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"Água mais preciosa do que ouro". Ataques turcos cortam abastecimento a mais de um milhão na Síria

por Carla Quirino - RTP
Abastecimento de água em Hasakah via camiões-cisterna Orhan Qereman - Reuters

Os ataques aéreos turcos do final de outubro deixaram inoperacionais pelo menos 604 poços e furos de água, na província de Hasakah, após terem atingido instalações de eletricidade e combustível. Mais de um milhão de pessoas viram assim o abastecimento interrompido, o que, de acordo com especialistas, pode ser uma violação do Direito Internacional.

Entre outubro de 2019 e janeiro de 2024, a Turquia realizou mais de 100 ataques em campos de petróleo, instalações de gás e centrais elétricas na Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria (AANES) controlada pelos curdos.

Pelo menos 604 poços e furos de captação de água, na província de Hasakah, ficaram sem poder abastecer a população.A par da guerra civil e diversos anos de seca extrema agravada pelas alterações climáticas, as ações turcas vieram acentuar a crise humanitária da região.

A Turquia acabou por confirmar que tinha como alvo as “fontes de rendimento e infraestruturas” de grupos separatistas curdos que classifica como terroristas.
Escassez de água
As investidas às centrais elétricas deixaram inoperacional a principal estação de água na província de Hasakah.

Sem energia para o abastecimento de água a mais de um milhão de habitantes, as pessoas passaram a depender de entregas transportadas por camiões-cisterna, em Alouk.A água, que não é suficientes para todos, é distribuída primeiro nas escolas, hospitais e aos mais necessitados.

De acordo com a BBC, na cidade de Hasakah, os residentes, imploram para que os motoristas lhes deem água.

“Aqui, a água é mais preciosa que ouro”, relatou Ahmad al-Ahmed, um motorista de um camião-cisterna. “As pessoas precisam de mais água. Tudo o que elas querem é que lhes deem água”, acrescentou.

Neste contexto de escassez de água, o desespero leva algumas pessoas a tornarem-se conflituosas e chegam mesmo a fazer ameaças: “Se o motorista do camião não me der água, vou furar-lhe os pneus”.

Yayha Ahmed, codiretora do conselho de águas da cidade desabafa: “Deixe-me dizer francamente, o nordeste da Síria está a enfrentar uma catástrofe humanitária”.
Puzzle das forças na região
As forças curdas na região nordeste da Síria, que faz fronteira com a Turquia, a sul, constituíram a Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria (AANES) em 2018. Estes militares têm tido o apoio dos EUA, representando um entrave ao ressurgimento do grupo Estado Islâmico na região.

Por sua vez, presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, afirma que a existência da AANES é  ter um "estado terrorista" às portas da sua fronteira.

Isto porque considera a milícia curda uma extensão do grupo rebelde Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que há décadas luta pela autonomia curda na Turquia.

O PKK é descrito como uma organização terrorista pela Turquia - UE, Reino Unido e EUA partilham do mesmo ponto de vista.
Violação de Direito Internacional

Neste amaranhado de ligações, a Turquia insiste nos ataques que já atingiram, pelo menos, três áreas da AANES: Amouda, Qamishli e Darbasiyah, bem como a principal central elétrica de energia da região, Swadiyah.A ONU e grupos humanitários no terreno relatam que as forças turcas realizaram todas estas agressões.

A Turquia, por sua vez, argumenta que tem como alvo o PKK, as Unidades de Proteção Popular (YPG) e o Partido da União Democrática Curda (PYD) mas não pretende atingir a população civil.

“Civis ou infraestruturas civis não estavam entre nossos alvos e nunca estiveram”, declarou o Governo turco, citado pela BBC.

Há um ano, o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Hakan Fidan, deixou claro que todas as “instalações de infraestrutura, superestrutura e energia” que pertencem ao PKK e ao YPG — especialmente no Iraque e na Síria — eram “alvos legítimos” para as forças militares de Ancara.

Porém, em fevereiro deste ano, um relatório publicado por uma comissão independente da ONU observou que os “ataques de outubro de 2023 à infraestrutura elétrica podem ser considerados crimes de guerra porque privaram civis do acesso à água”.

“Os ataques da Turquia à infraestrutura energética tiveram um impacto devastador sobre os civis”, sublinhou Aarif Abraham, advogado do escritório jurídico britânico Doughty Street Chambers (que trabalha na área da igualdade de acesso à justiça e aos direitos humanos).

Acrescenta que essas hostilidades “podem constituir uma violação grave do direito internacional”.

Patrick Kroker, advogado criminalista internacional do Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos, considera que “as indicações de que o direito internacional foi violado, e neste caso, são tão fortes que deveriam ser investigadas por uma autoridade de acusação”.

A Turquia reagiu a estas impressões argumentando que a escassez de água na região se deve às alterações climáticas e à manutenção da “infraestrutura hídrica há muito negligenciada” no local.

Entretanto, a AANES alerta que, para além das perdas no setor de energia, as “padarias e instalações de armazenamento de farinha foram atingidas, o que quer dizer  que a estabilidade económica e segurança da região está afetada negativamente".
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