Covid-19 na Índia. Milhares de pessoas em fuga perante a fome

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Adnan Abidi - Reuters

Depois de ter sido decretada quarentena em todo o país, as ruas na Índia encheram-se de milhares de migrantes que, agora desempregados, tentam regressar às suas aldeias. Fogem à fome e vão em busca da sobrevivência.

A 24 de março, o governo indiano decretou quarentena em todo o país para travar a propagação do novo coronavírus, mas as ruas encheram-se de pessoas nos últimos dias. Fogem não por medo ao vírus, mas por receio à fome.

Agora desempregadas e sem forma de ganharem dinheiro para se alimentarem pelo menos durante as três semanas de quarentena, milhares de pessoas abandonam a capital e caminham em direção às suas casas nas aldeias onde esperam encontrar o apoio da restante família. Dizem que esta é a única hipótese de sobreviver.

A família de Mamta é uma entre as milhares que estão em fuga. Com 35 anos, Mamta e o marido, ambos trabalhadores numa fábrica de automóveis que encerrou temporariamente durante o período de quarentena, ficaram sem os salários que pagavam a renda e a alimentação.

“Para sobreviver tivemos que voltar para a nossa aldeia. Não tínhamos escolha”, disse Mamta em entrevista a The Guardian.

Com grande parte dos transportes suspensos, foram disponibilizadas centenas de autocarros para transportar estas pessoas a suas casas. No entanto, parece não ter sido suficiente à medida que mais pessoas apareceram na tentativa de conseguirem transporte.

Caminhar acabou por ser a única opção para muitas destas famílias, algumas com crianças pequenas. À BBC, alguns contam que não conseguiram lugar nos autocarros e que vão ter de caminhar até à sua aldeia que fica a 200 quilómetros de Nova Deli. “Não sei quando é que o coronavírus me irá infetar, mas vou morrer primeiro de fome se ficar em Nova Deli. Esta é a razão por que estamos a abandonar a cidade”, disse Meena à BBC.

Segundo o testemunho de Mamta, a sua família caminhou durante cinco dias até chegar ao destino. De manhã até à noite, apenas paravam para fazer curtas pausas.

“A estrada parecia infindável, não tínhamos dinheiro para comer e os meus filhos faziam pequenas pausas para dormir no chão”, contou Mamta ao jornal britânico. “A única coisa que nos fez continuar foi o facto de não termos outro lugar para ir”, acrescentou.

À BBC, Goutam Lal Meena também deu o seu testemunho: “Caminhei durante o dia e caminhei durante a noite. Que opção tinha eu? Tinha pouco dinheiro e quase nenhuma comida”.
Violência nas ruas
Durante o fim-de-semana foram vários os relatos de violência em algumas das estações de autocarros, com centenas de pessoas a lutarem por um lugar vago. O aglomerado de pessoas era a antítese do distanciamento social ordenado por Narendra Modi, o primeiro-ministro indiano.

“O meu trabalho parou totalmente então eu fiquei sem dinheiro para sobreviver e não como desde ontem, por isso preciso de voltar”, disse Rama a The Guardian. “Mas eu não era o único. A estação de autocarros estava cheia de pessoas como eu, desesperadas para sair, e foi como o inferno”, acrescentou.

“Para autocarros com assentos para 100 pessoas, 200 tentavam entrar. As pessoas estavam sentadas no topo do autocarro e penduradas nas janelas”, descreveu Rama. “Estávamos desesperados para sair porque não conseguimos sobreviver em Nova Deli sob este isolamento”.

Há também relatos de confrontos com a polícia entre aqueles que desrespeitam a quarentena. Na cidade de Surate, por exemplo, a polícia disparou gás lacrimogéneo para dispersar uma multidão que tentavam regressar a casa depois de ficarem sem trabalho.

“A polícia tentou convencê-los de que isso não seria possível porque os autocarros e os comboios estão parados, mas os trabalhadores recusaram-se a cumprir as ordens e começaram a apedrejar os agentes”, disse o comissário adjunto da polícia da cidade, Vidhi Chaudhari à agência Reuters.

Imagens mostram ainda agentes policiais a punirem alguns destes indivíduos que desrespeitam as ordens para permanecerem em casa com ajuda de paus.

Barrados à chegada
Após a longa viagem de volta às suas aldeias, muitos destes migrantes são barrados à entrada. Os moradores colocam barreiras à entrada da aldeia com avisos de que apenas serão bem-vindos após a realização de exames clínicos.

“Tomamos esta decisão uma vez que as pessoas de fora da vila podem colocar em risco a vida de todos”, disse ao The Guardian Umesh Singh, professora numa escola da aldeia de Baniya-Yadupur, no estado de Bihar. “Este é um momento muito perigoso e não podemos ignorar isso”, acrescentou. Em algumas cidades, profissionais de saúde vestidos com roupas de proteção estão a borrifar com desinfetante os migrantes que tentam regressar às suas aldeias.

Esta migração em massa coloca a estratégia de quarentena em risco. Eleva-se o receio de que algumas destas pessoas estejam infetadas e levem a doença para o interior do país. Caso isso aconteça, a Índia irá assistir a uma subida abrupta do número de casos.

Até ao momento, a Índia regista 1.071 casos de infeção pela Covid-19, dos quais 29 morreram.
Para um país com 1.300 milhões de pessoas, em comparação com países como os EUA, Itália, Espanha ou China, os números não são muito alarmantes, mas as autoridades de saúde alertam que a Índia está a poucas semanas de registar uma grande subida do número de casos que irá sobrecarregar o frágil sistema de saúde.
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