COP26 limita participação de sociedade civil, mas maior delegação da cimeira é da indústria de combustíveis fósseis
Os países em desenvolvimento têm alertado, cada vez com mais frequência, para o facto de serem, "injustamente", os alvos dos impactos da inação dos países ricos, no que toca a reverter alguns dos efeitos das alterações climáticas ou a pelo menos evitar que as temperaturas globais aumentem mais de 1,5.ºC. E, nesta segunda-feira em que se dá início à segunda semana da cimeira climática da ONU, vários grupos de comunidades vulneráveis, indígenas, ativistas e membros da sociedade civil criticam as restrições no acesso e na participação nas negociações. Paralelamente, foi revelado que a maior delegação presente na COP26 é a de representantes da indústria dos combustíveis fósseis, o que leva os especialistas a questionar a legitimidade deste evento mundial.
O documento deverá incluir metas concretas para o corte das emissões de dióxido de carbono e para o aumento do investimento público no combate, mitigação e adaptação às alterações climáticas. Mas as negociações continuam a decorrer à porta fechada, tendo por isso sido questionada a legitimidade da COP26 por participantes da sociedade civil, que consideram que as restrições ao acesso às negociações são "inéditas e injustas".
Membros de centenas de organizações ambientais e académicas, de justiça climática, de comunidades indígenas e de grupos de direitos das mulheres, que estão como observadores das negociações da COP26, afirmam que serem excluídos das negociações pode ter consequências nefastas para milhões de pessoas.
"As vozes da sociedade civil são fundamentais para o resultado da COP26, mas não temos sido capazes de fazer o nosso trabalho. Se a participação e a inclusão são a medida de legitimidade, então estamos num terreno muito instável", disse ao Guardian Tasneem Essop, diretor executivo da Climate Action Network (CAN), que representa mais de 1.500 organizações em mais de 130 países.
De acordo com os observadores, a situação foi mais crítica nos primeiros dois dias de encontros de líderes, na semana passada, quando cada organização podia apenas ter dois representantes a participar, quando estavam a decorrer eventos diferentes em seis salas de negociação, em simultâneo.
Além disso, na edição deste ano da cimeira climática da ONU as estações de trabalho, os gabinetes e até as zonas de alimentação também foram isoladas, de forma a impedir que os observadores tenham contacto direto com os negociadores.
"Este é um nível de restrições sem precedentes", referiu Sebastian Duyck, do Centro de Direito Ambiental Internacional. "É alarmante, porque as relações que estabelecemos no início da cimeira são cruciais para o trabalho que fazemos depois. A participação limitada afeta a credibilidade da COP26".
Nos últimos dias, contudo, o acesso deixou de ser tão limitado, podendo já haver um observador de cada organização ou grupo em cada evento que esteja a decorrer, se houver espaço suficiente de acordo com as regras de distanciamento social. Ainda assim, estes grupos consideram que a sua participação continua limitada.
"Há um risco real de que as decisões tomadas nessas salas afetem os direitos humanos da maneira mais dramática, como já vimos acontecer no mecanismo de comércio de carbono de Kyoto. Se optarem por uma medida incorreta, é quase impossível alterar depois. A escala dos mercados de carbono significa que há uma ameaça maior para as comunidades", adiantou Duyck.
Os observadores dizem estar particularmente preocupados com as negociações sobre os protocolos de comércio de carbono, à medida que os governos e as corporações tentam alcançar compromissos líquidos zero através de compensações. Esta é uma grande preocupação para as comunidades indígenas, que representam seis por cento da população global, mas protegem 80 por cento da biodiversidade do planeta.
"Sem as nossas vozes, está em risco a criação de regras que continuarão a violar os direitos humanos, territoriais e espirituais dos povos indígenas", explicou Eriel Deranger, um observador da Ação Climática Indígena.
Em resposta às críticas, o Governo do Reino Unido confirma os desafios sem precedentes devido à pandemia da Covid-19 e às regras de saúde pública. Contudo, a organização tentou colmatar esses desafios na participação de mais membros da sociedade civil criando um plataforma online onde muitos dos representantes dos grupos e ONG’s podem assistir aos trabalhos da COP26.
Mas as críticas mantêm-se. Segundo Hellen Kaneni, da organização Corporate Accountability, o acesso virtual tem sido alvo de muitas “falhas técnicas” o que o torna num “pesadelo logístico”.
"A cimeira climática nunca foi confiável, mas este ano está muito pior, o acesso foi limitado de muitas maneiras, é horrível", acrescentou Kaneni.
O sucesso da COP26 só será de facto avaliado nos próximos anos. Mas, na opinião de Nathan Thanki da Demand Climate, a legitimidade desta cimeira está a ser muito prejudicada pelas restrições de acesso e a forma como os países ricos usam a COP26 para fazer anúncios que fazem capas de jornais mais que que não se incluem no quadro de compromisso e revisão da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima).
“É impossível controlar estes anúncios, o que significa que não há responsabilidade para a sociedade civil ou para outros países. Essa é a situação lamentável nesta cimeira”.
Se por um lado é questionada a legitimidade da cimeira climática da ONU com a falta de representatividade de vários grupos da sociedade civil e de comunidades mais vulneráveis às alterações climáticas, por outro lado é revelado que a maior delegação presente na COP26 é a da industria dos combustíveis fósseis.
Estão presentes na COP26 um total de 503 delegados com ligações à indústria dos combustíveis fósseis — um número muito superior ao de qualquer delegação nacional presente na cimeira. Segundo a publicada na BBC, esses delegados representam o lóbi das indústrias de petróleo e gás, e os ativistas consideram deviam ser proibidos de participar na cimeira climática.
"A indústria de combustíveis fósseis passou décadas a negar e a atrasar uma ação real sobre a crise climática, e por isso é que é um problema tão grande", explicou à publicação Murray Worthy, da Global Witness. "A influência deles é uma das maiores razões pelas quais 25 anos de negociações climáticas da ONU não levaram a reduções reais das emissões globais".
Das 503 pessoas identificadas por estarem, de alguma forma, associadas à industria de combustíveis fósseis, a Global Witnesse descobriu que alguns são membros das delegações do Canadá e da Rússia e que o "lóbi os combustíveis fósseis" na COP26 é maior do que o total de representantes das oito delegações dos países mais afetados pelo aquecimento global.
Sabe-se ainda que estão na COP26 mais de 100 empresas ligadas aos combustíveis fósseis, e pelo menos 30 associações comerciais e organizações associadas a essa industria. O número de delegados deste "lóbi" é também superior ao número de membros indígenas da UNFCCC.
E, concluiu também a investigação, um dos maiores grupos identificados foi a International Emissions Trading Association (IETA), com 103 delegados presentes, incluindo três pessoas da empresa de petróleo e gás BP.
De acordo com a Global Witness, a IETA é apoiada por grandes empresas de petróleo que promovem a compensação e o comércio de carbono como uma forma de permitir que se continue a extrair petróleo e gás.
"Esta associação tem um número enorme de empresas de combustíveis fósseis como membros. A sua agenda é impulsionada por empresas de combustíveis fósseis e atende aos interesses das empresas desta industria", referiu Worthy.
"Estamos a assistir à apresentação de falsas soluções que parecem ser uma ação climática, mas na verdade preservam o ‘status quo’ e impedem-nos de tomar medidas claras e simples para manter os combustíveis fósseis no solo que sabemos serem as verdadeiras soluções para a crise climática".
A IETA afirma que existe para encontrar os meios mais eficientes com base no mercado para reduzir as emissões. Os membros incluem empresas de combustíveis fósseis, mas também uma série de outros negócios.
"Empresas como a Shell e a BP estão dentro dessas negociações, apesar de admitirem abertamente que aumentaram a sua produção de gás fóssil", lamentou também Pascoe Sabido, do Corporate Europe Observatory.
"Se estamos a falar a sério sobre aumentar a ambição, então o lóbi dos combustíveis fósseis devia ser excluído das negociações".