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Bruxelas.PT - Os Tratados em que se fundamenta a União Europeia

por Andrea Neves, correspondente da Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 23 de junho de 2023 | Foto: Dominique Hommel - © European Union 2016 - Fonte: EP

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com José Luís Pacheco, ex-chefe do Secretariado da Comissão dos Assuntos Constitucionais do Parlamento Europeu.

Os TratadosQuais são os Tratados, os documentos e acordos em que se fundamenta a União Europeia?

Como disse, e bem, a União Europeia fundamenta-se em Tratados. Todos os poderes que a União tem e todas as ações que desenvolve têm de se basear nos Tratados que foram acordados por todos os seus Estados-Membros. Cada novo Tratado introduziu alterações aos que já existiam, e o último foi o Tratado de Lisboa.

Normalmente as pessoas referem-se sempre ao Tratado de Lisboa, mas o Tratado de Lisboa não mudou tudo o que já existia. Este Tratado introduziu alterações que foram depois integradas e consolidadas. Existe uma versão consolidada dos Tratados que tem sempre em conta o último que entrou em vigor.

Atualmente, temos nessa consolidação o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que nasceram com o Tratado de Roma, e depois todos os que se seguiram, sendo os mais conhecidos o Ato Único Europeu – que surgiu antes da nossa adesão à então Comunidade Económica Europeia – o Tratado de Amesterdão e o Tratado de Nice, até que chegamos ao Tratado de Lisboa. Portanto, hoje em dia a versão atual dos Tratados, tal como consolidada, é aquela que resulta do Tratado de Lisboa.

Existem vários Tratados com vários anexos. Não existe uma peça única que se possa consultar com tanta facilidade, como a Constituição da República Portuguesa, por exemplo, o que leva, muitas vezes, a que os cidadãos, mesmo que queiram encontrar alguma coisa, tenham algumas dificuldades.

É verdade, embora a versão dos Tratados consolidados inclua tudo. Tem o Tratado da União Europeia, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e têm também uma série de protocolos anexos a cada um desses Tratados.

É evidente que era mais fácil termos um texto único e foi até nisso que se pensou quando se tentou fazer uma Constituição para a União Europeia. Mas não foi possível porque essa ideia foi rejeitada em França e nos Países Baixos. Embora seja de referir que também foi aceite em referendo em alguns outros países – algo que tendemos a esquecer – em Espanha, por exemplo.

Mas não foi possível de todo avançar com uma Constituição Europeia?

Formalmente não. Mas no que respeita à substância, se formos ver as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa aos anteriores Tratados, o facto é que muitas dessas alterações, com algumas modificações formais, correspondem àquilo que a Constituição Europeia previa.

Porque a Constituição Europeia também não foi redigida como sendo algo completamente novo. Baseou-se nos textos que já existiam dos Tratados que eu referi, introduziu alterações e fundiu tudo num documento único, que era o Tratado sobre a Constituição Europeia, o que deu, aliás, alguns mal-entendidos. De facto, muitas das questões que os anti-Constituição – digamos assim, não lhes quero chamar anti-europeus porque não é isso que significa – por vezes apontavam e recusavam, já estavam previstas e em vigor nos Tratados anteriores e continuaram, aliás, em vigor.

Mas como era um texto totalmente novo, não era possível distinguir o que era matéria nova e o que já existia, e muitas vezes foram utilizados argumentos com situações que, na verdade, já estavam previstas nos Tratados.

Mas isso leva-nos de novo àquela questão da complexidade.

É verdade. Mas eu também não tenho a certeza de que os cidadãos portugueses vejam todos os dias a Constituição da República Portuguesa, que, aliás é uma das mais extensas e articuladas que existem.

O problema aqui é que os Tratados são necessariamente mais complicados do que uma Constituição de um Estado único, porque quando foram redigidos foi necessário atender aos vários interesses de todos os Estados. Porque os Tratados são aprovados por unanimidade. E há sempre alguns aspetos que alguns Estados só aceitam se houver um determinado pormenor no texto. É por isso que a descrição das várias políticas da União é muito pormenorizada, é mais pormenorizada do que por exemplo na Constituição da República Portuguesa, que até já é bastante. Porque cada Estado tentou introduzir, como garantia daquilo que pretendia, certos aspetos, certos princípios e certos objetivos.

E, por isso, é natural a complexidade que existe quando se tenta juntar tantos Estados-Membros – 28 na altura, 27 neste momento e talvez até mais no futuro – num documento que satisfaça toda a gente. É natural que esse documento seja necessariamente complexo. Mas é possível ser guiado através da complexidade e compreender como as Instituições funcionam, porque os princípios básicos de funcionamento são fáceis.

Mas então a ideia de uma Constituição Europeia é algo que não se põe nos próximos tempos?

Bom, eu trabalho no Parlamento Europeu, onde há muita gente que o defende. Eu não creio que esteja na ordem do dia, por agora, mas veremos no futuro. Eu não colocava totalmente de parte dessa ideia, porque a ideia de simplificação e de facilitação – para que os cidadãos possam compreender como é que a União funciona – aponta nesse sentido.

Mas, de facto, já houve uma tentativa que não resultou, mais por razões políticas do que pelo seu mérito próprio. Não creio que tão depressa se vá tentar de novo.
A revisão dos TratadosMas da revisão dos Tratados tem-se falado bastante, até por causa da Conferência sobre o Futuro da Europa, onde os cidadãos disseram que querem mais do que aquilo que está previsto nos Tratados.

A revisão dos Tratados, segundo o método previsto atualmente no Tratado, penso que é algo que está relativamente na ordem do dia. De facto, os cidadãos que foram chamados a participar na Conferência sobre o Futuro da Europa acordaram em várias conclusões – e acordaram eles, as Instituições Europeias, os Governos dos Estados-Membros e os representantes dos Parlamentos Nacionais, é muito importante que se diga – que apontam no sentido da revisão.

Não é que os cidadãos tenham dito “nós queremos uma revisão dos Tratados, porque gostamos muito de revisões”, mas disseram “nós queremos uma política de saúde a sério na União Europeia, nós queremos mais competências no ensino, nós queremos que seja mais fácil decidir na União Europeia”, e para isso, é preciso abandonar a unanimidade, pelo menos em algumas áreas.

Mas para fazer isso, é preciso rever os Tratados porque os atuais não o permitem. Claro que há sempre modos escapatórios de fazer coisas. Por exemplo, os Tratados também não permitiam o que se fez sobre as vacinas, mas fez-se porque todos estavam de acordo.

Mas são processos complicados e é muito melhor – e mais transparente e mais democrático – ser o Tratado a definir como é que se faz e quando chegar a altura, se for necessário, fazer. Para isso é preciso rever os Tratados.
A regra da unanimidade
Falaremos sobre a Conferência sobre o Futuro da Europa numa outra conversa, mas agora só para darmos uma ideia, referimos que foi uma plataforma em que, durante um ano, os cidadãos se reuniram –presencialmente e também digitalmente – para chegarem a acordo sobre o que querem para o futuro da Europa e apresentaram várias propostas, como a de mudar a regra da unanimidade em algumas decisões.

Mas mudar os Tratados, e falando por exemplo desta regra da unanimidade, pode também ser um “pau de dois bicos”, porque se a unanimidade dificulta o entendimento também se pode dizer que no voto por maioria haverá sempre Estados a impor uma vontade a outros.

Bom, para já não vamos mudar os Tratados sem haver unanimidade. Para mudar os Tratados é preciso unanimidade e essa é a grande dificuldade, mas também é a grande garantia. Porque, por exemplo, há quem diga que “a União Europeia é quase uma ditadura, porque impõe decisões a partir de Bruxelas”. Mas a competência da União Europeia está nas mãos dos Estados-Membros, porque a União Europeia só pode fazer aquilo que está nos Tratados e estes só podem ser mudados por unanimidade.

E há outras decisões muito importantes, como os meios financeiros ao dispor da União Europeia, por exemplo, que também estão nas mãos dos Estados-Membros porque têm de ser definidos por unanimidade (e ratificação nos Parlamentos Nacionais). É o caso dos chamados Recursos Próprios da União.

Mas também é o caso da política externa que é muito importante, neste momento, porque toda a gente já percebeu que basta um Estado dizer que não quer sanções contra o Estado que está a agredir o nosso vizinho e já não é possível impor sanções.
Portanto, se isso for modificado é evidente que a partir daí, quem ficar em minoria perde. A maioria qualificada passa a ser suficiente para tomar uma decisão. Os que se opõem ficam em minoria, mas essa é a regra da democracia.

Mas não poderá ser um caminho aberto para o populismo?

Eu acho que compete às Instituições de Bruxelas, às Instituições Nacionais e à Imprensa explicar como é que tudo é feito.

Vai ser muito difícil mudar a regra de unanimidade que ainda existe porque há Estados que não querem, porque acham que o direito de veto os protege, a meu ver, de uma forma errada. Porque, ao contrário do que muita gente pensa, o direito de veto não significa necessariamente que são todos iguais porque nem todos têm a mesma capacidade para exercer o direito de veto. Portanto, o facto de, formalmente, todos terem o direito de veto não quer dizer que todos tenham a mesma capacidade de o exercer.

No meu entender, o que é essencial é que as decisões europeias sejam tomadas de acordo com os processos definidos nos Tratados e de modo democrático. Ou seja, que uma clara maioria dos Estados-Membros e uma clara maioria dos Deputados no Parlamento Europeu, que são os representantes dos cidadãos europeus, estejam de acordo.

Até porque são duas salvaguardas.

São duas salvaguardas e, portanto, há garantias suficientes. A democracia não significa que toda a gente está de acordo. Quando toda a gente está de acordo, não é preciso recorrer aos processos democráticos. Temos que recorrer aos processos de votação democrática quando nem todos estão de acordo.

E aí, normalmente, a regra é a de que a maioria vence e a minoria aceita, desde que a maioria respeite a minoria. Mas o Tratado tem garantias suficientes de que as minorias serão respeitadas, na minha opinião.

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