COP26 limita participação de sociedade civil, mas maior delegação da cimeira é da indústria de combustíveis fósseis

por Inês Moreira Santos - RTP
Laurent Gillieron - EPA

Os países em desenvolvimento têm alertado, cada vez com mais frequência, para o facto de serem, "injustamente", os alvos dos impactos da inação dos países ricos, no que toca a reverter alguns dos efeitos das alterações climáticas ou a pelo menos evitar que as temperaturas globais aumentem mais de 1,5.ºC. E, nesta segunda-feira em que se dá início à segunda semana da cimeira climática da ONU, vários grupos de comunidades vulneráveis, indígenas, ativistas e membros da sociedade civil criticam as restrições no acesso e na participação nas negociações. Paralelamente, foi revelado que a maior delegação presente na COP26 é a de representantes da indústria dos combustíveis fósseis, o que leva os especialistas a questionar a legitimidade deste evento mundial.

Arranca esta segunda-feira a segunda semana da COP26, que decorre em Glasgow, no Reino Unido, com o debate de temas como a adaptação às alterações climáticas, o papel da mulher na ação climática, a ciência e inovação, a descarbonização dos transportes e as cidades, culminando com o fim das negociações na sexta-feira. Negociações estas que visam um acordo final da COP26, que deve estar pronto até sexta-feira e ser assinado unanimemente por todos os 197 países com assento na cimeira climática.

O documento deverá incluir metas concretas para o corte das emissões de dióxido de carbono e para o aumento do investimento público no combate, mitigação e adaptação às alterações climáticas. Mas as negociações continuam a decorrer à porta fechada, tendo por isso sido questionada a legitimidade da COP26 por participantes da sociedade civil, que consideram que as restrições ao acesso às negociações são "inéditas e injustas".

Membros de centenas de organizações ambientais e académicas, de justiça climática, de comunidades indígenas e de grupos de direitos das mulheres, que estão como observadores das negociações da COP26, afirmam que serem excluídos das negociações pode ter consequências nefastas para milhões de pessoas.

"As vozes da sociedade civil são fundamentais para o resultado da COP26, mas não temos sido capazes de fazer o nosso trabalho. Se a participação e a inclusão são a medida de legitimidade, então estamos num terreno muito instável", disse ao Guardian Tasneem Essop, diretor executivo da Climate Action Network (CAN), que representa mais de 1.500 organizações em mais de 130 países.

Os observadores são uma espécie de vigilantes informais da cimeira. Isto é, são os olhos e os ouvidos do público durante as negociações para garantir que os procedimentos são transparentes e que refletem as preocupações das comunidades e grupos com maior probabilidade de serem afetados pelas decisões dos líderes mundiais.

Mas a sua capacidade de observar, interagir e intervir nas negociações sobre os mercados de carbono, catástrofes e danos e até sobre as necessidades de financiamento climático foi restrita durante a primeira semana, avança o jornal britânico.

"Há milhares de ativistas que deviam estar aqui, mas estão ausentes e é chocante que se restrinja o espaço para a sociedade civil e as vozes da linha de frente. É ofensivo, injusto e inaceitável", considerou também Gina Cortes, membro do Grupo de Mulheres e Género, acrescentando que têm de ser denunciadas "as profundas desigualdades e injustiças desta cimeira".
COP26 em Glasgow mais inclusiva?

Na preparação para a 26.ª Conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, o Governo britânico assegurou que a cimeira climática em Glasgow seria a mais inclusiva, até agora realizada. Mas na realidade, cerca de dois terços das organizações não-governamentais que habitualmente têm delegados em representação na COP não estão em Glasgow. Restrições por causa da vacinação contra a Covid-19, limites nas viagens e até preços das deslocações foram alguns dos principais motivos que impediram muitas organizações e grupos de não estar presentes na COP26.

De acordo com os observadores, a situação foi mais crítica nos primeiros dois dias de encontros de líderes, na semana passada, quando cada organização podia apenas ter dois representantes a participar, quando estavam a decorrer eventos diferentes em seis salas de negociação, em simultâneo.

Além disso, na edição deste ano da cimeira climática da ONU as estações de trabalho, os gabinetes e até as zonas de alimentação também foram isoladas, de forma a impedir que os observadores tenham contacto direto com os negociadores.

"Este é um nível de restrições sem precedentes"
, referiu Sebastian Duyck, do Centro de Direito Ambiental Internacional. "É alarmante, porque as relações que estabelecemos no início da cimeira são cruciais para o trabalho que fazemos depois. A participação limitada afeta a credibilidade da COP26".

Nos últimos dias, contudo, o acesso deixou de ser tão limitado, podendo já haver um observador de cada organização ou grupo em cada evento que esteja a decorrer, se houver espaço suficiente de acordo com as regras de distanciamento social. Ainda assim, estes grupos consideram que a sua participação continua limitada.

"Há um risco real de que as decisões tomadas nessas salas afetem os direitos humanos da maneira mais dramática, como já vimos acontecer no mecanismo de comércio de carbono de Kyoto. Se optarem por uma medida incorreta, é quase impossível alterar depois. A escala dos mercados de carbono significa que há uma ameaça maior para as comunidades", adiantou Duyck.

Os observadores dizem estar particularmente preocupados com as negociações sobre os protocolos de comércio de carbono, à medida que os governos e as corporações tentam alcançar compromissos líquidos zero através de compensações. Esta é uma grande preocupação para as comunidades indígenas, que representam seis por cento da população global, mas protegem 80 por cento da biodiversidade do planeta.

"Sem as nossas vozes, está em risco a criação de regras que continuarão a violar os direitos humanos, territoriais e espirituais dos povos indígenas", explicou Eriel Deranger, um observador da Ação Climática Indígena.
Covid-19 limita participação de sociedade civil
Em resposta às críticas, o Governo do Reino Unido confirma os desafios sem precedentes devido à pandemia da Covid-19 e às regras de saúde pública. Contudo, a organização tentou colmatar esses desafios na participação de mais membros da sociedade civil criando um plataforma online onde muitos dos representantes dos grupos e ONG’s podem assistir aos trabalhos da COP26.

"O Reino Unido está empenhado em hospedar uma cimeira inclusiva. Garantir que as vozes das pessoas mais afetadas pelas alterações climáticas sejam ouvidas é uma prioridade para a presidência da COP26 e, se quisermos ajudar o nosso planeta, precisamos que todos os países e a sociedade civil continuem a expressar as suas ideias e ambições em Glasgow", declarou um porta-voz no mês passado.

Mas as críticas mantêm-se. Segundo Hellen Kaneni, da organização Corporate Accountability, o acesso virtual tem sido alvo de muitas “falhas técnicas” o que o torna num “pesadelo logístico”.

"A cimeira climática nunca foi confiável, mas este ano está muito pior, o acesso foi limitado de muitas maneiras, é horrível", acrescentou Kaneni.

O sucesso da COP26 só será de facto avaliado nos próximos anos. Mas, na opinião de Nathan Thanki da Demand Climate, a legitimidade desta cimeira está a ser muito prejudicada pelas restrições de acesso e a forma como os países ricos usam a COP26 para fazer anúncios que fazem capas de jornais mais que que não se incluem no quadro de compromisso e revisão da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima).

“É impossível controlar estes anúncios, o que significa que não há responsabilidade para a sociedade civil ou para outros países. Essa é a situação lamentável nesta cimeira”.
Lóbi dos combustíveis fósseis tem maior delegação da COP26
Se por um lado é questionada a legitimidade da cimeira climática da ONU com a falta de representatividade de vários grupos da sociedade civil e de comunidades mais vulneráveis às alterações climáticas, por outro lado é revelado que a maior delegação presente na COP26 é a da industria dos combustíveis fósseis.

Estão presentes na COP26 um total de 503 delegados com ligações à indústria dos combustíveis fósseis — um número muito superior ao de qualquer delegação nacional presente na cimeira. Segundo a publicada na BBC, esses delegados representam o lóbi das indústrias de petróleo e gás, e os ativistas consideram deviam ser proibidos de participar na cimeira climática.

A COP26 conta com cerca de 40 mil delegados nas negociações globais, sendo o Brasil o país com a maior delegação: 479 pessoas. Todavia, a associação ambientalista Global Witness foi olhar para a lista de participantes na cimeira divulgada pela ONU e concluiu que, entre todos os participantes, se encontram 503 pessoas com ligações ao lóbi da indústria dos combustíveis fósseis.

"A indústria de combustíveis fósseis passou décadas a negar e a atrasar uma ação real sobre a crise climática, e por isso é que é um problema tão grande"
, explicou à publicação Murray Worthy, da Global Witness. "A influência deles é uma das maiores razões pelas quais 25 anos de negociações climáticas da ONU não levaram a reduções reais das emissões globais".

Das 503 pessoas identificadas por estarem, de alguma forma, associadas à industria de combustíveis fósseis, a Global Witnesse descobriu que alguns são membros das delegações do Canadá e da Rússia e que o "lóbi os combustíveis fósseis" na COP26 é maior do que o total de representantes das oito delegações dos países mais afetados pelo aquecimento global.

Sabe-se ainda que estão na COP26 mais de 100 empresas ligadas aos combustíveis fósseis, e pelo menos 30 associações comerciais e organizações associadas a essa industria. O número de delegados deste "lóbi" é também superior ao número de membros indígenas da UNFCCC.

E, concluiu também a investigação, um dos maiores grupos identificados foi a International Emissions Trading Association (IETA), com 103 delegados presentes, incluindo três pessoas da empresa de petróleo e gás BP.

De acordo com a Global Witness, a IETA é apoiada por grandes empresas de petróleo que promovem a compensação e o comércio de carbono como uma forma de permitir que se continue a extrair petróleo e gás.

"Esta associação tem um número enorme de empresas de combustíveis fósseis como membros. A sua agenda é impulsionada por empresas de combustíveis fósseis e atende aos interesses das empresas desta industria", referiu Worthy.

"Estamos a assistir à apresentação de falsas soluções que parecem ser uma ação climática, mas na verdade preservam o ‘status quo’ e impedem-nos de tomar medidas claras e simples para manter os combustíveis fósseis no solo que sabemos serem as verdadeiras soluções para a crise climática".

A IETA afirma que existe para encontrar os meios mais eficientes com base no mercado para reduzir as emissões. Os membros incluem empresas de combustíveis fósseis, mas também uma série de outros negócios.

"Empresas como a Shell e a BP estão dentro dessas negociações, apesar de admitirem abertamente que aumentaram a sua produção de gás fóssil", lamentou também Pascoe Sabido, do Corporate Europe Observatory.

"Se estamos a falar a sério sobre aumentar a ambição, então o lóbi dos combustíveis fósseis devia ser excluído das negociações".

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