Como Mário Soares ignorou um convite de "Che" Guevara

por Texto: António Louçã. Imagem: Carlos Oliveira

José Fernandes Fafe, recentemente falecido, foi o primeiro embaixador português em Havana depois do 25 de Abril. O filho, José Paulo Fafe, viveu em Cuba de 1975 a 1978, e manteve desde então um contacto frequente com o país caribenho. No cinquentenário do assassínio do "Che", entrevistámo-lo sobre o lendário guerrilheiro argentino e cubano.

Uma das histórias transmitidas na tradição familiar é a de uma viagem a Cuba que em 1964 fizeram José Fernandes Fafe, futuro embaixador, e Mário Soares, futuro primeiro-ministro e presidente da República.

Na altura não tinham ainda o protagonismo que a História viria depois a conferir-lhes a ambos, em especial a Mário Soares. Eram, mesmo assim, dois intelectuais prometedores, um advogado e um escritor, com um começo de notoriedade que despertou o interesse da Embaixada cubana em Lisboa - essa que nunca chegou a ser encerrada, mesmo depois de os "barbudos" tomarem o poder. E foi a Embaixada que os convidou para uma viagem em Cuba, longa de um mês.

A viagem de Mário Soares e José Fernandes Fafe está relacionada com o "Che", porque este, então ministro da Indústria, lhes fez chegar o convite para um encontro. O interesse do "Che" em promover o encontro com dois visitantes que nesse tempo ainda não passavam de ilustres desconhecidos compreende-se à luz da atenção que sempre dedicou à luta de libertação nas colónias portuguesas. Eventualmente procuraria também informação sobre as perspectivas na metrópole colonial.

O facto é que Mário Soares não achou prioritário responder ao convite e dissuadiu Fafe. Seriam talvez os encantos de Varadero, mas também haveria na displicência de Soares alguma coisa dessa desconfiança que tinha manifestado perante o seu companheiro de viagem relativamente a uma revolução que não trilhava os caminhos do parlamentarismo.

De qualquer modo, a displicência não equivalia a uma recusa de princípio. No dia seguinte, Soares e Fafe lá procuraram o ícone maior do século XX, que entretanto partira para o estrangeiro em obediência a uma agenda densa e cerrada.

Curiosamente, décadas depois, já com um estatuto de figura histórica, Soares seria muito menos displicente em relação a Hugo Chávez, com quem se encontrou e dialogou cordialmente. A oportunidade para uma reunião com o "Che", pelo contrário, não ia repetir-se.

Apesar de este episódio o ter impedido de travar conhecimento pessoal com o "Che", José Fernandes Fafe foi consolidando no ambiente cultural português uma reputação de observador informado e atento sobre a realidade cubana.

Em outubro de 1967, ao ser conhecida a notícia da morte do "Che", o director literário das Edições Europa-América, João Palma Ferreira, ainda sob o efeito de choque dessa notícia, dirigiu-se a Fafe com a proposta de que escrevesse uma biografia do líder revolucionário assassinado.

Para protecção do autor e do livro, ponderaram a escolha de um pseudónimo. Palma Ferreira sugeriu o pseudónimo "David Bronstein". Fafe objectou que seria uma homenagem demasiado transparente a Leon Trotsky, e acabou por escolher "David Allport". Mesmo assim, quando o livro ficou concluído, autor e editores deitaram contas à vida e concluíram que ele seria apreendido logo que surgisse nas livrarias.

Lyon de Castro renunciou portanto à publicação pela Europa-América. Mas, por realmente lhe agradar o livro, e talvez também para compensar o autor, comprometeu-se a procurar alguma editora estrangeira que pegasse nele. Acabou por ser a famosa Mondadori, de Itália.

Foi publicado precisamente um ano após a morte do "Che" e ganhou fama de ser a primeira biografia que sobre ele se imprimiu. Fafe, com uma modéstia que lhe era própria, relativizou sempre esse galardão, dizendo apenas que era a primeira que ele conhecia, mas não podia garantir que não tivesse existido, por esse mundo fora, alguma outra que tivesse vindo a público sem o seu conhecimento durante o primeiro ano sem o "Che".

Depois do 25 de Abril, José Fernandes Fafe foi o primeiro embaixador português em Havana. O tempo que aí viveu com a família coincide com a ida para Cuba de Ernesto Guevara Lynch, o pai do "Che", que aí ficou a viver com sua mulher e com os filhos entretanto nascidos desse segundo casamento. Por qualquer motivo, criou-se uma relação de amizade entre o embaixador Fafe e Guevara, que viera para residir em Havana.

José Paulo Fafe, à data com os seus 14 anos, recorda o fascínio pela figura do "velho Guevara", que valia por si próprio como contador de histórias e também como espírito rebelde, sempre pronto a indignar-se com as injustiças ou os absurdos burocráticos que desvirtuavam a revolução cubana. As recordações que guardou são de um Guevara que se orgulhava do filho, mas que não vivia à sombra do parentesco nem fazia dele um tema privilegiado das suas conversas. Algumas das histórias que o jovem Fafe lhe ouviu relatar vieram contudo a achar-se num livro que o pai publicou sobre o filho.

Nos caminhos e descaminhos que levou a revolução, a presença do "Che" manteve-se constante e a sua figura continuou sempre a ser venerada pelo regime cubano, nota José Paulo Fafe como visitante assíduo do país.

Essa presença, mais do que um tema de reflexão e estudo, constitui uma idolatria - e uma fonte de receita. A marca "Che" vende, para além de todas as contradições que aí se possa detectar com o Leitmotiv que levou o líder guerrilheiro a correr mundo.

A imagem do "Che" que perdura em Cuba não é a do internacionalista indomável, que terá tido algumas divergências com Fidel, e por isso partiu de Cuba, e sim a de uma figura tutelar do regime. Não há, nota Fafe, espaço para se ter noção das contradições internas na liderança cubana, tal como elas são apreendidas desde um ponto de observação mais distanciado.









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