Alertas de extradição na UE de refugiados ucranianos circulam nas redes

por RTP
A tripulação ucraniana de um blindado durante exercícios militares no norte da Ucrânia Gleb Garanich - Reuters

Homens ucranianos em idade de serviço militar e refugiados em países europeus estarão a ser forçados a regressar ao seu país, alegam diversas mensagens que circulam desde o início de setembro nas redes sociais.

O repatriamento seria consequência do decreto de recruta emitido por Kiev após a invasão russa, em setembro de 2022.

"Eles começaram a enviar notificações de aviso de extradição aos ucranianos", refere um dos textos acompanhado de imagens de uma missiva.

As mensagens alegam que estes ucranianos, entre os 18 e os 60 anos, serão presentes a juiz no regresso ao seu país, por violação da lei marcial em vigor desde fevereiro de 2022, que os mobilizou para as Forças Armadas e que os proíbe de deixarem a Ucrânia.

São publicações partilhadas sobretudo em esferas de opinião pró-russas. 

O jornal Le Monde cita o caso de um ucraniano a viver na Irlanda que teria recebido uma dessas notificações enviada pelas autoridades irlandesas, por "não ter respeitado a obrigação legal de serviço militar".

Para justificar o processo de extradição, a alegada missiva cita mesmo a Convenção Europeia de Extradição, de 1957, que se aplica aos 46 estados-membros do Conselho da Europa, que incluem a Ucrânia e a Irlanda.


A falsidade destas alegações já foi exposta, inclusivé pelos usuários das redes como a X, antigo Twitter. E terça-feira, 12 de setembro, o Ministério da Justiça da Irlanda teve de desmentir o envio de tais notificações, lembra o periódico francês.

A mesma Convenção estipula aliás no seu artigo 4, que "a extradição por razões de infrações militares que não constituam infração de direito comum fica excluída". O que implica que a Ucrânia não pode pedir o repatriamento forçado de quem tenha simplesmente fugido às suas obrigações militares.

Dias antes do caso irlandês, foi largamente difundido nas redes sociais um vídeo referido como testemunho de um ucraniano, que, em língua russa, afirma ter recebido um documento a notifica-lo da sua iminente extradição.

O documento é exibido tão rapidamente no vídeo que a sua autenticidade e teor se tornam inverificáveis, refere o Le Monde. Apenas se vislumbra o símbolo da Direção-geral da Polícia espanhola.


Não houve até agora qualquer desmentido ou explicação oficiais por parte das instâncias do país vizinho.
Abusos e desmentidos
Outras publicações pró-russas têm alegado nos últimos meses, sobretudo em redes como o Telegram, habitualmente usada pelo regime russo para divulgar a sua propaganda, que a Polónia, um dos principais aliados de Kiev, já tem estado a devolver à Ucrânia refugiados que tentavam escapar à mobilização.

Tratar-se-á de um aproveitamento abusivo de um artigo do jornal polaco Rzeczpospolita que noticiou a extradição por Varsóvia de ucranianos envolvidos no tráfico ilegal de migrantes.

Noutra ação de desinformação surgiram notícias, igualmente já desmentidas, de que Kiev estaria a forçar o recrutamento de doentes com HIV e esquizofrenia. Estes seriam contudo casos de falsos diagnósticos comprados por ucranianos para fugir ao alistamento.


O Ministério da Justiça de França confirmou ao Le Monde que não foram recebidos quaisquer pedidos de extradição de cidadãos ucranianos por parte de Kiev, com a exceção do multimilionário Konstantin Jevaho, que foi rejeitada.

A 13 de setembro, o Governo húngaro afirmou que "não irá extraditar" homens ucranianos em idade de serviço militar nem investigar eventuais casos.

A Comissão Europeia, por seu lado, aplicou o estatuto de refugiados aos ucranianos que fugiram da guerra sem distinção de género ou de estatuto militar.

Até à invasão russa, os cidadãos da Ucrânia só podiam permanecer em solo da EU sem visto durante 90 dias. Desde março de 2022 beneficiam de um estatuto especial que lhes permite habitar, trabalhar e aceder a apoios. 

Quase seis milhões de ucranianos estão abrangidos, de acordo com as Nações Unidas. A 19 de setembro, fontes europeias confirmavam a presença de 10 milhões de ucranianos em vários países da UE.


Também a 19 de setembro, a Comissão Europeia propôs prolongar esta proteção até março de 2025, o que torna ainda mais improváveis as notificações de extradição que têm circulado nas últimas semanas.
Missão "impossível"
Os rumores, provavelmente espalhados pelos serviços de desinformação russos, ecoam a falta de soldados sentida pela Ucrânia, que cada vez mais se vê forçada ao recrutamento por falta de voluntários e elevadas perdas na frente de batalha.

Como toda a desinformação, parte das mensagens é verídica. Em agosto, diversos responsáveis ucranianos afirmaram a sua vontade de fazer regressar os ucranianos que escaparam à suas obrigações militares. E o Presidente ucraniano Volodimyr Zelensky afastou chefias militares dos centros de recrutamento por corrupção e por auxiliarem recrutas a escaparem ao serviço militar.

A Ucrânia não divulgou números oficiais globais sobre os eventuais mobilizados que não se apresentaram ao serviço, mas, de acordo com o porta-voz dos serviços de fronteira, citado pela Agência France Presse no início de setembro, desde o início da guerra, foram detidas 13.600 pessoas que tentaram sair da Ucrânia clandestinamente.

Outras 6.100 foram intercetadas com documentos falsos. Esta última circunstância é um crime civil e não militar, e abre a porta a uma eventual extradição ao abrigo da Convenção de 1957, por parte da Ucrânia.

O processo necessário à identificação e notificação individual de cada um dos infratores, na situação que a Ucrânia se encontra, torna contudo "impossível" uma ação em massa por parte de Kiev.

Opinião do conselheiro da Presidência da Ucrânia, Mykhailo Podoliak, a 15 de setembro, quando instado a comentar a veracidade das mensagens.

"É pouco provável que os países europeus aceitem extradições", afirmou, citado pelo Le Monde, referindo um processo complexo que passaria pela recolha de provas e a emissão de mandatos judiciais antes de qualquer pedido poder ser emitido para cada acusado.

"Atualmente, não creio ser possível resolver o problema do regresso dos homens que partiram para o estrangeiro por uma ou outra razão com recurso a certificados falsos", afirmou Podoliak. Os infratores terão contudo de enfrentar a justiça se decidirem regressar à Ucrânia "depois de a guerra terminar", acrescentou.

O Le Monde procurou a opinião de um especialista em direito penal. Didier Rebut, diretor do Instituto de Criminologia de Paris, considerou que o recurso a documentos falsos para escapar ao serviço militar pode ser considerado uma extensão de uma infração militar, justificando a aplicação do artigo 4 da Convenção de 1957.

Além disso, "a decisão de extraditar uma pessoa pertence somente ao estado a quem o pedido foi apresentado. Este é livre de decidir se os factos a justificam e de questionar os argumentos invocados pelo Estado que a pede", afirmou Rebut.
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