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"A vida encolheu" nesta Gaza destruída, diz arqueólogo palestiniano

por Carla Quirino - RTP
Fadel al-Utol e família a viverem numa barraca Página de Fadel al-Utol do X

Fadel al-Utol é um palestiniano com 43 anos e dedica a carreira à arqueologia e restauro do património, em Gaza. Quando a guerra se intensificou, há dez meses, não só testemunhou a destruição de muitos sítios arqueológicos como viu a própria casa arrasada. A Grande Mesquita Omari e o Museu Qasr Al-Basha são alguns edifícios reduzidos a escombros "deliberadamente".

Desde 1995 que Fadel al-Utol é arqueólogo. Começou a carreira em projetos na École Biblique que tem acordos com a França e a Autoridade Nacional Palestina. Trabalhou ainda com a UNESCO e o British Council em programas conjuntos que visavam descobrir e preservar sítios históricos.

Quando a guerra começou, a 7 de outubro, al-Utol estava numa escavação, num cemitério romano, no norte da Cidade de Gaza. “Eu e a minha equipa, também composta por estudantes de arqueologia, saímos no dia 8, 20 minutos antes da meia-noite”, quando estavam prestes a começarem os primeiros ataques.


Fadel al-Utol durante os últimos trabalhos de conservação e restauro, no sítio arqueológico do mosteiro de Saint Hilarion, em Gaza | X

“Foi muito, muito difícil para mim. Tivemos que deixar o local e as nossas casas e mudar-nos para o sul. Saímos das nossas casas sem nada, pensando que voltaríamos dali a dias. E foi um milagre conseguir sair. Estávamos numa área muito sensível, e houve muitos ataques e bombas de fósforo”, relata o arqueólogo, citado na publicação britânica The Guardian.

Fugiu com a família, inicialmente para Nuseirat, e procuraram abrigo numa escola da Unrwa - Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina. “Depois mudámo-nos para Rafah. Quando a operação terrestre começou, saimos novamente para Deir al-Balah. Desde então estamos a tentar encontrar um lugar seguro, mas não há uma única área segura em toda Gaza”, acentua al-Utol.
"Ataques deliberados" à herança cultural de Gaza
A necrópole do periodo romano onde al-Utol estava a escavar, horas antes da operação militar, foi entretanto destruída pelos bombardeamentos de Telavive, diz o arqueólogo.

“Encontrámos, pela primeira vez, túmulos feitos de chumbo, decorados com folhas de videira, do primeiro século d.C. O tamanho e o número de sepulturas indiciavam que estávamos presentes de uma cidade romana ao sul do cemitério. Esta foi uma descoberta muito importante e estávamos a preparar o local para fazer o mapeamento fotográfico 3D. Agora o local agora está destruído”.

Reporta que a Grande Mesquita Omari foi destruída e ainda “que Qasr al-Basha, um museu e edifício histórico, foi atingido. Esses foram ataques diretos deliberados”, alega.

  
Qasr al-Basha, antes e depois de 7 de outubro de 2023. O primeiro piso de Qasr al-Basha foi construído pelo sultão mameluco Zahir Baibars em meados do século XIII. O palácio foi convertido num dos principais museus dedicados à herança arqueológica  e histórica de Gaza, desde os tempos neolíticos, fenícios, gregos, romanos, otomanos | Imagem adaptada/Wikipédia / página de Fadel al-Utol no X

Grande Mesquita Omar foi a maior e mais antiga mesquita da Faixa de Gaza, localizada no centro histórico de Gaza, datada do início do século VII | Wikipédia / Municipio de Gaza no Facebook

"Estou muito, muito triste com o que aconteceu com os sítios arqueológicos e o património em Gaza. A minha própria casa foi atingida num ataque aéreo – assim como o resto das casas", acrescentou.

A 9 janeiro de 2024, uma declaração do Grupo Regional Árabe do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) sobre a Palestina e a Guerra atual em Gaza já dava conta de duas centenas de sítios arqueológicos destruídos devido à intensidade dos bombardeamentos israelitas.

Mais de 200 dos 325 locais registados em Gaza, considerados de importância histórica, arqueológica, natural, religiosa e humanitária nacional ou global, foram destruídos ou gravemente danificados. Isto traduz-se na destruição de mais de 60 por cento do património civil cultural de Gaza, que abrange civilizações que remontam ao final da Era Neolítica", afirmava o documento.

O relatório também inumera alguns dos "notáveis ​​sítios arqueológicos e monumentos que foram parcial ou totalmente destruídos". Na lista então o sítio de Tell el-'Ajjul, datado do III milênio a.C., o sítio do Cemitério Arqueológico Romano do século I a.C., o Sítio Arqueológico de Tel UmmAmer, também conhecido como Santo Hilarion, do século IV d.C.- que está na lista provisória do Património Mundial e está sob de Proteção Reforçada da UNESCO desde 14 de dezembro de 2023-, e o Sítio Arqueológico da Igreja Bizantina de Jabalia do século V d.C.

Tell Umm el-'Amr abrange mais de quatro séculos, do final do Império Romano ao período Omíada. O sítio é composto por cinco igrejas sucessivas, complexos de banhos e santuários, mosaicos geométricos e uma cripta expansiva, este mosteiro cristão foi um dos maiores do Oriente Médio | World Monuments Watch (anterior a outubro de 2023)

Sinto que esta guerra queimou humanos, pedras e árvores. Nada sobrou de Gaza e da beleza da cidade”, acentua.

Explica que a equipa com quem trabalhou também continua algures em Gaza e sempre que o exército israelita deixa uma área, “alguns deles tiram fotos e envia-as para mim quando consegue ligação de internet. Eu documento a extensão da destruição e mantenho o controlo.

Acredita que “a guerra acabará um dia. Todas as guerras acabam. E nós reconstruiremos Gaza num lugar ainda mais bonito do que era antes”, sublinha.
“A vida encolheu”
Os ataques israelitas destruíram-lhe a casa e atualmente pernoita numa barraca com mulher e os filhos. Com o verão quente, como “as barracas são de plástico, é como se estivéssemos a ferver num forno.

A vida dedicada ao património foi interrompida e agora diz que passa o tempo a “procurar tudo para a família”

“Corre-se atrás de água potável, isto porque quase toda está poluída e pode-nos deixar doente ou tenta-se carregar o telefone através de equipamentos a energia solar. E a inflação é de 400-500 por cento”, descreve. 

Explica que o filho mais velho também ajuda. “Mas se há algo um pouco distante que precisa ser trazido, vou eu porque sou mais velho e consigo ter a perceção se o ambiente fica arriscado”.

Quando há bombardeamentos “essas são bombas enormes. O som e o tremor do chão colocam-no num estado de horror. É algo que não se vê em filmes de Hollywood, nem mesmo na nossa imaginação”, argumenta.

Passados dez meses da operação terrestre israelita, al-Utol afirma que “a vida encolheu” e entristecido quando olha à volta, realça: “Eu e toda a minha família não temos nada a ver com assuntos políticos ou militares. Sou um civil que quer viver uma vida cultural e humanitária”.
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