Quando um célebre assassino russo e um correspondente de um jornal norte-americano embarcaram em aviões separados na Turquia, na quinta-feira, esse foi o culminar de negociações secretas para uma dramática troca de prisioneiros entre a Rússia e o Ocidente que se arrastou por anos. Este foi o mais amplo processo do género entre os dois blocos desde os anos da Guerra Fria.
Essas negociações foram, por vezes, arrebatadoras e exigentes. As tensões entre os EUA e a Rússia aumentaram com a guerra na Ucrânia. "Foi o culminar de muitas rondas de negociações complexas e meticulosas ao longo de muitos, muitos meses", disse Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, que desempenhou um papel fundamental no acordo, pouco depois da troca.
Altos funcionários da Casa Branca forneceram um cronograma detalhado dos eventos numa chamada com repórteres, incluindo a parceira norte-americana da BBC, a CBS, na quinta-feira. E afirmaram que a primeira dica de que Moscovo poderia estar aberta a um acordo surgiu no outono de 2022.
Na altura, Estados Unidos e Rússia estavam a negociar a libertação de Brittney Griner, a estrela norte-americana do basquetebol que foi presa por posse de óleo de cannabis e enviada para uma colónia penal russa. Griner acabou por ser libertada no final desse ano, numa troca de alto nível com o famoso traficante de armas russo Viktor Bout.
Mas durante essas conversas, prosseguiram os funcionários da Casa Branca, a Rússia deixou claro que também queria garantir a libertação do assassino Vadim Krasikov, a cumprir uma pena de prisão perpétua na Alemanha por ter assassinado a tiro um homem num parque movimentado de Berlim - por alegada ordem direta do Kremlin.
Segundo a BBC, Jake Sullivan, conselheiro de segurança dos EUA, afirmou ao homólogo alemão que a Rússia estava a tentar obter a libertação de Krasikov e perguntou se Berlim consideraria a possibilidade de o libertar em troca de Alexei Navalny, o ativista anti-Putin e líder da oposição que estava, na altura, detido na Rússia.
A Alemanha, no entanto, mostrou-se relutante em libertar um assassino que tinha cometido um assassínio tão ousado no seu próprio território.
Embora Sullivan não tenha obtido uma resposta definitiva de Berlim, as conversações iniciais em 2022, tanto entre os EUA e a Rússia como entre os EUA e a Alemanha, ajudaram a preparar o caminho para o acordo mais vasto e complexo alcançado nas últimas semanas, que foi concluído na pista de um aeroporto turco.A Rússia deixou claro que queria Krasikov. E Washington não queria não apenas Navalny, mas também Paul Whelan, um ex-fuzileiro preso sob acusações de espionagem na Rússia, em 2018.
Isso deve-se ao facto de ambas as partes terem dado a entender, pelo menos em certa medida, o que pretendiam.
Os primeiros elementos de um potencial acordo de troca começaram então a tomar forma - mas ainda havia um longo, longo caminho a percorrer.
No final de março de 2023, um repórter de 31 anos do Wall Street Journal, de Nova Jérsia, foi detido por agentes dos serviços secretos russos durante uma viagem em reportagem. A detenção suscitou um coro de condenações por parte dos Estados Unidos e aliados.
Um dia mais tarde, o presidente Biden deu instruções ao conselheiro de segurança para conseguir um acordo que devolvesse Evan Gershkovich e o fuzileiro Paul Whelan a casa.
Washington contactou diretamente Moscovo. A comunicação começou então a sério, segundo os funcionários da Casa Branca, e os respetivos ministros dos Negócios Estrangeiros falaram ao telefone.Mas as conversas depressa se transferiram destes diplomatas de topo para os serviços secretos, algo que os EUA hesitaram em fazer, uma vez que Gershkovich foi acusado de espionagem e Washington temia que envolver a CIA só viesse a alimentar essas alegações.
Enquanto as rondas destas tensas negociações decorriam no final de 2023, os EUA compreenderam que a libertação do assassino Krasikov era fundamental para qualquer acordo bem-sucedido, de acordo com altos funcionários da Casa Branca. Foram feitas ofertas à Rússia que não incluíam o assassino de 58 anos. Propostas que foram sempre recusadas.
Dado que Krasikov estava preso na Alemanha e não nos EUA, Washington não tinha poder para o libertar unilateralmente. Jack Sullivan falou com o seu homólogo alemão quase semanalmente no final de 2023 e no início de janeiro de 2024, numa tentativa de o convencer a trocar Krasikov e a satisfazer a principal exigência da Rússia para este acordo.Qualquer potencial acordo, segundo os funcionários da Casa Branca, dependia absolutamente da libertação de Krasikov por parte da Alemanha.
A posição de Moscovo, segundo eles, era, em última análise, que os seus espiões presos deveriam ser devolvidos em troca dos americanos que acusava de espionagem.
Com isto em mente, os EUA trabalharam para encontrar mais espiões russos detidos pelos seus aliados que pudessem fazer parte de um grande acordo. Funcionários americanos, diplomatas e pessoal da CIA percorreram o mundo à procura de governos amigos dispostos a libertar prisioneiros que correspondessem a essa descrição, segundo o Wall Street Journal.
Um sinal do seu sucesso foi dado na quinta-feira, quando russos foram libertados de prisões na Polónia, Eslovénia e Noruega.
Em fevereiro deste ano, o chanceler alemão Olaf Scholz encontrou-se com o presidente Biden na Casa Branca. E, segundo o relato fornecido pelos funcionários da Casa Branca na quinta-feira, discutiram opções para uma troca que incluía todas as pessoas chave - Krasikov, Navalny, Whelan, Gershkovich.
Também houve sinais positivos da Rússia. Numa entrevista a Tucker Carlson, antigo apresentador da Fox News, no início de fevereiro, Vladimir Putin falou sobre Gershkovich. "Não excluo a possibilidade de Gershkovich regressar à sua terra natal", afirmou.Na ótica do editor da BBC para a Rússia, Steve Rosenberg, foi uma dica muito pública e pouco subtil: Moscovo estava aberta a um acordo.
No entanto, a 16 de fevereiro de 2024, poucos dias depois dessa entrevista e da reunião na Casa Branca entre o Chanceler Scholz e o Presidente Biden, e antes que qualquer oferta pudesse ser apresentada aos russos, o potencial acordo ruiu em circunstâncias trágicas.
Alexei Navalny, o prisioneiro mais conhecido que poderia ter sido incluído na troca, morreu na sua cela na Sibéria, aos 47 anos. Os seus apoiantes e familiares, bem como muitos líderes estrangeiros, culparam Putin pela morte. As autoridades russas afirmaram que Navalny morreu de causas naturais.
Embora quase nada se soubesse sobre as negociações na altura da sua morte, a colega de Navalny, Maria Pevchik, disse publicamente que ele tinha estado perto de ser libertado em troca de Krasikov.
Na altura, a BBC News não conseguiu verificar de forma independente as suas afirmações. O Kremlin, entretanto, negou publicamente a proximidade de um potencial acordo.
Mas na quinta-feira a Casa Branca confirmou que estava a trabalhar para incluir Navalny no acordo, que acabou por libertar da custódia russa três pessoas que tinham trabalhado com a figura da oposição.
"A equipa sentiu que o vento nos tinha sido tirado das velas", disse Sullivan, visivelmente emocionado, ao descrever o impacto da morte de Navalny.
A mãe e o pai de Gershkovich, numa coincidência dramática, encontravam-se com Sullivan na Casa Branca no dia em que foi anunciada a morte de Navalny.
Reconhecendo o significado da notícia e o risco que representava para as negociações, Sullivan disse-lhes que o caminho a seguir seria "um pouco mais difícil".
A vice-presidente Kamala Harris teve então duas reuniões importantes para ajudar a manter uma potencial troca no caminho certo, avançou à BBC um alto funcionário da administração norte-americana.Em meados de fevereiro, participou na Conferência de Segurança de Munique, onde sublinhou a importância da libertação de Krasikov ao chanceler Scholz.
Kamala Harris encontrou-se também com o primeiro-ministro da Eslovénia, onde se encontravam detidos dois prisioneiros russos identificados pelos EUA como sendo de grande prioridade para Moscovo. Ambos foram libertados na quinta-feira.
Na primavera, o novo acordo, que já não incluía Navalny, tomou forma na Casa Branca. E em junho, Berlim aceitou a troca de Krasikov.
"Por si, farei isto", disse Scholz ao Presidente Biden, de acordo com Sullivan. O acordo foi apresentado à Rússia.
Moscovo respondeu várias semanas depois, em meados de julho, aceitando os termos do acordo e a libertação das pessoas da lista detidas em prisões russas.
Mas quando as negociações estavam a chegar à sua fase final a política interna intrometeu-se, com Biden a sofrer uma enorme pressão dentro do seu próprio Partido Democrata para pôr fim à sua candidatura à reeleição em novembro, após um fraco desempenho no debate com Donald Trump.
Jack Sullivan, apenas uma hora antes de Biden anunciar, a 21 de julho, que não iria tentar a reeleição, estava numa chamada com o seu homólogo esloveno a finalizar a troca de prisioneiros.
Como em qualquer troca de prisioneiros de alto risco, o acordo não estava garantido, mesmo quando os aviões foram alinhados e as rotas dos prisioneiros para casa finalizadas.
"Sustivemos a respiração e fizemos figas até há poucas horas atrás", disse Sullivan na tarde de quinta-feira.
Vinte e quatro prisioneiros já estão em casaMuitos dos 24 prisioneiros libertados pela Rússia e pelo Ocidente já chegaram aos países de origem. Os principais líderes dos oito países envolvidos na troca apontam o que consideram ser uma vitória da diplomacia. Entre os 24 libertados ao abrigo deste acordo mediado pela diplomacia turca há então jornalistas, opositores de Vladimir Putin e um Prémio Nobel da Paz.Oito prisioneiros foram transferidos para a Rússia, outros 13 para a Alemanha e três para os Estados Unidos - o mais novo com 19 anos e o mais velho com 71. Esta é a maior troca de prisioneiros civis entre os dois blocos desde a Guerra Fria.
O jornalista Evan Gershkovich, correspondente do Wall Street Journal, e o antigo fuzileiro Paul Whelan são dois dos norte-americanos que chegaram, na última noite, a casa.
O avião que transportou os ex-prisioneiros norte-americanos aterrou na base militar de Andrews, nas proximidades de Washington. A aguardá-los estava o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e a vice-presidente, Kamala Harris. Na Rússia, a receção coube igualmente ao presidente Vladimir Putin.
c/ agências