mandetta advogou sempre esta via.

Ao passo que o Presidente brasileiro não retira uma vírgula ao discurso que emprega há já um mês, adverso a qualquer forma de confinamento, em nome do que diz ser a necessidade de preservar as atividades económicas do país, uma fatia considerável da classe política, desde logo no Parlamento, lamenta a ação de Bolsonaro.

É o caso do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

“Em nome da Câmara dos Deputados, presto homenagem ao trabalho desenvolvido pelo ministro Mandetta à frente da Saúde brasileira nos últimos meses. A sua dedicação, trabalho, competência, capacidade de compreensão do problema, busca por soluções a partir do diálogo com toda a sociedade e com o parlamento trouxeram segurança, especialmente neste período de pandemia”, escreveu o responsável na rede social Twitter.


Davi Alcolumbre, presidente do Congresso e do Senado, seguiu a mesma pauta: “Luiz Henrique Mandetta foi um verdadeiro guerreiro na saúde pública no período em que esteve à frente do Ministério, especialmente no enfrentamento firme à Covid-19. O seu trabalho responsável e dedicado foi irreparável. A sua saída não é positiva e será sentida por todos nós”.

Alcolumbre manifestou ainda a expectativa de que o substituto de Mandetta atue também “de forma vigorosa, de acordo com as melhores técnicas científicas”.

Outra voz que se fez ouvir foi a de Fernando Henrique Cardoso, antigo Presidente do Brasil, para quem “o povo verá arrogância na demissão e não competência”.


“Demissão do ministro da Saúde em má hora. Ele estava na linha de frente da batalha pela vida. A economia conta, mas manter ou não a quarentena é decisão médica. O povo verá arrogância na demissão e não competência. O custo político se medirá pelo número de mortes. Tomara que não aumentem”, escreveu FHC no Twitter.

Pelo flanco do Partido dos Trabalhadores, o ex-candidato presidencial Fernando Haddad sustentou que, na despedida, “Mandetta defende a vida, o SUS [Sistema Único de Saúde] e a ciência. Três palavras incompatíveis com o atual Governo”.
Pedro Sá Guerra, correspondente da RTP no Brasil

“A saída do Mandetta é uma perda para o Brasil. Agradeço o apoio e contribuição com o estado de São Paulo no combate à pandemia. Desejo êxito ao novo Ministro da Saúde, Nelson Teich, e espero que siga procedimentos técnicos e atenda às recomendações da OMS”, escreveu, por seu turno, o governador do Estado de São Paulo, João Doria.

Na mesma linha, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, estimou que, “entre a saúde dos brasileiros e a política, Jair Bolsonaro preferiu a política”: “Que Deus nos ajude. Parabéns pelo belo trabalho à frente do Ministério da Saúde, Mandetta. Nossa luta contra o coronavírus continua. Que o novo ministro siga as orientações da OMS”.
“Parece que a intenção é tirar-me do Governo”

O Brasil superou ontem a marca das 30 mil pessoas infetadas pelo novo coronavírus. São agora 30.425 os casos confirmados. Há registo de 1924 mortes desde o início da pandemia.

O novo titular da pasta da Saúde fundou, nos anos de 1990, o Centro de Oncologia Integrado. Aqui trabalhou até ao ano passado. Entre setembro de 2019 e janeiro de 2020, assessorou a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério brasileiro da Saúde.Ao abrigo do projeto contestado por Bolsonaro, Estados e municípios brasileiros podem ser compensados pela queda no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços e Imposto Sobre Serviço, dos quais resulta boa parte das receitas estaduais e municipais.

Também na quinta-feira o Presidente do Brasil orientou a mira para o presidente da Câmara dos Deputados, que acusou de tentativa de o derrubar. Em causa, a aprovação de um projeto de auxílio a Estados perante a pandemia.

“O Brasil não merece o que o senhor Rodrigo Maia está a fazer. O Brasil não merece a péssima atuação dele dentro da Câmara dos Deputados”, atirou Bolsonaro.

“Não estou a romper com o Parlamento. Muito pelo contrário, é a verdade que tem de ser dita”, afirmou em entrevista à CNN Brasil.

E continuou: “Parece que a intenção é tirar-me do Governo. Quero crer que esteja equivocado”.

Jair Bolsonaro entende que Rodrigo Maia está a levar o Brasil para o “caos” e “a enfiar a faca” no Governo Federal”, acenando com o impacto do projeto de lei nas contas públicas do país, calculado em mais de 80 mil milhões de reais, o equivalente a mais de 14 mil milhões de euros.

“Lamento a posição do Rodrigo Maia, que resolveu assumir o papel do Executivo. Ele tem de entender que ele é o chefe do legislativo e tem que me respeitar como chefe do Executivo. O sentimento que eu tenho é que ele não quer amenizar os problemas, ele quer atacar o Governo federal, enfiar a faca”, insistiu Bolsonaro, para admitir não ver “como pagar uma dívida monstruosa dessas”.

“O Presidente não vai ter de mim ataques. Ele atira-nos pedras, o Parlamento vai atirar flores ao Governo Federal”, reagiu o presidente da Câmara dos Deputados, também ouvido pela CNN Brasil.

c/ agências
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