A Associação Íris Angola considerou hoje "positiva" a decisão do Parlamento angolano despenalizar a homossexualidade no país, mas admitiu que o "maior passo" tem a ver com a criminalização da difamação da comunidade Lésbica, Gay, Bissexual e Transexual (LGBT).
Em declarações aos jornalistas, o presidente da única associação LGBT legalizada em Angola (junho de 2018), Carlos Fernandes salientou, porém, que há ainda muito caminho a percorrer, uma vez que os preconceitos da sociedade angolana são ainda muitos, com maior predominância das próprias famílias.
"Em si, a retirada da lei de 1886 é positiva, mas eu creio que o maior passo está nas outras leis que vêm a seguir, que têm a ver com a difamação. Hoje em dia já nos podemos defender. Sempre defendemos, não leis específicas para os LGBT, mas leis que, ao menos, punam quem viola a nossa liberdade e, hoje em dia, o Código Penal de Angola dá-nos essa segurança. Até nos defende na entrada em sítios onde não nos era possível entrar", explicou.
Questionado sobre quais os principais constrangimentos para a comunidade LGBT no país - a Íris conta com cerca de 200 membros e trabalha em Luanda, Benguela, Huambo e Huíla -, Carlos Fernandes destacou as famílias, "que são sempre as primeiras a discriminar".
"Como organização, muitas vezes acolhemos jovens e adolescentes expulsos de casa e tentamos fazer algum trabalho para voltar depois a integrá-los. Continuamos a receber [queixas] das províncias, em que a repressão é maior. Essa é a nossa primeira preocupação, que são as famílias", referiu.
"Depois vem o resto, que é a própria sociedade, no geral, a educação, o acesso ao emprego, porque, se forem ver alguns estudos no nosso país, a nossa comunidade tem baixo acesso à educação, ao emprego", sublinhou.
Carlos Fernandes desdramatizou, por outro lado, a importância do casamento entre pessoas do mesmo sexo como principal objetivo da minoria.
"Sempre que se fala da LGBT as pessoas têm como noção que a nossa ideia principal é o casamento. Não é esse o nosso foco", argumentou, salientando que a prioridade são os cuidados de saúde para os elementos das comunidades.
No entanto, o casamento "é sim [importante] como direito. Temos de ter a equiparação legal aos casamentos heterossexuais por vários motivos. Na questão da própria segurança, se eu faço vida com alguém, ou vivo com alguém durante muitos anos, se eu morrer o meu parceiro não terá direito a nada", sustentou.
Sobre o dia-a-dia em Angola de um membro da comunidade LGBT - são maioritariamente jovens e estudantes -, a maioria dos problemas está relacionada com a família e a discriminação social.
"Na escola também é a mesma coisa: às vezes temos problemas quando há mulheres transgéneros, porque os homens transgéneros são mais aceites na educação. Se for uma mulher transexual ainda continuamos a ter problemas", exemplificou, destacando o "muito preconceito" existente num país em que os cursos de psicologia tratam a "homossexualidade como doença".
"Ainda há muita coisa a fazer. Mesmo a polícia, que às vezes julga que tem o direito de nos tirar o direito de nos queixarmos", afirmou.
Segundo Carlos Fernandes, a segurança é outra das grandes preocupações, lembrando que, nos últimos três anos, foram assassinados "quatro ou cinco membros LGBT".
"Creio que agora também se abre espaço para haja [a tipificação de] crimes homofóbicos e que sejam julgados" como tal, explicou.
"Somos um grupo de jovens, a maior parte é estudante. Praticamente lutamos sozinhos. Quase ninguém quer associar-se a nós, nem uma empresa. Ninguém quer o seu nome associado aos LGBT e principalmente numa visão africana. Lutamos e temos muitas dificuldades, apesar de na questão da advocacia, termos conseguido grandes passos na questão de como ajudar e suportar a nossa comunidade. Mas não recebemos apoio de ninguém", lamentou.
Quarta-feira, o Parlamento angolano aprovou o novo Código Penal, em que despenaliza a relação homossexual em Angola, garantindo agora que ninguém pode ser penalizado por discriminação em razão de orientação sexual.
As novas regras penais angolanas vêm substituir o Código Penal ainda do tempo da administração colonial portuguesa, datado de 1886, em que, no artigo 71.º, na alínea 4.ª é claramente explícito que as medidas de segurança (detenção) serão aplicadas "aos que se entreguem habitualmente à prática de vícios contra a natureza".