Bruxelas.PT - Os Planos de Recuperação e Resiliência

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 29 de dezembro de 2023 | Foto: Alain Rolland © European Union 2024 - Fonte : EP

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com Rui Henrique Alves, Professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto e ex-Coordenador do Núcleo de Economia e Finanças da Representação Portuguesa junto da União Europeia.

O que é o PRR e como se estrutura?

O plano é extremamente detalhado em termos daquilo a que se chama marcos e metas que definem o que se pretende obter de concreto em termos de reformas e em termos de investimentos. E à medida que esses marcos e essas metas vão sendo cumpridas periodicamente, o país reporta à Comissão Europeia e pode fazê-lo até duas vezes por ano, e em função desse cumprimento de marcos e de metas que estão calendarizados – portanto, está tudo muito, muito detalhado – a Comissão vai verificar se realmente está a ser cumprido o que foi comprometido e vai dizer se sim ou se não. Depois vai transmitir isso ao Conselho e o Conselho vai autorizar a Comissão a desembolsar ou não o dinheiro.

Aliás, esse dinheiro não vem todo junto.

Esse dinheiro vem em partes, à medida que as metas e os marcos vão sendo cumpridos ao longo do tempo.

É uma forma de obrigar os países realmente a cumprir aquilo a que se comprometeram.

Exatamente, por exemplo, só para termos uma ideia, o nosso plano inicial, que foi aprovado em julho de 2021 tinha um total de, mais ou menos, 16,6 mil milhões de euros e, até ao momento, os desembolsos que Portugal obteve da Comissão Europeia são de cinco mil milhões. Portanto, ainda estamos a menos de um terço desse montante.

Mas há um prazo para que se possa receber a totalidade…

Exatamente, depois temos esses constrangimentos: o regulamento que se aplica aos Planos de Recuperação e Resiliência diz que as ações – sejam reformas, sejam investimentos – a que o país se compromete devem estar definidas até ao final de 2023. E depois o dinheiro há-de ser gasto e, portanto, reembolsado. até final de 2026.

Portanto, há aqui, de facto, um prazo apertado e tem havido alguma discussão sobre se o prazo não é apertado demais e se, portanto, não devia ser alargado, até porque o cenário que nós tínhamos em 2021/2022 alterou-se substancialmente, quer com as ruturas das cadeias de abastecimento, quer com o aumento dos preços, quer com a guerra e portanto, discute-se se não deveria haver mais tempo para executar as reformas e sobretudo os investimentos.

Mas isso é algo que os países podem decidir alterar?

Sim, podem decidir alterar. Existe de facto essa discussão e até há, sobretudo no Parlamento Europeu, Eurodeputados portugueses que tem publicamente falado muito nessa hipótese que se calhar faria sentido. Até porque todos ao mesmo tempo a fazer isto no contexto que temos é suscetível de ajudar a aumentar a inflação e a dificultar a obtenção de materiais e de pessoas, etc.

E, portanto, eu admito que talvez mais próximo do fim do prazo – isto ainda não estará suficientemente maduro e agora ainda vai haver eleições para o Parlamento Europeu – esta vai ser uma questão que provavelmente se vai colocar. Eu diria que haverá alguma probabilidade de se aceitar que a execução vá um pouco para lá de 2026.

Há um problema principal: há quem diga que para isto se fazer, e como o NextGenerationEU legalmente tinha que ser aprovado por unanimidade, uma alteração deste género teria também que ser aprovada por unanimidade. Mas há quem diga – e no Parlamento Europeu há vozes nesse sentido – que isto é um Regulamento do Conselho e do Parlamento Europeu em processo legislativo ordinário e, portanto, só precisaria de maioria qualificada no Conselho. Se tiver que haver unanimidade, vai ser complicado.

Projetos concretos, investimentos concretos, mas não o que nos apetecer…

Exatamente, não o que nos apetecer.

Há objetivos claros, por exemplo, climáticos e digitais.

Sim, foi estabelecido que pelo menos 37 por cento do plano teria que corresponder a objetivos ligados com a transição verde e que pelo menos 20 por cento do programa teria que ter a ver com objetivos ligados com a transição digital.

E para além disso, tudo o que é o PRR deve estar alinhado com os grandes objetivos da União Europeia. Ou seja, basicamente, para além destas duas áreas – a transição verde e a transição digital – os grandes pilares em que ficou dividido, digamos assim o PRR – apesar dos outros não terem números associados – foram ainda as questões do crescimento inteligente, sustentável e inclusivo com o apoio, nomeadamente a pequenas e médias empresas, as questões, como sempre, da coesão social e territorial, as questões do reforço da capacidade no setor da saúde e na preparação para eventuais crises futuras. E foram também atuações ao nível da educação, da formação da infância e da juventude. Estes são os grandes campos de atuação do PRR.

Depois há uma parte verde e digital, mas em grande medida há também uma grande componente social e eu achei interessante o valor que a Comissão estima, por exemplo, para o caso do plano português – estamos a falar do original – em que a estimativa da Comissão é que a despesa que nós podíamos

considerar como tendo algum âmbito social era quase metade do programa. Ou seja, cerca de 44 por cento do programa envolvia despesa deste tipo.

Mas quando estamos a falar de despesa social não estamos a falar de apoio diretos às pessoas?

Não, mas estamos a falar de requalificações profissionais, por exemplo, de apoios que de algum modo vão ajudar a coesão social.

Não é para que as pessoas possam pagar renda ou possam pagar luz…

Não, e muito menos intervenção no que é agora o cerne da discussão que é a crise da habitação. Há coisas do PRR que tem a ver com isso, mas não é assim que funciona.

Para tudo isto, a Comissão teve que se endividar no mercado em nome dos Estados-Membros. É verdade que com sucesso, mas também vai ter que pagar este dinheiro.

Sim, eu não tenho acompanhado exatamente estas últimas atuações da Comissão, mas recordo-me das primeiras vezes que a Comissão foi ao mercado, foi um enorme sucesso na altura, sucesso no sentido de taxas de juro bastante baixas, procura muito superior à oferta. Foram, por exemplo, emitidos green bonds e também com imenso sucesso e portanto, as condições foram boas.

E agora é preciso também que se pague esse valor.

Está definido que – salvo algumas circunstâncias que agora se calhar por que não interessaram muito – o reembolso começaria em 2028, portanto, após o final deste atual Quadro Financeiro Plurianual e por um período longo, até 2058. Portanto, apesar de tudo, a amortização vai sendo feita de uma forma mais suave. Com que dinheiro? Bom, a parte dos empréstimos é fácil, porque quem pediu emprestado paga à Comissão e a Comissão devolve a quem emprestou.

A parte mais complicada, obviamente, é a parte a fundo perdido porque esse será pago através do Orçamento da União Europeia. O que é que poderá acontecer aqui? Eu diria uma de duas coisas: ou de facto há avanços significativos na tal discussão dos novos Recursos Próprios e se arranjam novas fontes de rendimento para o orçamento da União Europeia – que permita cobrir se não a totalidade pelo menos uma parte muito significativa dos reembolsos; ou temos a outra hipótese que é ou se aumenta a dimensão do Orçamento da União Europeia, o que significaria os países contribuírem mais, ou então – aquilo que eu temo como mais provável, se nós não conseguirmos ir pela via dos Recursos Próprios – é que algumas despesas da União Europeia vão ter que encurtar para se dar espaço a estes reembolsos a que se não vai poder fugir.

Quais são as despesas que são mais suscetíveis disso? Tipicamente, a Política Agrícola Comum e sobretudo a Política de Coesão, aquelas que são tidas como as políticas mais tradicionais da União Europeia.

A solução será cortar outras despesas ou aumentar a contribuição dos Estados-Membros ou, pergunto, entrar naquele ciclo perpétuo de fazer novos empréstimos para pagar empréstimos antigos?

Seria uma hipótese, mas tem dois problemas. Um é a tal ideia de que o orçamento da União Europeia, em cada ano, tem de estar equilibrado. Portanto é suposto que as receitas sejam iguais às despesas, e não é suposto estarmos a endividar-nos para que isto aconteça.

Em segundo lugar, porque há já uma forte discussão sobre se o NextGenerationEU é replicável para o futuro. Isto é, se este instrumento foi uma situação de uma vez só e não se vai repetir, ou se é possível repeti-lo para o futuro.

Mas condições concretas ou porque precisamos de dinheiro?

Basicamente, porque precisamos de dinheiro. Uma das vertentes da discussão, que, aliás, tem sido defendida por Portugal – e do meu ponto de vista corretamente – aliás, acho que há um consenso fundamental entre os principais partidos do poder em Portugal sobre isso: haver um instrumento permanente da União Europeia para responder a crises e, eventualmente, para ajudar ao investimento.

Um fundo soberano?

Pode ter as duas vertentes, chamemos-lhe o NextGenerationEU 2, ou o fundo soberano de que se chegou a falar, mas que afinal não apareceu.

Mas a verdade é que nós continuamos a ter uma União Europeia que tem um Orçamento anual de um por cento do seu PIB e, ao mesmo tempo, uma União Europeia que, pelo menos discursivamente, tem objetivos cada vez mais profundos e mais alargados. E temos um discurso político a que não correspondem meios financeiros reais. Algum dia isto terá de bater certo.

É verdade que será especulação esta minha pergunta, e se calhar eventualmente a resposta: mas se a Comissão Europeia não conseguir junto dos mercados cumprir os seus objetivos isso vai prejudicar os países individualmente. Prejudicar também a sua própria cotação nos mercados, porque fazem parte da União Europeia.

Se isso acontecesse seria trágico para todos. Eu acho que a Comissão Europeia nunca vai deixar de satisfazer os seus compromissos. Se isso por uma tragédia acontecesse lá se ia o rating triple A da União Europeia e todos seriam prejudicados com isso.

Portanto todos têm interesse em que os reembolsos sejam feitos. A questão está em saber se estarão dispostos para isso a não cortar no resto e conseguir Recursos Próprios ou contribuir mais para que a União Europeia possa de facto desenvolver a sua ação, ou então em que – sendo que os reembolsos são absolutamente prioritários – há despesas para as quais vai haver menos dinheiro.

Perspetivam-se tempos interessantes.

Sim, e provavelmente já a partir de 2025/2026 teremos essa discussão.

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