Analistas. Incapacidade militar levou a milícias pró-Frelimo

por Lusa

Analistas consideram que a incapacidade das forças governamentais moçambicanas de travar os terroristas na província de Cabo Delgado levou o Governo a aceitar milícias ligada à Frelimo, partido no poder, mas alertam para a inconstitucionalidade dessa opção.

O tema da participação do que o Governo moçambicano qualifica de "força local" -- um grupo de antigos combatentes da luta de libertação nacional e seus familiares, - na luta contra os grupos armados que aterrorizam a província de Cabo Delgado, voltou a ter destaque, depois de o Presidente moçambicano e da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), Filipe Nyusi, ter elogiado o papel daquelas milícias no combate aos rebeldes, durante uma conferência da Associação dos Combatentes de Luta de Libertação Nacional (ACLLIN) no final de abril.

O chefe de Estado explicou na mesma semana, numa visita ao Uganda, que aquele país está a dar apoio logístico a "forças locais".

Em declarações à Lusa, Fernando Lima, presidente do grupo de media privado moçambicano Mediacoop, assinalou que as autoridades moçambicanas começaram por "resistir" aos apelos daquelas milícias de receber armas para combater a insurgência, mas tiveram de ceder devido à incapacidade das forças regulares, mesmo perante a inconstitucionalidade dessa ação.

"As autoridades foram forçadas a aceitar as milícias, porque elas eram a única alternativa que existia face ao avanço imparável dos `jihadistas` sobre as populações e por causa das matanças indiscriminadas", declarou.

O envolvimento da "força local", prosseguiu, não tem enquadramento na Constituição e na legislação moçambicanas, mas a experiência militar do grupo, adquirida na luta contra o colonialismo português, conhecimento do terreno, da língua e das comunidades de onde são recrutados membros dos rebeldes deixaram as autoridades sem alternativa, senão aceitar a cooperação das milícias.

"O papel das milícias tem sido importante", enfatizou, recordando que o Governo da Frelimo já as tinha utilizado com relativo sucesso na guerra civil contra a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), que terminou em 1992.

Apesar da eficácia operativa da força local, Lima alertou para o risco de abusos ao nível dos direitos humanos, proliferação de armas nas mãos de civis e incerteza em relação ao futuro dos membros mais novos das milícias, dado que os veteranos da luta de libertação nacional têm um estatuto legal próprio.

Borges Nhamire, investigador da organização não-governamental Centro de Integridade Pública (CIP), também avançou que a incapacidade das Forças de Defesa e Segurança (FDS) levou o executivo a ter forças locais como parceiras no combate aos grupos armados.

"A defesa da soberania e da integridade territorial é tarefa primordial do Estado, se tiver que delegar essa tarefa a outras entidades, deve fazê-lo dentro da lei, o que não é o caso com a força local", sublinhou Nhamire.

A falta de enquadramento legal levanta preocupações quanto à responsabilização dos membros do grupo por atos praticados no combate à insurgência.

"Ao abrigo de que estatuto essas milícias atuam, qual é o seu âmbito, dentro de que limites e quem é responsável pelos seus atos", questionou o investigador do CIP.

A existência de entidades não estatais em tarefas de segurança, continuou, não é em si um problema, porque se podem encontrar situações de exceção, em caso de manifesta incapacidade das forças regulares, mas é preciso uma delimitação clara da sua esfera de atuação.

Borges alertou ainda para o perigo de clivagens étnicas com a atuação da força local, uma vez que esta é conotada com a etnia maconde, enquanto os insurgentes são maioritariamente associados à etnia kimuani.

Muhamad Yassine, docente de Relações Internacionais na Universidade Joaquim Chissano, instituição estatal, considerou "indubitável a inconstitucionalidade de uma força informal ligada à Frelimo".

"A chamada força local está ligada à ACLLIN, que é uma instituição da Frelimo, e obedece a comandos partidários, o que, pelos menos legalmente, é inaceitável num Estado de direito", enfatizou Muhamad Yassine.

Yassine considerou "civis" os membros das referidas milícias, porque é constituída por uma "minoria de antigos combatentes", que já não tem "vínculo orgânico" com as Forças de Defesa e Segurança", e por jovens voluntários sem nenhuma formação militar.

Aquele académico manifestou preocupação com a ativação da força local face à aproximação do processo ciclo eleitoral, considerando que a Frelimo vai aos próximos pleitos eleitorais com "um braço armado", porque a "força local tem uma ligação umbilical ao partido no poder".

A província de Cabo Delgado é rica em gás natural, mas aterrorizada desde 2017 por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.

Há 784 mil deslocados internos devido ao conflito, de acordo com a Organização Internacional das Migrações (OIM), e cerca de 4.000 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED.

Desde julho de 2021, uma ofensiva das tropas governamentais, com o apoio do Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), permitiu recuperar zonas onde havia presença de rebeldes.

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