Como um ato colonial do século XX empurra o enclave de Gaza para a guerra

por Carla Quirino (jornalista), Sara Piteira (grafismo) - RTP
Yara Nardi - Reuters

Gaza tem um longo histórico de conflitos, tendo estado sob o domínio de vários impérios. Quando o reinado do Império Otomano terminou após a I Guerra Mundial, o território tornou-se parte do mandato da Liga das Nações da Palestina sob o domínio britânico. A Declaração Balfour de 1917 preconizou alterações geográficas significativas nestes territórios do Médio Oriente.

Ao longo dos séculos esta região tornou-se um mosaico complexo de ramificações históricas, religiosas e culturais, enquanto que a zona costeira foi sempre cobiçada pelos impérios antigos fazendo parte das rotas comerciais e marítimas do Mediterrâneo.

Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Israel foram consideradas as terras do reino judaico na Bíblia Hebraica mas acabaram nas mãos do Império Otomano no século XVI.
Gaza
A Faixa de Gaza ou Gaza é um dos dois territórios palestinianos, sendo o outro a Cisjordânia, a norte de Jerusalém. No meio estende-se o Estado hebraico de Israel.

Gaza, de maioria islâmica, torna-se um enclave encaixado entre as fronteira israelita, o nordeste da Península do Sinai egípcia e o mar Mediterrâneo.

Ocupa uma faixa de terra retangular com menos de 400 quilómetros quadrados e conta com perto de 40 quilómetros de comprimento e dez de largura. É lar de aproximadamente 2,3 milhões de pessoas colocando Gaza no topo das regiões mais densamente povoadas e empobrecidas do mundo.
Ato colonialista com Gaza a passar de mão em mão 
Com a derrota do Império Otomano na I Guerra Mundial, o território passou para as mãos do Reino Unido.

A 2 de Novembro de 1917, o então secretário dos Negócios Estrangeiros britânico, Arthur Balfour, escreveu uma carta dirigida a Lionel Walter Rothschild, personalidade de prestígio da comunidade judaica britânica.

A carta ficou conhecida como Declaração Balfour e antevia alterações geográficas significativas para os territórios no Médio Oriente.

A Declaração Balfour dava à Grã-Bretanha a tarefa de estabelecer um “lar nacional na Palestina para o povo judeu". Os nativos árabes palestinianos, que representavam mais de 90 por cento da população, receberam mal esta decisão.

Gaza foi ocupada pelo Reino Unido entre 1918 e 1948. Durante esse período, os britânicos facilitaram a imigração judaica em massa, para dentro dos territórios da Palestina. Muitos dos novos residentes também fugiam do nazismo na Europa.

Em abril de 1936, o recém-formado Comité Nacional Árabe incentivou os palestinianos a boicotarem os produtos judaicos para protestar contra o colonialismo britânico e a crescente imigração judaica. Estas manifestações foram reprimidas por Londres que lançou uma campanha de prisões em massa e levaram a cabo demolições punitivas de casas.

Entre 1945 e 47 a população judaica tinha aumentado para 33 por cento da Palestina, mas possuíam apenas seis por cento das terras.

No pós-II Guerra, em 1947, a ONU votou a favor da divisão da Palestina em estados judeus e árabes separados, com Jerusalém a tornar-se uma cidade internacional. Foi adotada a Resolução 181.

Em 1948, é declarado a condição de Israel como Estado, implantando-se no meio da Palestina. Para os judeus, estes amplos territórios eram a sua casa ancestral, mas os árabes palestinianos também reivindicaram a terra, opondo-se à mudança.

O Egito, a Jordânia, a Síria e o Iraque invadiram o território recém-criado, enquanto que cerca de 750 mil palestinianos fugiram para países vizinhos ou foram expulsos pelas tropas israelitas.

Para os palestinianos teria começado a Nakba, que designa "destruição" ou "catástrofe" e corresponde ao início da tragédia nacional.

Após a primeira guerra árabe-israelita nesse ano, as forças egípcias entraram em Gaza e esta passou a ser controlada pelo Egito, entre de 1948 a 1967.

Na Guerra dos Seis Dias de junho de 1967, Israel assumiu o controlo da Faixa de Gaza, ocupando-a durante os 27 anos seguintes. O Estado hebraico absorveu também a Cisjordânia à Jordânia.

Após os Acordos de Oslo em 1994, Israel transferiu a governação de Gaza para a Autoridade Palestiniana (AP). Porém, as tensões persistiram, desencadeando revoltas violentas como a Intifada.
Gaza sob o jugo israelita
Durante os 38 anos de controlo, o Governo israelita construiu 21 assentamentos judaicos. Esta ocupação na Faixa de Gaza provocou confrontos entre os que lá habitavam e os colonos. Desencadeou-se a primeira intifada, da qual resultou quase quatro anos de derrame de sangue constante.

Em 1992 primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin expressa: “Gostaria que Gaza afundasse no mar, mas isso não vai acontecer e é preciso encontrar uma solução”.

Um ano depois, as negogiações conhecidos como Acordos de Oslo entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina visavam cumprir o “direito do povo palestiniano à autodeterminação”.

Em 1994, os palestinianos assumiram o controlo como autoridade governamental de Gaza.

O primeiro-ministro Ariel Sharon em 2003, desmantelou os assentamentos israelitas no enclave.

Em 2005, sob pressão interna e internacional, Israel desistiu do controlo da Faixa de Gaza e retira nove mil colonos e as forças militares israelitas do território.

Recorde-se que nos últimos 50 anos, Israel construiu colonatos no outro território palestiniano- a Cisjordânia, e em Jerusalém Oriental, onde vivem actualmente mais de 600 mil judeus.

Os colonatos são considerados ilegais ao abrigo do Direito Internaciona
l - essa é a posição do Conselho de Segurança da ONU e do governo do Reino Unido, entre outros - embora Israel rejeite esta ideia.
E quem passa a governar Gaza

A primeira revolta ou intifada palestiniana remonta a 1987. Tudo começou em dezembro desse ano, após um acidente de trânsito que envolveu um camião israelita. Na colisão o veículo pesado embateu num carro que transportava trabalhadores palestinianos no campo de refugiados de Jabalya, em Gaza, matando quatro pessoas. Seguiram-se protestos palestinianos, arremessaram-se pedras e desencadearam-se greves.

Neste clima de raiva, a Irmandade Muçulmana, sediada no Egipto, criou um ramo armado palestiniano, o Hamas, sediado em Gaza.

O Hamas tornou-se num dos dois principais partidos políticos nos territórios palestinianos e defende desde o início a destruição de Israel e a restauração do domínio islâmico no que considerava como a Palestina ocupada.

Um rapaz palestiniano vestido com um fato militar segura uma arma de brincar durante um comício que assinala o 25º aniversário da fundação do Hamas, na cidade de Gaza, a 8 de dezembro de 2012. | Foto: Ahmed Jadallah - Reuters (arquivo)

Quando os acordos de Oslo foram negociados nos anos 90, o partido do Hamas entrou em confronto com os restantes líderes da Palestina, nomeadamente o partido Fatah, que dominava a Palestina desde a década de 1950.

Em 2006 a população de Gaza é convocada para escolher os próximos governantes. O Hamas obteve a maioria nas eleições e já como Governo, desde então, não permitiu que houvesse mais nenhum escrutínio.

A visão política extremista do partido do Hamas desencadeou um bloqueio por parte de Israel e do Egipto ao mesmo tempo que eclodia uma guerra civil Fatah-Hamas, que durou meses, resultando na morte de centenas de palestinianos.

Em junho de 2007, o Hamas assumiu o controlo total de Gaza, afastando o partido Fatah do enclave que assumiu apenas o Governo da Cisjordânia.

A Fatah era uma das fações mais fortes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e reconhecia o direito de existência de Israel, onde se destaca o papel do lider palestiniano e detentor do Nobel da Paz, Yasser Arafat (1929-2004).

Por sua vez, a maioria dos países ocidentais considera o partido Fatah como um representante da Palestina.

Porém, no sentido inverso, o grupo militante islâmico Hamas - que demonstrou estar empenhado na destruição do Estado hebraico - foi designado como grupo terrorista por Israel, pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pelo Reino Unido, entre outras nações.
Hamas – Israel: Tensão acumulada versus bloqueio de 16 anos
Se por um lado Israel terá alegadamente desistido do controlo da Faixa de Gaza, por outro manteve um bloqueio terrestre, aéreo e marítimo ao enclave, desde 2007.

Desta asfixia resulta um empobrecimento e dependência dos palestinianos que foi notado pelas Nações Unidas. Em 2009, a ONU adverte Israel e o Egipto por estarem a “devastar os meios de subsistência” e a causar um “subdesenvolvimento” gradual em Gaza. 

Israel argumentou que o bloqueio existia para garantir o controlo da fronteira de Gaza, impedir o fortalecimento do Hamas e proteger os israelitas dos ataques palestinianos.

A ONU estima que o bloqueio já custou à economia do enclave quase 17 mil milhões de dólares ao longo da última uma década.


O Comité Internacional da Cruz Vermelha afirma mesmo que esta obstrução viola as Convenções de Genebra. As autoridades hebraicas rejeitam tais acusações.

Entre os dois milhões de pessoas, a ONU aponta que perto de 1,4 milhões de residentes da Faixa de Gaza são refugiados palestinianos.
Vulnerabilidade de Gaza
As estatísticas do Banco Mundial o território tem uma das taxas de desemprego mais elevadas do mundo, cerca de 80 por cento da população depende da ajuda internacional para sobreviver e ter acesso a serviços básicos.

“Durante pelo menos a última década e meia, a situação socioeconómica em Gaza tem estado em declínio constante”, afirma a ONU. 

“Restam agora muito poucas opções para o povo de Gaza, que tem vivido sob punição coletiva como resultado do bloqueio que continua a ter um efeito devastador à medida que o movimento de pessoas de e para a Faixa de Gaza, bem como o acesso aos mercados , permanece severamente restrito”, acrescenta.

Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras descreve as condições de vida em Gaza como desoladoras onde 95 por cento da população não tem acesso a água potável - tornando o território mais vulnerável por depender, não só da água, mas também de produtos alimentares e eletricidade de Israel.

Como atividade económica, pratica-se alguma agricultura juntamente com a indústria ligeira e o artesanato. Muitos residentes atravessam diariamente a fronteira para Israel para trabalhar. Porém, devido a restrições, não podem pernoitar.
Vista geral de Gaza em 2021. | Foto: Mohammed Salem - Reuters (arquivo)

De acordo com o Gabinete Central de Estatísticas Palestiniano, Gaza registou uma taxa de desemprego de 46,4 por cento no segundo trimestre de 2023, em comparação com 13,4 por cento na Cisjordânia.

As restrições de Israel à circulação de pessoas e bens foram citadas como um dos factores-chave para o baixo estatuto económico de Gaza.

A UNICEF estimou que em Gaza existam cerca de um milhão de menores a viver. Isso implica que metade da população sejam crianças. De acordo com a relatório da Deutsche Welle, a emissora internacional alemã, 40 por cento da população tem menos de 15 anos.
Repetem-se os problemas
As negociações de paz entre Israel e Palestina foram realizadas intermitentemente desde a década de 1990, mas fracassaram em 2014.

Os problemas repetem-se: o que fazer com os refugiados palestianos, a remoção ou permanência dos colonatos judaicos na Cisjordânia ocupada, a partilha de Jerusalém e o levantamento do bloqueio a Gaza? Há muito que se discute a possibilidade de um Estado palestiniano lado a lado com Israel. Sem efeitos práticos.
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