Bruxelas.PT - Os tribunais da União Europeia

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 8 de março de 2024 | Foto: Tingey Injury Law Firm - Unsplash

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com Gonçalo Braga da Cruz, Assessor Jurídico no Tribunal Geral da União Europeia.

Os três tribunais da União Europeia
Quais são os tribunais que existem na União Europeia?

Existem três tribunais. Existe primeiro a Instituição Tribunal de Justiça da União Europeia, que inclui duas instâncias: o Tribunal Geral da União Europeia e o Tribunal de Justiça, propriamente dito.

Existe também o Tribunal de Contas da União Europeia, mas tem uma função muito específica – ao Tribunal de Contas não têm acesso diretamente os cidadãos – verifica a correta aplicação – correta em termos de boa administração – dos fundos da União Europeia, ou seja, investiga queixas contra instituições por má administração e funciona, no fundo, como um auditor externo da União Europeia: faz auditorias que avaliam a eficácia e a eficiência da utilização dos fundos da União Europeia. É um tribunal muito específico tal como existe, a nível nacional, um Tribunal de Contas em cada Estado-Membro.
O Tribunal Geral e o Tribunal de Justiça
O Tribunal de Justiça da União Europeia inclui, como eu disse, duas instâncias.

O Tribunal Geral, que é a primeira instância, foi criado em 1986 com o Ato Único Europeu e com dois objetivos: o primeiro foi o de criar um duplo grau de jurisdição que até a altura não existia, portanto, das decisões do Tribunal Geral há recurso – restringido em matéria de Direito – para o Tribunal de Justiça; e foi também criado com o objetivo de aliviar um pouco a carga de trabalho do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, como era assim chamado na altura, designadamente no contencioso na área da concorrência, por exemplo, ou na área do funcionalismo público europeu.

Ou seja, a Comissão adotava decisões na sequência de investigações, por exemplo, na área da concorrência, decisões essas que depois eram contestadas e considerou-se que deveria ser criado um duplo grau de jurisdição para uma melhor proteção dos cidadãos e das empresas e para não ficar tudo concentrado no Tribunal de Justiça.

Mas isso leva-nos à questão de que o tribunal decide sobre questões específicas relacionadas com decisões das instituições?

Exatamente. Essa é uma ótima questão, porque realmente tem que ficar bem claro que o Tribunal Geral da União Europeia não é um tribunal de recurso dos tribunais nacionais, ou seja, não é um tribunal para o qual se pode recorrer, por exemplo, na sequência de uma decisão de um tribunal nacional, não.

O Tribunal Geral da União Europeia é solicitado a partir de um ato de qualquer instituição, órgão ou organismo da União Europeia. Se quisermos, para simplificar as coisas, é um pouco como a escala nacional dos tribunais administrativos, que fiscalizam a atuação da administração.

Portanto, se alguém for prejudicado ou se sentir prejudicado por uma decisão de uma das instituições da União Europeia pode recorrer para o Tribunal da Justiça, começando pelo Tribunal Geral.

Exatamente, começa pelo Tribunal Geral, e depois poderá eventualmente recorrer, relativamente a questões de direito.
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
Essa é a diferença maior entre o Tribunal dos Direitos do Homem e o Tribunal de Justiça?


Exatamente, é uma diferença importante porque há duas diferenças, eu diria. Primeiro, o Tribunal Europeu de Direitos do Homem é de um âmbito muito específico, instituído pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem sede em Estrasburgo – ao contrário do Tribunal de Justiça da União Europeia, que tem sede no Luxemburgo – mas o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem fiscaliza a correta aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que é uma convenção no âmbito do Conselho da Europa que está aberta à ratificação pelos Estados que são membros do Conselho da Europa. E esses estados são não só os Estados-Membros da União Europeia, mas também outros como por exemplo a Suíça e o Reino Unido que aderiram à Convenção dos Direitos do Homem.

E é para esse tribunal que se pode recorrer de decisões dos tribunais portugueses?

Não é propriamente um recurso das decisões dos tribunais portugueses, ou seja, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é chamado a intervir depois de um processo nos tribunais nacionais e esgotadas todas as vias de recurso em Portugal, por exemplo. Ao nível nacional o processo termina mas a pessoa que se sente lesada nos seus direitos fundamentais – que estão consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e só relativamente a esses direitos (só entre aspas, porque é evidente que é muito importante) o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem intervém na área da defesa da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – por uma qualquer decisão de um tribunal português, e depois de esgotar as vias de recurso nacional, têm quatro meses para acionar o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para ver defendida essa alegada violação dos seus direitos consagrados na Convenção: por exemplo, a liberdade de expressão, a tortura ou maus tratos a pessoas detidas, deficiências no julgamento de um processo civil ou penal ou o atraso de um julgamento dentro de um prazo razoável.

Estas são questões que podem ser levadas ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e que podem levar a que o Estado em questão seja condenado, mas que não alteram a decisão, propriamente dita, que foi tomada na instância nacional.
Tribunal de Justiça da União EuropeiaMas voltemos agora ao Tribunal de Justiça da União Europeia, começando pelo Geral, como estava a dizer que é aquele para o qual as pessoas podem recorrer. Mas pessoas ou empresas?

O que tem que haver é uma decisão de uma instituição, um órgão organismo da União Europeia que afete uma pessoa ou uma empresa, por exemplo, para dar um caso concreto, uma decisão na área da concorrência – que são os processos, se calhar mais mediáticos – a Comissão Europeia faz uma investigação por práticas anticoncorrenciais, por abuso de posição dominante, ou outras situações, e adota uma decisão condenando uma empresa a uma multa por vezes muito avultada. Essa empresa à qual é dirigida diretamente a decisão pode recorrer para o Tribunal Geral da União Europeia.

Então são sobretudo empresas?

Sim, em grande parte, mas não só. Há um contencioso muito específico no qual os funcionários de qualquer instituição da União Europeia que se sintam lesados por uma decisão da administração também podem recorrer. Também, por exemplo, na área – que é uma área que não é muito mediática – do pedido de acesso a documentos das instituições – qualquer pessoa pode, invocando interesse especial, pedir um acesso a documentos da União Europeia, das instituições da União Europeia – que sendo recusado pode originar uma contestação junto do Tribunal Geral.

Uma outra área também, que está muito nos jornais hoje em dia, é a das sanções, das medidas restritivas no âmbito da Política Externa de Segurança Comum. Ouvimos falar muito, designadamente e por causa da guerra da invasão da Rússia à Ucrânia, das listas de empresas e de indivíduos sancionados e que são listas que são constantemente alteradas e nas quais se incluem pessoas e empresas às quais são aplicadas sanções, seja de congelamento de bens na União Europeia, seja de proibição de circulação na União. Essas pessoas podem também recorrer.

Mesmo sendo pessoas de fora da União Europeia?

Exatamente, desde que tenham sido alvo de uma sanção imposta pela União Europeia, por exemplo, se tiverem bens dentro do território de um Estado-Membro da União Europeia, esses bens podem ser congelados como é caso de contas bancárias.

Há também outra área, mais ligada aos negócios, que é a que se refere aos auxílios do Estado que é também uma área muito mediatizada, diria, desde a Covid-19 e também por causa da guerra na Ucrânia. O que é que são os auxílios de Estado? São todos os subsídios que os estados concedem às empresas, que, em princípio, são proibidos – porque afetam a concorrência, porque distorcem a concorrência – mas que em certas e determinadas condições são autorizadas pelo Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Essa autorização carece, em princípio, de uma aprovação da Comissão Europeia que deve considerar que essas essas medidas de auxílios estatais são compatíveis com o mercado interno. Foi o que aconteceu com as companhias aéreas porque altura da Covid todas as companhias aéreas da Europa foram afetadas e deixaram de ter atividade durante uma série de meses – e cada Estado-Membro apoiou determinadas companhias aéreas. Ora, em casos destes, as empresas concorrentes, que não receberam auxílios, também podem contestar essas medidas porque essas empresas são diretamente afetadas por uma medida de um auxílio a uma concorrente.
O processo
Recorrer ao tribunal tem custos, tem custas judiciais?

Não, os processos não têm custas, não há taxa de justiça. Mas, no entanto, a parte vencedora tem o direito de pedir o reembolso das despesas que teve - nomeadamente com advogados, por exemplo – mas custas, em si, não existem.

O processo que decorre pode ser posto em qualquer uma das línguas oficiais da União Europeia?

Pode ser em português, exatamente, qualquer língua oficial da União Europeia é uma língua oficial também para acesso ao tribunal – seja ao Tribunal Geral, seja ao Tribunal de Justiça.

Agora, o que há é uma especificidade que as pessoas podem não conhecer: por razões de simplificação de trabalho interno – os juízes têm que deliberar numa língua e era impossível que fosse um juiz esloveno a conversar com um juiz português e com um juiz francês ou um juiz sueco, cada um na sua língua – e porque quando os juízes deliberam e as liberações são secretas (não há intérpretes) teve que se estabelecer uma língua de trabalho que, por razões históricas, é o francês. Ou seja, o francês é a língua de trabalho. Nos tribunais da União Europeia, no Tribunal de Justiça e do Tribunal Geral, todas as decisões são redigidas em francês e depois traduzidas para a língua do processo.

Quem é que decide exatamente? Qual é o processo?

No Tribunal Geral há dois juízes por cada Estado-Membro, neste momento, que são depois divididos em secções de cinco ou seis juízes em cada secção.

Normalmente as formações de juízes, para cada processo, são formações de três juízes. Existe um juiz relator, que é quem propõe – depois de todo o processo escrito e da audiência (isto se houver audiência de julgamento porque não é obrigatória) – a decisão aos outros juízes. E são esses três ou cinco juízes, ou até mesmo 15 em secção plena, que decidem cada processo em primeira instância.

No Tribunal de Justiça, havendo recurso, tudo funciona basicamente da mesma forma: há formações de três juízes, cinco juízes ou a grande secção, consoante a importância do processo.

E pode um juiz português aceitar um caso português?

Teoricamente pode, mas não é comum. Há uma tentativa para o evitar – embora a atribuição dos processos seja feita de forma rotativa. Em princípio, portanto, os juízes portugueses não são chamados a ser juízes relatores do processo português e isto vale para qualquer nacionalidade.

Mas, por vezes, estão em formações de julgamento, onde são julgados casos relativos a uma decisão que afeta Portugal na área da agricultura, por exemplo.
Os pedidos de reenvio prejudicial
O que são os pedidos de reenvio prejudicial?

É um mecanismo muitíssimo importante, fortíssimo e de enorme eficácia e que consiste no seguinte: qualquer tribunal, mesmo de primeira instância, dos Estados-Membros pode decidir a suspensão da instância no tribunal nacional e colocar uma questão a título prejudicial ao Tribunal de Justiça.

Isto desde que essa questão tenha que ver com a interpretação de uma qualquer norma do direito da União Europeia. No ano passado, por exemplo, Portugal fez 28 pedidos de decisão prejudicial – que é, aliás e comparando com estados com a mesma população, um bom número. E porque é que este mecanismo é muito importante? Porque assegura que o direito da União Europeia é interpretado e aplicado pelos tribunais nacionais de uma forma uniforme.
O Provedor de Justiça da União Europeia
Existe também um Provedor de Justiça da União Europeia?

É um órgão muito específico e que investiga queixas contra instituições, por exemplo, por atrasos injustificados, por abuso de procedimentos, por não respeito de procedimentos ou por abuso de poder. A atuação da Provedoria de Justiça não tem a mesma força de um acórdão do Tribunal de Justiça mas tem muita importância. As instituições levam muito a sério estes pareceres da Provedoria de Justiça e, por vezes, a decisão sobre as queixas que são formuladas pelos cidadãos é alterada para poder ter em conta o parecer da Provedoria de Justiça.

A decisão do Tribunal de Justiça, final, é obrigatória para o Estado-Membro?

Exatamente. O que está consagrado no Tratado da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia é que os Estados-Membros decidiram abdicar da sua soberania atribuindo ao Tribunal de Justiça a competência exclusiva nas matérias que estão consagradas no tratado. E, portanto, as decisões do Tribunal de Justiça são obrigatórias em cada Estado-Membro.

Vamos supor que um Estado-Membro decide não cumprir uma decisão do Tribunal de Justiça. Nesse caso, a Comissão Europeia poderia abrir um procedimento de infração que poderia levar, em última instância, à aplicação de multas a esse Estado. Portanto, isso está perfeitamente claro e está também consagrado em toda a jurisprudência do Tribunal de Justiça: que as decisões são obrigatórias, incluindo as decisões a título prejudicial. E isso é inquestionável.

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