Administração Trump. O que fica para a História, para lá da espuma dos dias
Numa altura em que se completam quatro anos desde a eleição de Donald Trump, em 2016, o agora Presidente dos Estados Unidos procura garantir o segundo mandato. Em declarações à RTP, vários especialistas que acompanham a realidade norte-americana de perto consideram que a Administração Trump já deixou uma marca inegável no país e no mundo, independentemente do resultado que consiga obter esta terça-feira.
A uma semana das eleições presidenciais nos Estados Unidos, o Senado norte-americano confirmou a nomeação de Amy Coney Barrett como nova juíza do Supremo Tribunal do país, o terceiro magistrado que Donald Trump designa desde que tomou posse, a 20 de janeiro de 2017, numa ação que deverá ter grande impacto nas próximas décadas, ao dar um pendor profundamente conservador a este órgão judicial.
Foi o episódio recente de um turbilhão de sucessivos acontecimentos desde um ano agitado na Casa Branca. Quem se lembra ainda da reta final do processo de votação do impeachment, o terceiro da história dos Estados Unidos a chegar tão longe, ou do ataque que Trump ordenou no Iraque que resultou na morte do general iraniano Qassem Soleimani, em janeiro?
Mas, à margem da atualidade incessante, fez-se história nestes quatro anos. Com resultado eleitoral da próxima terça-feira, 3 de novembro, envolto em incerteza, procuramos aferir qual o legado e o significado da Administração Trump para a política norte-americana e para o mundo com a ajuda dos especialistas Diana Soller, Bernardo Pires de Lima e Tiago Moreira de Sá.
“Trump vai ficar na história pela sua própria personalidade, pela forma como expressa posições, ainda que talvez daqui a muitos anos, quando isso for esquecido, fique na história como o Presidente que transformou a posição estratégica dos Estados Unidos em contexto de transição de poder. Mesmo que Joe Biden ganhe as eleições, não tem a possibilidade de voltar atrás”, considera Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais.
Diana Soller considera que a principal orientação de Trump é a ideia de soberania: "A ideia de que os Estados Unidos são um estado-nação independente. Antes de qualquer outra coisa têm de se ocupar com o seu próprio bem-estar, com a sua própria sobrevivência, num quadro internacional em que deixam de ser, por opção própria, os líderes do sistema internacional, e passam a ser um Estado normal, centrados nos seus interesses”.
Por outro lado houve “uma gestão com um lado caótico, com uma sucessão de casos e sucessão de entradas e saídas de membros da Administração, desde secretários de Estado a conselheiros de Segurança Nacional a Secretários de Defesa”, refere Tiago Moreira de Sá. De acordo com a Brookings Institution, Donald Trump tinha já alcançado no início de 2020 o recorde de mudanças num gabinete presidencial de um primeiro mandato como Presidente dos Estados Unidos.
Caos é também a palavra escolhida pelo investigador Bernardo Pires de Lima: “Uma administração de casos, de caos e de ruturas. Ruturas com as grandes decisões da administração Obama - TTIP, TPP, Acordo de Paris, Acordo com o Irão, Obamacare - e com tradições estruturadas, embora com nuances, da política externa americana, como o apoio à integração europeia, coesão da NATO, legitimidade das organizações multilaterais do pós-Guerra”.
Trata-se de uma Administração em que a política é feita “pelo círculo próximo do Presidente Trump” e em que as decisões e a forma de comunicar são “totalmente divisionistas da paz social, acrescentando tensão e não união, agressividade e não apaziguamento, trincheira e não negociação”, acrescenta.
“É ainda uma Administração pautada por casos, numa imensa suspeição de atividades privadas obscuras que se imiscuem nas decisões presidenciais. Todos estes efeitos sentem-se diariamente na América e no resto do mundo. Uma reeleição só os agravaria”, considera Bernardo Pires de Lima.
“Esvaziamento” das organizações internacionais e uso da força
Caótico na superfície, mas com método. Para Diana Soller, a Administração Trump veio alterar a forma como o país olha para os aliados: “As alianças permanentes deixam de ter o peso que tinham. A NATO, por exemplo, não deixa de existir, não deixa de ter a sua importância. Deixa, sim, de ser uma aliança de democracias para passar a ser uma aliança militar e de defesa pura e simples”, explica.
“Têm-lhe chamado uma visão anti-multilateralista, mas eu diria que é um multilateralismo ad hoc, ou de vontades, caso a caso. (…) É uma ordem internacional de alianças de vontade em vez de alianças permanentes. Não é a coligação que faz a missão é a missão que faz a coligação”, refere Tiago Moreira de Sá.
“A ordem internacional americana anterior era fundamentalmente uma ordem de democracia, no sentido em que tinham uma legitimidade especial nas relações internacionais, por isso os EUA privilegiavam as relações e as alianças com as democracias”, acrescenta o professor da Universidade Nova de Lisboa, autor do livro “O Método no Caos”, lançado em 2018 em colaboração com a investigadora Diana Soller.
E dá também o exemplo da Aliança Atlântica: “Há uma mudança na conceção do que é uma aliança. Uma aliança como a NATO era uma aliança em que todos tinham os mesmos direitos e os mesmos deveres independentemente de quanto contribuíam para essa aliança, quanto pagavam. Agora os aliados têm os direitos na medida em que cumpram os seus deveres, e o seu dever é pagar por essa aliança. (…) Para ele, os Estados Unidos não têm interesse, nem o dever, nem a capacidade - porque não têm a riqueza que tinham no passado - de continuar a pagar praticamente sozinhos pela defesa comum das alianças que têm”, acrescenta Tiago Moreira de Sá.
“Há um deliberado esvaziamento das organizações internacionais, do liberalismo. Há relações muito mais concretas com Estados-nação que podem ajudar os EUA a atingir os seus objetivos do ponto de vista internacional. Há a saída dos Estados Unidos da liderança liberal do sistema internacional. Há um vazio provocado pelo facto de Donald Trump ter dito que não era mais o líder do mundo, nem sequer do mundo livre”, acrescenta Diana Soller.
Durante o mandato, Donald Trump tem enfatizado o aumento de gastos em Defesa, com a Administração a destacar que o setor militar estava depauperado desde a última presidência. De acordo com os dados do Stockholm International Peace Research Institute, os gastos em Defesa aumentaram, de facto, de forma consistente desde que Trump tomou posse em janeiro de 2017. No entanto, os valores são, ainda assim, significativamente mais baixos quando comparados com os gastos da Administração Obama no primeiro mandato.
Nesse contexto, Diana Soller destaca ainda que há uma tendência em Trump de intervenção direta e de uso cirúrgico da força “por razões punitivas, dissuasivas, para que os adversários percebam que os Estados Unidos têm uma força militar extraordinária”. É uma “forma clássica de dissuasão que Trump recupera”.
“Trump está convencido que a ordem internacional liberal tirou prestígio aos EUA porque os inimigos deixaram de temer os EUA. A resposta dele é o uso da força”, acrescenta.
No entanto, nem tudo foi rutura na Administração Trump. Também com este Presidente, houve o entendimento de que os Estados Unidos estavam em “sobre-extensão”, ou seja, envolvidos em demasiados problemas em várias partes do mundo. Nas Administrações anteriores já havia o entendimento de que esse esforço estava a levar ao declínio relativo dos Estados Unidos.
A intenção de retirar tropas de vários palcos a nível mundial tem sido central na política externa de Trump. Ainda que o processo de retirada se tenha iniciado antes de 2017, o Presidente anunciou em outubro que pretende reduzir drasticamente o número de militares destacados no Afeganistão até ao Natal. Tom Brenner - Reuters
“Donald Trump continuou algo que vem de trás, que é o retraimento estratégico norte-americano. Ele não o inventa, já começou no final do segundo mandato de George W. Bush. O retraimento estratégico norte-americano significa reduzir o envolvimento político, diplomático, económico e até militar no exterior, e reduzi-lo também às regiões que são estrategicamente vitais para os EUA do ponto de vista de segurança”, explica.
Só que essa posição de retirada e de esvaziamento das organizações por parte dos EUA nesta Administração não foi compensada a nenhum nível, defende Bernardo Pires de Lima. “No campo externo, a guerra comercial com a China não trouxe nada de positivo à economia americana, os acordos rasgados não foram substituídos por nada melhor, a proximidade a outros líderes autoritários é demasiado inquietante, sem se perceber onde começam os interesses privados da organização Trump e acaba o interesse nacional americano”.
Um país, duas tribos
Tiago Moreira de Sá explica que o extremar de posições da atualidade na sociedade norte-americana “começa nos anos 70 do século XX”, na sequência da crise do petróleo, e que se começou a adensar no pós-Guerra Fria, com o fim dos “grandes consensos que havia em torno do perigo do comunismo e da União Soviética”.
“Há dois lados que não só não dialogam, como se odeiam. Aquele centro moderado entre os republicanos moderados e os democratas conservadores – que permitia consensos de regime - desapareceu completamente. Já não há esse centro moderado no Congresso. Por isso é que o Governo está bloqueado, não consegue funcionar”, refere Tiago Moreira de Sá.
Muito se explica também pelo conceito de tribalismo. “Há a divisão da América em duas grandes tribos que estão em constante guerra entre elas, que se odeiam e têm visões completamente diferentes do país e de quem são os americanos. Têm uma ideia completamente diferente do passado do país e do futuro do país, numa relação irreconciliável e até violenta entre essas duas tribos”, acrescenta.
Apoiantes de Donald Trump numa ação de campanha com uma bandeira que faz referência ao movimento QAnon, uma teoria da conspiração de extrema-direita. Carlos Barria - Reuters
Também Bernardo Pires de Lima diz que a polarização é anterior ao atual Presidente, mas que se agravou nos últimos quatro anos: “É uma tendência que se agravou desde meados dos anos 1990, mas que ganha tração no mandato de Trump. O voto é cada vez mais por oposição a alguém, os eleitores têm uma cristalização de hábitos e ideias que excluem qualquer convergência com o campo oposto, o comportamento dos principais decisores e a intoxicação informativa provocada pelas redes sociais acabaram por fazer o resto”.
Considera ainda que esta “hiperpolarização” que se vive atualmente causa “uma enorme fadiga eleitoral e política" na sociedade.
Ainda a nível interno, Diana Soller destaca “a não condenação veemente dos grupos supremacistas brancos nesta polarização que existe nos EUA”. Trump “nunca se demarcou da acções de grupos supremacistas brancos, a principal causa de violência grave na América de acordo com relatórios federais, agravando a tensão social que se vive”, refere também Bernardo Pires de Lima.
Crise constitucional?
Um dos principais temas de campanha tem sido o cenário pós-eleições. Devido à generalização do voto por correspondência, é possível que não se saiba no dia 3 de novembro quem será o próximo Presidente dos Estados Unidos.
“A esmagadora maioria dos republicanos vai votar presencialmente e há um número significativo de democratas que dizem que vão votar por correspondência. Podemos ter Trump claramente à frente na noite eleitoral, porque os votos por correspondência ainda não foram contados e alguns não foram ainda entregues. Aliás, em alguns casos o voto por correspondência vai poder ser feito até 6 de novembro. Se Trump estiver claramente à frente vai declarar vitória. Depois, com a contagem dos votos por correspondência, claramente favoráveis aos democratas, pode alterar-se a contagem e Biden pode vencer no Colégio Eleitoral”, explica Tiago Moreira de Sá.
De acordo com o New York Times, vários Estados não terão os resultados totais na noite da eleição e apenas oito Estados esperam ter 98 por cento dos votos contados no dia 4 de novembro. Por outro lado, 22 Estados e o distrito de Columbia autorizaram a chegada de novos votos até após o dia da eleição e alguns Estados decisivos para a distribuição de votos no colégio eleitoral, como o Michigan ou a Pensilvânia, já avisaram que a contabilização de todos os boletins poderá demorar vários dias.
Até dia 25 de outubro mais de 58,6 de eleitores já tinham votado antecipadamente, pessoalmente ou por correio. Mike Blake - Reuters
Para Bernardo Pires de Lima, a crise constitucional já é real a advém da própria atuação da Administração Trump ao longo destes anos: “O desrespeito pela separação de poderes, a arbitrariedade das decisões, a natureza agressiva da mensagem política presidencial e sobretudo a falta de transparência entre os seus negócios e o cargo que ocupa, levantam sérias dúvidas sobre a lisura do quadro constitucional”.
“A verdade é que Trump tem resistido e sobreviveu a um impeachment. O próximo choque virá de uma eventual derrota. Se vencer, estou em crer que este quadro político-constitucional sairá ainda mais deteriorado”, antevê o especialista.
Diana Soller partilha das mesmas preocupações: “O próprio Presidente disse que poderia não aceitar os resultados das eleições por considerar que o voto por correspondência - que está a ser muito mais elevado nestas eleições por causa da Covid-19 - era fraudulento ou poderia ser sujeito a fraudes. Acho que nos temos de preparar para que, se o candidato Trump não ganhar as eleições, não aceite a derrota”.
“É um teste às instituições. A Constituição prevê que se Donald Trump impugnar as eleições, o que as instituições estaduais têm até ao principio de dezembro para fazer a recontagem dos votos. Caso o candidato que perde não aceite ainda assim, a recontagem passa para o Congresso. (…) Constitucionalmente, podemos vir a assistir a repetidas contagens de votos até que o candidato que impugnou as eleições assuma a derrota”, alerta a investigadora.
No entanto, Tiago Moreira de Sá está mais otimista neste cenário: “O que eu tenho visto é que as instituições norte-americanas, a começar pelo Partido Republicano, quase sem exceção, têm dito categoricamente que a transição será pacífica, aconteça o que acontecer”, salienta.
O professor destaca que, olhando para a história dos Estados Unidos, a primeira “transição pacífica do poder entre dois diferentes partidos” ocorreu na eleição de 1800, entre dois dos pais fundadores, John Adams e Thomas Jefferson. Por isso, o académico acredita que o processo de transição pacífica está no ADN da democracia norte-americana e que as instituições vão conseguir controlar o processo, tal como fizeram ao longo dos últimos quatro anos.