É um feito inédito para a ciência e para a medicina. Pela primeira vez na história, os cientistas conseguiram editar o ADN de embriões humanos e eliminaram uma mutação genética, associada a uma doença cardíaca hereditária. Um desafio para as fronteiras da ciência e da ética, assinala a revista Nature, onde o estudo é publicado esta quarta-feira.
O feito, alcançado por uma equipa internacional de investigadores, alterou com sucesso o código genético de “dezenas de embriões humanos”, representando “um aperfeiçoamento significativo em eficiência e em precisão” em relação ao que tinha sido realizado até à data.
A revista Nature assinala que os resultados positivos foram alcançados por uma equipa internacional de investigadores, que recorreu à técnica CRISPR/Cas9 para reverter uma mutação ocorrida no gene MYBPC3, que afeta diretamente o músculo cardíaco.
A mutação em causa expressa-se através de doença conhecida por cardiomiopatia hipertrófica, uma das principais causas de morte súbita entre jovens. A cardiomiopatia hipertrófica é uma doença incurável e para a qual existem apenas tratamentos que reduzem os sintomas.
Trata-se, por isso, de um avanço na medicina da reprodução que poderá ter grande impacto, se aplicada, ao nível das doenças monogénicas, ou seja, as doenças hereditárias que se desenvolvem na presença de uma só mutação genética, nas quais se incluem as doenças autossómicas dominantes, cujo padrão hereditário prevê que apenas um dos progenitores tenha 50 por cento de probabilidade de transmitir o gene com mutação para que a doença se manifeste num descendente.
Aplicável a "mais de dez mil doenças"
O estudo conduzido pela equipa de investigadores aborda também questões levantadas por cientistas quanto à potencial utilização da técnica CRISPR-Cas9 na terapia genética em seres humanos, nomeadamente em resposta aos receios de alterações genéticas adicionais indesejadas ou o risco de gerar situações de mosaico, ou seja, em que diferentes células do embrião possam conter sequências genéticas diferentes.
O grupo de cientistas, liderado pelo norte-americano Shoukhrat Mitalipov, não registou qualquer mudança genética indesejada (mutações fora do alvo) e apenas notou a presença de um "mosaico" nos testes realizados em 58 embriões humanos.
Os peritos salientam que a mutação MUBPC3 em análise oferecia as melhores condições para a realização do estudo e as menores probabilidades de conduzir a alterações genéticas indesejadas.
No entanto, depois de aperfeiçoada e verificada, a edição de ADN em embriões pode dar aos cientistas a possibilidade de travar mais de dez mil doenças de cariz hereditário, entre elas alguns tipos de cancro da mama, cancro do ovário, a doença de Huntington, talassemia, fibrose cística, anemia falciforme ou mesmo alguns casos de Alzheimer.
"Apesar de esta ser a maior análise até à data de possíveis mudanças genéticas fora do alvo em embriões humanos, seria necessário desenvolver muito mais trabalho para definir com certeza se estas alterações acontecem ou não, neste contexto", salientou o especialista Keith Joung, em declarações à revista Nature.
Os peritos destacam que falta muito até aperfeiçoar e testar a técnicas até que estas possam ser equacionadas para o uso clínico com doentes ou embriões. No entanto, e mesmo quando for garantido ao máximo o método e a eficiência científicas, faltará debater as questões éticas que envolvem não só este tipo de investigação e as fronteiras do que pode ou não ser feito com recurso a este tipo de técnicas.
Um dos grandes receios é mesmo a utilização destas técnicas para fins que vão além da medicina ou do tratamento de doenças. Nos Estados Unidos, por exemplo, é proibído mobilizar fundos federais para a investigação científica com embriões humanos.
"Sempre dissemos que a edição de genes não deveria ser feita, sobretudo porque ela não podia ser feita de forma segura. Isso continua a ser verdade, mas este estudo demonstra que vamos conseguir fazê-lo muito em breve. Quando esses obstáculos técnicos forem ultrapassados, haverá questões sociais a serem consideradas e discussões que teremos de ter", refere Richard Hynes, que se dedica à investigação do cancro no MIT, em declarações ao New York Times.