Cimeira em Astana. China e Rússia investem em ordem mundial alternativa ao Ocidente
Vladimir Putin e Xi Jinping celebraram esta quarta-feira o "melhor período" de relações entre os seus países, ao voltar a encontrar-se em Astana, capital do Cazaquistão, um mês e meio depois da visita do presidente russo a Pequim.
Os dois chefes de Estado expressaram alegria por se reverem, na véspera da cimeira da Organização de Cooperação de Xangai [OCS na sigla inglesa], formada pela Rússia e pela China com diversos aliados euroasiáticos, para contrariar a "hegemonia" norte-americana nos assuntos mundiais. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, estará presente nesta 24ª Reunião do Conselho de Chefes de Estado da OCS, sinal da importância crescente da organização.
Vladimir Putin sublinhou, aliás, esta quarta-feira, que a OCS "se afirmou como um dos pilares de uma ordem mundial multipolar justa".
Ao dirigir-se a Xi Jinping, Putin deixou igualmente clara a sua satisfação com o estado das relações sino-russas, "que atravessam o melhor período da sua história".
"Elas fundam-se nos princípios da igualdade, de benefício mútuo e de respeito pela soberania de cada um", afirmou o presidente russo, acrescentando que a cooperação mútua se tem revelado "um fator chave na estabilização" de questões globais e insistindo que a cooperação bilateral "não é dirigida contra ninguém" e que Moscovo e Pequim não criam "blocos ou alianças".
Desde a invasão russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022, que Moscovo tem procurado reforçar os laços com Pequim. Os dois Estados declararam na altura uma parceria "sem limites" que têm vindo a aprofundar em diversos domínios. O intercâmbio comercial entre Moscovo e Pequim já terá ultrapassado os 200 mil milhões de euros segundo o porta-voz da Presidência russa, Dmitri Peskov.
Xi Jinping respondeu no mesmo tom de Vladimir Putin, admitindo estar "felicíssimo de rever o seu velho amigo".
Xi desejou que os dois países consolidem a sua amizade "pelas gerações futuras", "diante a situação internacional e da volatilidade mundial" e numa altura em que a China se prepara para assumir a presidência rotativa da OCS pelo biénio 2024-2025.
Ambos os líderes voltaram a falar sobre a Ucrânia e concordaram que as discussões sobre uma saída para a crise no leste da Europa que não inclua a Rússia não podem prosperar, segundo o porta-voz do Kremlin.
Putin e Xi têm já marcada nova reunião em outubro próximo, durante a cimeira de líderes dos BRICS, na cidade russa de Kazan.
O que é a OCS
Pequim e Moscovo acreditam que a influência ocidental do pós-guerra fria pertence ao passado, e que são necessárias alternativas, sobretudo face às recentes taxas aplicadas aos produtos chineses fortemente subsidiados, por parte tanto dos Estados Unidos como da União Europeia, e com a proibição de exportação da tecnologia ocidental para a China.
Também a ameaça securitária alegadamente sentida pela Rússia se agravou nos últimos meses.
Se os EUA consideram a China o seu maior rival económico, vêem a Rússia como a maior ameaça à ordem internacional.
O presidente norte-americano, Joe Biden, tem mesmo dito que o atual século assistirá à luta entre as alternativas autocráticas e democráticas de organização social, considerando Xi um "ditador" e Putin "um assassino" e um "filho-da-mãe louco".
A OCS surge assim como um fórum para Pequim e Moscovo exercerem a sua influência e atraírem aliados, à semelhança dos BRICS.
"O principal é mostrar ao mundo que existem plataformas internacionais alternativas, outros centros de poder, onde os interesses de todos os Estados, sem exceção, são respeitados", comentou o presidente bielorrusso, Alexander Lukachenko, em entrevista à agência de notícias cazaque, Kazinform.
Alguns Estados com alianças no Ocidente são "parceiros de diálogo" com a OCS, incluindo a Turquia, o Bahrain, a Arábia Saudita, o Egito, o Kuwait, o Catar e os Emirados Árabes Unidos. Myanmar e o Nepal também integram também o grupo de parceria.
Apesar de não ser o país anfitrião, um comunicado do Kremlin referiu que, nesta cimeira, o tema incidirá no aprofundamento dos laços de cooperação dentro do grupo de forma a "melhorar as suas atividades".
Putin em busca de aliados
Para o lado russo, a questão dos conflitos na Ucrânia e em Gaza, assim como a Síria e o combate ao terrorismo, estará a centrar os encontros bilaterais desta quarta-feira.
Vladimir Putin procurou cimentar a influência oriunda da antiga potência soviética, tendo-se reunido com o primeiro-ministro do Paquistão, Shehbaz Sharif, e com os homólogos do Azerbaijão e da Mongólia, Ilham Aliyev e Ukhnaagiin Khurelsukh.
Putin encontrou-se ainda com Recep Tayyip Erdogan, o presidente da Turquia, Estado-membro da NATO e eterna candidata a integrar a União Europeia.
De acordo com a presidência turca, além de convidar Putin a visitar a Turquia, Erdogan ofereceu igualmente os seus bons ofícios a Putin para estabelecer pontes que ponham fim à guerra russa na Ucrânia, considerando possível chegar a uma paz justa para ambas as partes.
O Kremlin afirmou depois que a Turquia não pode ser intermediária no conflito.
O Kremlin afirmou depois que a Turquia não pode ser intermediária no conflito.
Moscovo tem estado a investir e a perder mais do que o previsto com a guerra ucraniana e, sancionada pelo Ocidente, tenta diversificar apoios. O Cazaquistão tem contudo adotado uma posição neutral no conflito e os restantes parceiros da Rússia na OCS mantêm distância, incluindo o aliado próximo, o Azerbaijão.
Exemplo das dificuldades do Kremlin, as agências estatais de notícias russas citaram esta quarta-feira o vice-primeiro ministro Alexander Novak, que afirmou que a Rússia está disponível para continuar a fornecer gás à Europa através da Ucrânia, uma rota que abastece sobretudo a Europa central.
"A Rússia está pronta a fornecer" gás, afirmou Novak. "O trânsito através do seu território depende da Ucrânia. Eles têm as suas próprias regras, depende do que desejam", acrescentou.
O acordo de trânsito em vigor permanece como único vestígio dos laços entre Moscovo e Kiev e expira a 31 de dezembro de 2024.
A Ucrânia já disse que não está interessada em prosseguir com o acordo e, em busca de parcerias de escoamento do seu gás para obter financiamentos, Putin estará a apostar na Índia, quando o primeiro-ministro indiano visitar Moscovo, no final de julho.
Pragmatismo chinês
Narendra Modi não vai estar presente em Astana, tendo-se feito representar pelo ministro indiano dos Negócios Estrangeiros, Subrahmanyam Jaishankar.
Também o recém-membro Irão estará representado pelo presidente em exercício, Mohammad Mokhber, depois da morte do seu presidente, Ebrahim Raisi, num acidente de helicóptero em meados de maio.
Já Xi Jinping demonstrou a sua faceta pragmática ao reunir-se também esta quarta-feira com o seu homólogo cazaque, para assinalar a partida de uma nova carga despachada através da Rota Internacional de Transporte conhecida como Corredor do Meio.
Com início no sudoeste asiático e na China, este Corredor atravessa o Cazaquistão, o Mar Cáspio, o Azerbaijão e a Geórgia, seguindo para territórios europeus sem passar pela Rússia, alternativa que prejudica o "velho amigo" mas que por isso mesmo é cada vez mais do agrado do Ocidente.
O Cazaquistão, principal economia da Ásia Central, tem vindo a figurar assim como aliado preferencial da China na OCS, apesar das apregoadas boas relações sino-russas.
Xi Jinping elogiou mesmo "a parceria estratégica eterna" entre Pequim e Astana, de acordo com uma carta publicada pelo jornal estatal Pravda do Cazaquistão.
Tão amigos que (não) somos
As origens da Organização de Cooperação de Xangai remontam a 1996, quando se iniciou a coordenação de esforços entre cinco Estados asiáticos contra ameaças externas, como contrabando de droga, e no controlo de quaisquer focos de instabilidade interna.
Nomeado Cinco de Xangai, o grupo integrava a China, a Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão.
O projeto depressa assumiu contornos políticos e a OCS cristalizou-se em 2001, sob impulso de Pequim e de Moscovo, pensada como uma plataforma de cooperação concorrente com as organizações ocidentais e de forma a contribuir para um mundo "multipolar", termo caro a Moscovo e a Pequim.
Além dos Cinco, acolheu então o Uzbequistão e depois a Índia e o Paquistão, em 2017.
Na verdade, a OCS serve como forma da China e da Rússia expandirem e garantirem a sua influência na Ásia, em detrimento da estratégia ocidental. A organização lembra que agrega 40 por cento da população mundial e que produz cerca de 30 por cento do PIB total do planeta.
Os Estados-membros dizem também basear os seus laços em confiança mútua, benefício mútuo, igualdade, consulta, respeito à diversidade das civilizações e busca de desenvolvimento comum, mas múltiplas questões ameaçam a sua coesão.
A Rússia e a China mantêm-se concorrentes economicamente, sobretudo na Ásia Central, região rica em hidrocarbonetos e crucial para o transporte terrestre de mercadorias entre a Ásia e a Europa. Também a Turquia, herdeira do Império Otomano, tenta cortejar os Estados da região.
Se a China tem estreitado laços através de projetos comuns económicos de desenvolvimento, essenciais para levar a bom termo o projeto de renovação da Rota da Seda lançado por Xi há mais de uma décadas, as relações de Pequim com outros pesos pesados da OCS, Índia e Paquistão, são por vezes tensas.
Aguardam-se as conclusões deste novo encontro, que terá o seu ponto alto esta quinta-feira.
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