"Bem-vindos ao Inferno". Forças especiais da Ucrânia ameaçam Kremlin com guerra de guerrilha sem fim
Os serviços secretos das Forças Armadas ucranianas garantem que não haverá descanso para as tropas russas mesmo que estas venham a dominar o território de forma convencional. A luta irá prosseguir, afirmou à Vice News em Lviv, sob anonimato, um dos membros da organização.
Também os russos sabem o que os espera e procuram decapitar o movimento de resistência. Unidades de elite tentam desde antes do início da guerra assassinar pessoas incluídas numa longa lista encabeçada pelo presidente Volodymyr Zelensky.
Fontes do Pentágono referiram sob anonimato à Vice News que a maior ameaça à resistência ucraniana virá das SVR, as unidades de elite dos serviços russos de espionagem, que já noutras ocasiões executaram com sucesso missões para eliminar inimigos do Kremlin em solo europeu e em tempo de paz.
O operacional ucraniano entrevistado concordou com a análise e considerou as equipas SVR como o maior obstáculo a enfrentar por qualquer força de resistência.
Afirmou ainda que a Rússia já pirateou dos sistemas ucranianos dados de soldados ucranianos para compilar listas de alvos a abater. Em zonas controladas pelas forças russas já começaram alegadamente a desaparecer algumas figuras políticas da Ucrânia, referiu.
O membro das forças especiais ucranianas escondeu por isso a cara e declinou revelar o seu nome na entrevista concedida à Vice News entre missões secretas em toda a Ucrânia contra os sabotadores russos. A estes deixou contudo uma mensagem simples: “bem-vindos ao Inferno”.
"É a nossa terra"
“O inimigo deveria saber isto em primeiro lugar: não é bem-vindo”, afirmou, com o olhar fixo numa estrada ensolarada na Ucrânia ocidental. “Entrem na nossa terra, em cada janela, em cada edifício. Temos ouvidos e olhos e por vezes até mãos para os destruir”.
O que vale para os soldados russos irá valer ainda mais para os operacionais estrangeiros que o Kremlin estará a recrutar para combater na Ucrânia devido à relutância das tropas russas no esforço de guerra.
Estes novos soldados, que combateram com êxito na Síria e noutros países do Médio Oriente, irão “combater em solo ucraniano”.
“Os sírios, claro, seriam motivados de algum modo por dinheiro ou algo assim”, afirmou o operacional. “Talvez tenham até alguma experiência de combate em condições urbanas, mas tiveram-na em cidades sírias e estas não são exatamente como, por exemplo, Kiev”.
“É a nossa terra. Conhecemos cada árvore, cada arbusto aqui, cada pedra, cada canto, cada casa”, lembrou. Por enquanto, a missão da sua unidade tem-se dividido entre organizar os grupos de combatentes numa rede nacional e “eliminar” os agentes russos espalhados pela Ucrânia.
O seu país “tem um longo historial de resistência nacional à ocupação”, sublinhou. “Talvez nos esteja na massa do sangue pois infelizmente o nosso território foi ocupado demasiadas vezes, e sobretudo por russos”.
Os membros das forças especiais já estão por isso a executar a missão de médio a longo prazo que lhes foi confiada, de organizar a futura revolta contra a Rússia caso o Kremlin seja bem-sucedido na sua invasão, garantiu.
É desde logo necessário criar redes de agentes em todo o território, ter esconderijos de armas para uso futuro e coordenar com
aliados-chave, como a Polónia. Os próprios
membros das forças especiais deverão desaparecer entre a população civil antes de iniciar ações de guerrilha.
“As forças das operações especiais estão encarregues de preparar e coordenar a resistência nacional”, disse. “Por isso, todos os insurgentes e a resistência são a nossa responsabilidade”.
Planos com "anos"
De acordo com o soldado à Vice News, o Governo ucraniano não tem apoiado a resistência apenas de forma pública, através por exemplo da publicação online de instruções para ações violentas ou passivas. Além destas iniciativas existem, garantiu, diversos planos extremamente secretos.
Muitos deles antecedem a invasão.
No próprio Pentágono era ponto assente há meras semanas que a Administração Biden estava a estudar formas de apoiar uma futura revolta na Ucrânia, incluindo suprimentos. O membro das forças especiais ucranianas confirmou aliás que conselheiros norte-americanos já coordenavam (“há muito anos”) estas ações com o Governo da Ucrânia, em preparação para a insurgência. O tipo de resistência de que falou o operacional à Vice News é o pior pesadelo de qualquer invasor e ocupante, uma guerra de drenagem contínua de recursos e de efetivos militares sem garantir ganhos. Na Ucrânia, ameaça atingir proporções só vistas em solo europeu durante a II Grande Guerra.
Particularmente, a Polónia surgiu como um parceiro de primeira linha, tanto no papel de coordenador principal da evacuação de refugiados como no de abastecedor do Governo ucraniano, desde medicamentos a armas e outra logística.
O soldado confirmou à Vice News que o apoio da Polónia é crítico. “Não posso entrar em detalhes mas temos uma parceria muito boa com os nossos colegas na Polónia”, assegurou. “Não posso acrescentar mais“.
“O que posso dizer ou o que posso partilhar consigo, é que temos um grande nível de cooperação entre as nossas forças e os nossos colegas dos Estados Unidos e dos Estados-membros da NATO e da União Europeia”, garantiu. Contudo só o tempo dirá se as táticas de resistência que estes aliados militares partilharam com os ucranianos servirão para alguma coisa, acrescentou.
Apoio externo
A coordenação externa da insurgência ucraniana poderá assumir várias formas.
Um relatório recente do Soufan Group, consultores globais para a segurança e informação com base em Nova Iorque, EUA, considerou aliás incalculável o valor de ações de “unidades paramilitares da CIA e de elementos do Comando Europeu das Operações Especiais (SOCEUR)” que podem vir a “multiplicar a insurgência ucraniana sem sequer terem de por um pé em solo ucraniano, operando a partir da Polónia ou outros países NATO na Europa de leste”.
Os ucranianos também já mostraram ampla prontidão para fazer uso pleno de tudo o que lhes possa chegar às mãos. O treino e o armamento recebido pelas suas forças por parte de países NATO desde 2014 foram mesmo determinantes nos primeiros embates, até porque os russos – e os próprios aliados ocidentais - subestimaram as capacidades e moral ucranianas, refere a maioria dos analistas.
O Ocidente tem efetivamente suprido as forças ucranianas com sistemas antitanque Javelin e lançadores de defesa antiaérea Stinger, os quais já derrubaram um sem número de helicópteros russos.
Apesar de não comentar futuros planos de eventual auxílio sub-reptício às forças de combate da Ucrânia contra a Rússia, o Pentágono lembrou o recente apoio de 1.200 milhões de dólares em assistência securitária.
O adido de imprensa do Pentágono, John Kirby, conformou aos repórteres segunda-feira que as armas norte-americanas e outro auxílio vão continuar a ser enviadas para a Ucrânia, usando “múltiplas rotas”, apesar da eventualidade de ataques russos.
Já esta terça-feira, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma verba de 12 mil milhões de euros para ajuda direta à Ucrânia. O anúncio foi feito pelo Presidente norte-americano durante uma Conferência de Imprensa sobre assuntos nacionais.
O papel estratégico a desempenhar pela Polónia enquanto lugar seguro e centro logístico para garantir o apoio à Ucrânia tem sido visto como essencial em qualquer futura revolta, apoiada pelos Estados Unidos ou quaisquer outros atores, seja de forma declarada ou escondida. Também coloca o país, membro da NATO, na linha da frente de um eventual ataque russo de retaliação.
Sob anonimato, as mesmas fontes do Pentágono afirmaram à Vice News que, na eventualidade de derrota generalizada, o apoio às forças ucranianas se irá estender além de operações da CIA e outra ajuda secreta, a outros grupos paramilitares em todo o mundo.
A Polónia tem forças especiais respeitadas em campo e o seu flanco oriental poderá vir a tornar-se o campo de “homens, treino e equipamento” da resistência ucraniana, referiram. Também o 10º Grupo de Forças Especiais, que opera na Europa, poderia ser um dos elementos norte-americanos responsáveis pela coordenação da resistência ucraniana.
O jogo de Putin
O Kremlin está a par de todos estes preparativos e já avisou as potências ocidentais para terem cuidado ao armarem e abastecerem as forças ucranianas, ameaçando escalar o conflito e alargar as operações de combate além das fronteiras ucranianas para um país membro da NATO.
O recente bombardeamento de uma base militar de treino de combatentes, estrangeiros e ucranianos, e ponto de passagem de armamento, a uma escassa dezena de quilómetros da fronteira com a Polónia, foi um sinal de aviso de que tais iniciativas não serão toleradas por Moscovo.
A NATO tem-se contudo abstido de qualquer atividade que possa ser tida pelos russos como agressão declarada recusando por isso e nomeadamente responder de forma positiva aos apelos do presidente Volodymyr Zelensky para “fechar os céus da Ucrânia” aos caças russos.
Durante o fim de semana o Presidente norte-americano Joe Biden opôs-se aos planos polacos de entregar aos ucranianos aviões de caça MiG-29.
Nos primeiros 20 dias de combates o avanço militar russo cingiu-se ao leste, norte e sul da Ucrânia, longe das fronteiras ocidentais com países europeus como a Polónia, que rejeitam liminarmente e de longa data qualquer influência de Moscovo e para quem a derrota de Putin se tornou um interesse vital.
Sem intervenção externa declarada e dado o habitual modus operandi das forças russas, de arrasarem progressivamente infraestruturas e de minar a resistência e a moral da população através de crimes de guerra – basta recordar a guerra na Chechénia – os próximos dias ou semanas deverão ser marcados pela lenta conquista russa da Ucrânia com especial cuidado para não convidar a intervenção militar declarada da NATO ou de países da União Europeia.