Episódio original publicado a 21 de julho de 2023 | Foto: Arnaud Devillers © European Union 2016 - Fonte : EP
Uma conversa da jornalista Andrea Neves com o Embaixador Pedro Lourtie, Representante Permanente de Portugal junto da União Europeia
Existe uma Cidadania Europeia?
Podemos dizer que existe, de facto, uma Cidadania Europeia?
Eu acho que sim, que existe. Considero que os cidadãos que vivem na Europa devem sentir-se cidadãos europeus porque a União Europeia lhes dá aquilo que um Estado Nacional também lhes dá.
Os europeus têm direitos que derivam do facto de existir a União Europeia e de viverem na União Europeia. A União cria um conjunto de direitos para cada um dos cidadãos europeus, através da sua legislação, e também porque os cidadãos podem participar, diria até que devem participar, na vida da União Europeia.
A forma mais óbvia é participando nas eleições, desde logo nas eleições para o Parlamento Europeu, como é evidente, mas eu diria também nas eleições nacionais, porque ao elegerem os seus Governos, os cidadãos estão também a eleger os seus representantes no Conselho da União Europeia e no Conselho Europeu. No Conselho da União Europeia, porque é aí que estão representados os Governos, e no Conselho Europeu, porque é aí que estão representados os Primeiros-Ministros.
Mas também podem participar através de iniciativas de cidadãos. Atualmente, é possível que um conjunto de cidadãos se dirija à Comissão Europeia com um determinado pedido para uma iniciativa legislativa numa determinada área.
Esta interação que existe entre os direitos que a União Europeia nos dá, enquanto cidadãos europeus, e a nossa participação cívica junto da União Europeia, na minha opinião, faz com que seja evidente que existe uma Cidadania Europeia. Depois compete-nos a nós utilizá-la, ativá-la e fazer o melhor possível como qualquer cidadão, em qualquer Estado Nacional.
A União Europeia impacta a vida dos cidadãos em praticamente todas as áreas.
Sim, hoje em dia, a União Europeia tem competências diferentes, dependendo das áreas. Há áreas nas quais tem uma competência exclusiva. Isso quer dizer que são áreas nas quais apenas a União Europeia pode legislar. Lembro-me, por exemplo, da área da política comercial ou, por exemplo, da política monetária desde a criação do Euro. Por isso, apenas a União Europeia pode atuar nessas áreas.
Mas depois há áreas de competência partilhada. São áreas nas quais a União Europeia pode atuar e, quando decide atuar elas tornam-se, na prática, áreas de competência da União Europeia.
Competências da União Europeia e competências nacionais
Ajude-me a explicar esta questão um pouco melhor: há áreas de competência exclusiva e nesse caso a legislação é determinada pela União Europeia e o Estado-Membro tem necessariamente de a seguir. É isto?
O Estado-membro tem sempre de seguir a legislação da União Europeia. A questão não é essa. O Estado-membro não pode é atuar nessas áreas. Essa é a diferença.
O Estado-membro tem sempre de seguir a legislação da União Europeia. A questão não é essa. O Estado-membro não pode é atuar nessas áreas. Essa é a diferença.
O processo de construção europeia é um processo que acaba por ser relativamente interativo com o Estado-Membro e há áreas nas quais está assumido, e por boas razões, que apenas a União Europeia pode atuar.
Eu vou dar um exemplo: nós, atualmente, temos uma moeda única, o Euro. É evidente que a política monetária tem de ser uma competência europeia, porque os Estados-Membros não podem exercer política monetária, estando eles numa moeda única.
A política comercial é competência europeia por razões parecidas. Porque nós temos uma mesma tarifa comercial com os chamados países terceiros, fora da União Europeia. Dentro da União Europeia não existem barreiras e por isso é evidente que a política comercial tem que ser decidida em comum, e assim o é.
E em relação às competências partilhadas?
Essas são áreas onde existe vantagem ou pode existir vantagem, para a União Europeia, em atuar em conjunto, mas não são – à partida – competências exclusivas. Isto é verdade para as matérias ambientais, por exemplo. Enquanto a União Europeia não atuar em conjunto – e também já agora eu aproveitava para reforçar que quando eu digo “a União Europeia atuar” não me refiro a algumas figuras escondidas nos edifícios aqui em Bruxelas, refiro-me aos Estados-Membros que aceitam que é melhor tomar certo tipo de decisões em conjunto – mas enquanto a União Europeia não atuar em conjunto, os Estados-Membros podem atuar nessas áreas. A partir do momento em que a União Europeia decide que vai atuar em conjunto nessas áreas, elas passam a ser competências da União Europeia.
Depois há outras áreas de competência, digamos, paralelas, em que a União Europeia e os Estados podem atuar, e depois há áreas de competência nacional. Mas mesmo nas áreas de competência nacional – e eu estou a lembrar-me, por exemplo, da área da educação, que é uma área típica de competência nacional, ou do turismo e da cultura – a União Europeia pode atuar se for para promover objetivos comuns, para reforçar objetivos comuns.
Foi o que tivemos com as vacinas?
Foi o que tivemos com as vacinas?
Sim. Eu não referi a área da saúde porque a área da saúde, tipicamente, é uma área de competência nacional, é verdade, mas existem áreas que são de competência partilhada no que se refere à defesa da segurança e da saúde pública. E aí a União Europeia pode atuar.
Mas eu diria que é um bom exemplo. É um exemplo de uma situação na qual os Estados-Membros rapidamente chegaram a um acordo e em que, apesar de a saúde não ser uma competência europeia, era importante atuar em conjunto para poder ter uma resposta conjunta.
Mas eu diria que é um bom exemplo. É um exemplo de uma situação na qual os Estados-Membros rapidamente chegaram a um acordo e em que, apesar de a saúde não ser uma competência europeia, era importante atuar em conjunto para poder ter uma resposta conjunta.
E porquê? Porque essa resposta conjunta era muito mais eficaz. E não era só uma questão de eficácia, era uma resposta mais eficaz mas também mais justa. Ou seja, a atuação em conjunto, no tempo da COVID-19, permitiu algo de fundamental para este equilíbrio que nós tentamos sempre ter ao nível da União Europeia e que se exprime numa sensação de justiça entre os Estados-Membros.
Neste caso conseguiu-se impedir que, por exemplo, um país tivesse as vacinas numa data e outro apenas tivesse as vacinas um ou dois anos depois. Isso teria criado divisões. Teria levado a tensões, eu diria quase intoleráveis, e por isso foi decidido agir em conjunto.
Os cidadãos querem que a União Europeia tenha mais competências
Eu referi o exemplo dá saúde porque quando se tenta ouvir a opinião dos cidadãos, por exemplo no Eurobarómetro ou na Conferência sobre o Futuro da Europa, esse é um dos exemplos mais referidos pelos cidadãos que dizem que gostavam que a União Europeia tivesse mais competências nesta área da saúde.
É verdade, e houve um exercício muito interessante, a Conferência sobre o Futuro da Europa que, aliás, foi feito durante a Presidência Portuguesa.
A Presidência Portuguesa conseguiu finalmente desbloquear a situação e promover algo que há muito tempo não se fazia: ouvir os cidadãos.
Exatamente, e foi um exercício muito alargado de auscultação dos cidadãos.
E uma das mensagens claras que saiu dessa Conferência foi a de que a União Europeia deve poder também agir na área da saúde, o que poderá vir a implicar, no futuro, se os Estados-Membros estiverem de acordo, uma alteração ao Tratado da União Europeia para que a saúde possa passar a ser uma competência partilhada.
De uma maneira geral, quando vemos as sondagens que são feitas aos cidadãos europeus, no Eurobarómetro, vemos que os cidadãos europeus gostam, querem e percebem que é útil a atuação em conjunto. Obviamente, também devemos dizê-lo, quando as competências estão na União Europeia isso implica que os Estados-Membros – e por isso, também os seus cidadãos – estejam preparados para poderem fazer compromissos e chegar a acordos a 27.
Mas a mais-valia de ter uma decisão a 27, de ter a implementação de uma decisão dessas a 27 é, de uma maneira geral e na minha opinião, muito superior aos eventuais custos de termos que chegar a um compromisso. A cultura do compromisso é essencial na União Europeia. Estes 27 Estados-Membros não poderiam estar, em conjunto, num grau muito elevado de integração – como é a União Europeia – e a decidir questões difíceis em todas as áreas políticas, se não estivessem imbuídos também deste valor do compromisso. E é importante, porque só assim se conseguem atingir os valores mais elevados da União Europeia.
E eu falo não apenas dos valores que são fundamentais, como a questão da paz e da segurança, mas refiro-me mesmo à prosperidade económica, ao desenvolvimento. A União Europeia tem dado um contributo fundamental. E o que nós vemos é que há cada vez mais – pelo menos temos esta sensação através dos inquéritos que são feitos – a consciência de que também noutras áreas – como é o caso da saúde – há interesse em que a União Europeia possa atuar, mas isso implicará necessariamente mudar os Tratados.
Ou seja, não basta fazer uma conferência com cidadãos que dizem que querem que a União Europeia tenha mais competências. Isso é impossível, sem mudar os Tratados por unanimidade.
Sim. Transformar competências que não são europeias em competências que possam ser europeias implicará a revisão dos Tratados. Mas a União Europeia tem uma grande margem de atuação, se os Estados estiverem de acordo, e vimos isso durante a COVID-19. Apesar de a saúde não ser uma competência europeia, os Estados-Membros puderam, em conjunto, atuar no seio da União Europeia.
Os Estados-Membros podem transformar uma competência partilhada numa competência da União Europeia, ou uma competência nacional numa competência da União Europeia?
Sim, quando os Estados decidem atuar é verdade que as competências partilhadas passam a ser competências da União Europeia. Por isso passam a ser só exercidas a nível da União Europeia.
As iniciativas de Cidadania Europeia
As iniciativas de Cidadania Europeia
Regressemos à questão das Iniciativas de Cidadania Europeia. São iniciativas em que, como disse, os cidadãos podem pedir à Comissão Europeia para legislar, mas tem de ser sobre assuntos que interessem a mais do que um Estado-Membro. Não pode ser sobre o problema que acontece numa região de Portugal, por exemplo?
Não. Essas iniciativas têm de reunir um certo número de Estados-Membros e um número mínimo de cidadãos que podem solicitar à Comissão Europeia que atue numa determinada questão. Depois, cabe à Comissão apresentar uma proposta. É uma fórmula que não tem sido usada muitas vezes.
O que a Comissão Europeia também faz, com frequência é, antes de apresentar uma proposta, fazer inquéritos em vários Estados-Membros. Faz parte das obrigações da Comissão Europeia perceber qual é o interesse geral dos cidadãos europeus, para que possa apresentar uma proposta que seja relativamente equilibrada. A Comissão Europeia não vai apresentar uma proposta que apenas responde a uma parte dos cidadãos europeus ou só a um ou dois Estados-Membros.
Por vezes nenhum Estado-Membro está 100 por cento contente com a proposta que é apresentada pela Comissão Europeia ou até mesmo com o resultado final, mas o conjunto é maior do que apenas a soma das partes e isso, penso eu, tem sido uma das boas características da União Europeia ao longo dos anos.
Para consulta:
Para consulta:
- https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/policies/justice-and-fundamental-rights/eu-citizenship/eu-citizenship_pt
- https://eur-lex.europa.eu/PT/legal-content/summary/division-of-competences-within-the-european-union.html
- https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/eu-affairs/20210325STO00804/quais-sao-as-competencias-da-ue-video
- https://citizens-initiative.europa.eu/_pt