"Amo violar-te". Mensagem de `influencer` Andrew Tate não bastou para ser julgado

por RTP
Andrew Tate e o irmão Tristan, antes de ouvirem o Tribunal de Recursos de Bucareste, Roménia, recusar-lhes o pedido para serem libertados Reuters

A detenção do ex-campeão de kickboxing Andrew Tate na Roménia, por suspeitas de violar e de recrutar mulheres para uma rede de prostituição e pornografia por si liderada, está a expor a forma negativa como o sistema legal britânico trata as vítimas que ousam denunciar os seus abusadores.

O jornal VICE World News entrevistou três mulheres que apresentaram queixa à polícia britânica em 2014 e em 2015, alegando terem sido violadas e estranguladas por Tate.

Apesar de este ter chegado a ser detido por duas vezes em 2015, ao fim de quatro anos de investigações policiais os serviços de procuradoria britânicos decidiram não levar qualquer dos casos a tribunal.

Uma das mulheres, identificada apenas sob o pseudónimo Amelia, forneceu contudo ao VICE, que as publicou em exclusivo, as mesmas provas que entregou à polícia em 2014.

São mensagens de texto e de voz explícitas e gravadas no seu telemóvel, enviadas pelo antigo campeão de kickboxing e atual influencer com milhões de seguidores.

“Amo violar-te” e “quando estás sob meu controlo faço o que me apetece”, escreveu Tate. “Eras a minha p… quando as minhas mãos estavam em ti” escreveu ainda o atleta noutra ocasião.

Numa mensagem gravada já depois de Amelia ter terminado a relação, questionou “sou uma má pessoa… porque quanto mais tu não gostavas mais prazer eu tinha”.

Noutra gravação, antecipada por um vídeo em que ele quebra um taco de basebol no próprio queixo, Tate afirmou “sou um dos homens mais perigosos neste planeta. Às vezes esqueces como tiveste sorte em ser f… por mim”. Andrew Tate considerou-se ainda o “homem mais inteligente deste planeta inteiro”.

Mensagens que comprovam a natureza tóxica do namoro e que indiciam coação, violência e violações mas que não convenceram os procuradores britânicos.
As razões do sistema
Em 2019 os Serviços de Procuradoria da Coroa, CPS, consideraram não existirem provas suficientes para uma condenação inequívoca de Tate, pelo que decidiram não avançar para tribunal.

A decisão deixou Amelia em choque. “Fiquei tipo, é essa a vossa desculpa de sistema judicial?. Então nunca ninguém foi manipulado até agora, nunca ninguém sofreu de Síndrome de Estocolmo, nunca ninguém foi abusado?” recordou ao VICE.

Nos últimos dias, contactada pelo mesmo jornal, os CPS referiram que nada tinham a acrescentar à decisão de 2019. Os procuradores “reviram cuidadosamente todas as provas coligidas pela polícia quanto a cada uma das queixas e concluíram que não correspondiam aos nossos testes legais, e que não havia hipóteses reais de uma condenação” explicou em comunicado.

Parte das razões invocadas pelos CPS prende-se com a relação que Amelia continuou a manter com Tate mesmo após a alegada violação de que diz ter sido vítima em 2013.

Amelia justifica o comportamento com o impulso de negar que o abuso tinha sucedido e de se sentir ‘normal’, a par do medo da reação dele se ela se recusasse.
Olhos sobre quem acusa
Fiona Vera-Gray, vice-diretora da Unidade de Estudos de Abusos de Mulheres e Crianças, da Universidade Metropolitana de Londres, diz ser completamente normal a reação de Amelia. E aponta o dedo ao “sistema” que não apoia as vítimas.

Tal comportamento “não devia ser visto como uma fraqueza”, afirmou ao VICE, apontando a “falha” inerente à forma como os casos de violação são tratados no Reino Unido, caindo o escrutínio sobre quem acusa em vez do acusado, resultando daí que a grande maioria dos casos nunca chegam a tribunal devido à forma como provavelmente seriam sentenciados.

A polícia e até os procuradores afirmam muitas vezes às vítimas que “acreditam” nelas mas que “algo na sua conduta, tanto antes como durante ou após o ataque, leva-nos a crer que um júri não irá sentir-se apto a condenar sem dúvida razoável”, refere a especialista.

Devido a mitos sobre a violação, que ainda perduram, quem sobrevive “tem de cumprir condições impossíveis e até contraditórias”, para ser uma “vítima perfeita” e as suas acusações credíveis, acrescentou a especialista.

Andrea Simon, diretora da Coligação Parem com a Violência Contra as Mulheres, baseada no Reino Unido para melhorar a forma como o sistema judicial trata casos de violência sexual, concorda com Vera-Gray.

“Mitos e estereótipos sobre a violação enformam todos os passos do processo criminal judiciário e determinam se o caso de uma vítima progride ou é deixado”, afirmou ao VICE.

A história de Amelia é “terrível mas não surpreende, dado tudo o que sabemos sobre a forma como as sobreviventes de violação são tratadas pela polícia e pelo sistema de justiça criminal como um todo”.
A história de Amelia
Na Roménia, Andrew Tate, actualmente com 36 anos, está acusado de usar “violência física e coerção mental” para recrutar e manipular mulheres para trabalharem para o seu negócio de sexo filmado por webcam.

No Reino Unido, as acusações das três mulheres vão no mesmo sentido de um homem violento que gosta de estrangular mulheres enquanto as força a relacionamento sexual.

Amelia contou ao VICE que a primeira violação ocorreu em casa de Tate após duas ou três semanas de encontros. Afirma que trocaram beijos na cama, apesar de ela não querer ter relações sexuais de imediato.

De repente ele parou e deitou-se de costas. E quando ela perguntou o que se passava, ele respondeu “estou só a decidir se te devia violar ou não”.

Amelia ficou incrédula e ainda mais quando ele pareceu transformar-se, “do Andrew que eu conhecia e me fazia rir” numa “pessoa totalmente desconhecida”.

Tate começou de repente a estrangula-la e obrigou-a a despir as calças, entre insultos. Amelia ficou apavorada pela súbita violência, sentindo-se impotente.

“Estava tão assustada”, recordou. “Quer dizer, por amor de Deus, ele era um campeão de kickboxe com 1.90m…

“Se uma pessoa imagina que vai estar nessa situação pensa que se vai lutar… mas eu digo, não se luta. Porque se se luta, que pode ele vir a fazer?”.

Depois da violação, Amelia entrou num processo de negação e só meses depois, em 2014 e com apoio de amigas, conseguiu ir à polícia. Mesmo assim preferiu fazer apenas uma participação.

Só em 2015, quando foi contactada pelos agentes de Hertfordshire para saberem se queria formalizar a queixa devido a novas acusações contra Tate por parte de duas outras mulheres, decidiu avançar.

“Fui-me literalmente abaixo”, recordou Amelia ao VICE. “Senti-me mais forte. Senti OK, já não estou sozinha, tenho duas outras raparigas”.
O regresso do medo
Andrew Tate foi detido por duas vezes na sequências destas acusações, a última das quais em dezembro de 2015. Apesar de questionado foi libertado de ambas as vezes.

Tal como as outras duas vítimas, Amelia acredita que as falhas britânicas em levar Tate à justiça contribuíram para o atleta continuar um comportamento que mostra traços de misoginia e de abuso de mulheres, que levou à sua detenção na Roménia.

O facto de Tate se ter tornado famoso e de arrastar uma legião de fãs prontos a destruir quem denuncie o seu ídolo, é para Amelia inacreditável.

“Estão a brincar” questionou. “Não é suposto acontecer isso. Alguém que abusou de ti e te magoou, torna-se mundialmente famoso e tens de ver a cara dele todos os dias…”

Todo o esforço de ultrapassar a violação e o medo de há 10 anos se esfumou e o trauma regressou em força, admitiu. “Desde que ele se tornou famoso, todos os dias têm sido uma tortura”.

Tate foi detido dia 29 de dezembro na Roménia juntamente com o irmão, Tristan. Esta quarta-feira o Tribunal de Recurso de Bucareste rejeitou o seu pedido de ser deixado ir em liberdade.

Leia aqui o relato completo de Amelia ao Vice News
Tópicos
PUB